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sexta-feira, 28 de março de 2025

Marcelo Spalding (O uso de pseudônimos para o escritor)

A escolha do nome para um escritor parece simples, mas não é. Muitos alunos entram em crise existencial na hora de escolher o nome para sua primeira participação em coletânea. Eu mesmo só adotei de vez o Marcelo Spalding no meu segundo livro (meu nome completo é Marcelo Spalding Perez, e meu pai não ficou muito feliz de eu ter aberto mão do nome Perez).

Mas há casos que são mais complicados do que uma simples escolha de sobrenome: quando a pessoa não quer ser identificada e escolhe usar um pseudônimo.

Eu diria que há dois casos de pseudônimos: o primeiro é quando a pessoa escolhe o pseudônimo por uma questão comercial, como uma marca. Ela acredita que o pseudônimo vai ser melhor do que usar o nome dela pessoal, às vezes até as pessoas ao redor já conhecem ela por esse pseudônimo. Tony Ramos, por exemplo, é o pseudônimo do grande ator chamado Antônio de Carvalho Barbosa. O nome de nascimento da Xuxa é Maria da Graça Meneghel. E por aí vai, são pessoas que adotam esse nome artístico como sendo seu. Caso ela vá criar uma rede social, vai criar com nome artístico, as pessoas do seu convívio social a conhecem com nome artístico, então este caso é um uso de pseudônimo em substituição ao nosso nome original.

Outro caso é quando a pessoa não quer ser identificada pelos leitores, quer usar um pseudônimo para não misturar sua carreira de escritora com sua vida pessoal, profissional ou acadêmica, pois acredita que terá prejuízo em caso de misturá-las. O caso mais famoso é o de Fernando Pessoa, que foi além e criou os heterônimos (personalidades próprias para cada pseudônimo que usava).

Hoje, em tempos de rede social e grande interesse pela figura do autor, por vezes maior do que pela obra, acredito que um autor iniciante só deve usar esta estratégia quando o trabalho que faz ou a vida que ela leva é incompatível com a produção literária que vai produzir. Por exemplo, uma professora de escola infantil que planeja publicar romances de literatura erótica. Ou uma pessoa que trabalha em uma posição vulnerável, como promotor de justiça ou repórter investigativo, e não costuma aparecer em redes sociais por questões de segurança. Mas são situações muito específicas, não é a regra.

Mais comum é que a pessoa opte por preservar sua identidade por medo da reação de colegas, amigos ou familiares a seu tipo de literatura. Sim, a pessoa pode em uma empresa, universidade ou até por questões familiares ou religiosas ficar pouco à vontade de tratar alguns temas que ela trataria na sua literatura, mas não no seu dia a dia. A pessoa pode estar disposta a escrever sobre sua sexualidade, por exemplo, mas não querer discutir esse tema em círculos pessoais, por exemplo. São casos em que criar um pseudônimo paralelo na nossa vida civil nos deixa mais confortáveis.

Não é uma decisão fácil porque não se trata apenas da escolha de um nome, vai afetar, por exemplo, a escolha do nosso perfil nas redes sociais (fundamental para divulgarmos nosso trabalho como escritor). Sempre digo que o ideal é usar o perfil do Instagram que a pessoa já tem, o ideal é usar o nome que a pessoa já é conhecida. Como essa escolha de Marcelo Spalding ou Marcelo Perez eu fiz com 16, 17 anos, estava começando, foi tranquilo escolher usar o Spalding e não usar o Perez. O meu irmão já é conhecido como Perez no banco onde ele trabalha há muitos anos, se de uma hora para outra ele quiser trocar o nome de Perez para Spalding, vai complicar a vida dele.

Então trocar esse nome no meio do caminho é confuso, mesmo que a pessoa não esconda seu rosto, mesmo que a pessoa não tenha algum desses dilemas mais sociais ou políticos envolvidos. Desde adolescente eu tenho gente que me deu aula quando era criança, que me acompanha em rede social, compra meus livros, então a gente traz uma história toda quando a gente começa a produzir literatura, e usar o nome pelo qual se é conhecido desde sempre ajuda muito. Especialmente, claro, quem tem algum nome forte para isso.

Há pessoas que têm nomes um pouco mais comuns. Eu tive uma aluna chamada Paula Fernandes, por exemplo. Quando ela colocava no Google o nome dela, só aparecia a cantora Paula Fernandes. Quem tem nomes que combinados funcionam como um nome específico, um nome sem tanta gente assim conhecida, um nome que no Google ainda consegue aparecer nas primeiras posições, com o qual no Instagram consegue ter um perfil, de preferência a ele.

Cuide apenas que você se sinta à vontade com esse pseudônimo, afinal o que se deseja é que sua carreira prospere e você precise lidar com ele por um longo tempo.
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MARCELO SPALDING é de Porto Alegre/RS, jornalista, professor, escritor e editor, com 8 livros individuais publicados e mais de 120 livros editados. Professor de oficinas de Escrita Criativa presenciais e online desde 2007, fundou e dirige a Metamorfose Cursos. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor e mestre em Letras pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras. Ex-professor universitário, atuou como professor de Escrita Criativa e Jornalismo na graduação e no PPG Letras da UniRitter, além de coordenar o Pós-graduação em Produção e Revisão Textual e a Editora UniRitter. É idealizador do Movimento Literatura Digital, editor dos sites minicontos.com.br e escritacriativa.com.br e autor do livro Escrita Criativa para Iniciantes, além de ter criado o primeiro jogo de tabuleiro de Escrita Criativa do Brasil.

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terça-feira, 25 de março de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Com as mãos abanando”

A origem mais aceita para essa expressão, remonta à vinda dos primeiros imigrantes para o Brasil, ainda no século XIX. Os fluxos imigratórios mais expressivos ocorreram nos séculos XIX e XX, entre o início do período republicano em 1889 até 1930, quando ingressaram no país principalmente portugueses, italianos, japoneses, alemães e povos árabes (sírios, turcos, egípcios, palestinos) representando mais de 3,5 milhões de estrangeiros, correspondendo a 65% do total de imigrados entre os anos de 1822 e 1960. 

É com razoável margem de certeza que a expressão “COM AS MÃOS ABANANDO” surgiu e se consagrou no linguajar do povo no contexto do crescimento da cafeicultura brasileira, justamente a partir do início do século XIX e desde então, ganhou novos significados, pois ela é comum em vários contextos de comunicação no Brasil, embora tenha passado por mudanças de significado, acumulando sentidos que podem ser aplicados em diferentes situações. Porém, na maioria das vezes em que é empregada, o resultado final está diretamente ligado às mãos vazias de determinada pessoa.

Esse considerável contingente humano costumava trazer em sua parca bagagem, apenas as ferramentas que em sua terra natal utilizavam para o amanho (cultivo) da terra, como ancinhos, alfanjes, machados, facões e enxadas, acreditando que portar uma dessas ferramentas tornaria induvidosa sua disposição para o trabalho, evidenciando a profissão e as habilidades de cada qual, viabilizando assim possível contratação pelo patronato rural brasileiro. 

Em contrapartida, chegar de mãos vazias, ou “com as mãos abanando”, indicava não só a falta de um ofício ou profissão, como a possível ausência de versatilidade para o exercício dos trabalhos manuais, numa visão estereotipada de pessoa com pouca disposição para encarar o batente. 

Outra hipótese para a origem do termo aparece em dicionários anteriores à imigração europeia para o Brasil. Em Portugal, ainda nos idos de 1789, “abanar” era usada com o sentido de “andar ao léu” ou “viver sem amparo”.

Entre nós, há muito tempo essa conhecida expressão também passou a indicar outros contextos literais de mãos vazias. Quando alguém chega numa festa sem levar presentes ou sem trazer contribuições num evento em que isso era de responsabilidade de todos, pode-se dizer que o fulano chegou “com as mãos abananando”. Ir em aniversários “de mãos abanando”, sem levar um presente, demonstra que o conviva compareceu apenas para forrar o panduro, tirar a barriga da miséria ou deleitar-se com as iguarias ofertadas pelo anfitrião. 

O mesmo se diz dos mancebos desprovidos de bens que desposam mulheres afortunadas, sem minimamente levar para a sociedade conjugal nada de valor, motivando a jocosa afirmação de que o dito cujo não constituiu matrimônio e sim, patrimônio... 

As expressões idiomáticas são frases conotativas amplamente conhecidas. Elas servem para expressar diversas ideias, como otimismo, cautela, crítica etc. Seu uso depende do contexto de fala ou de escrita, dado o seu caráter popular. Têm origem em fatos e personagens cotidianos ou históricos, mas sem elas, decididamente o idioma se descaracteriza. Configuram um fenômeno linguístico que consiste em frases de sentido figurado e fazem parte da cultura popular. Portanto, são expressões convencionais, de uso corrente no linguajar do povo, sendo desconhecida ou incerta a origem de muitas delas. 

Mas não se confundem elas com os chamados “ditados populares”, pois esses invariavelmente expressam um valor moral, sob a forma de uma mensagem subjacente. “A PRESSA É INIMIGA DA PERFEIÇÃO”, por exemplo, não diz claramente, porém sugere que é necessário ter paciência, que se deve fazer as coisas devagar, sem precipitações ou afobações, para alcançar os objetivos perseguidos. Coitado do porco, que não observou esse precioso aviso... 

Pode-se dizer que as expressões idiomáticas surgem da cultura popular e ao mesmo tempo a fomentam, constituindo uma interveniência que liga o passado ao presente (infelizmente, algumas expressões desaparecem), pois a cultura é e será sempre um processo resultante da atividade humana, desenvolvida com o intuito de educar a mente e o espírito. Os idiomatismos são vitais para a comunicação entre as pessoas, pois expressam experiências pessoais de uma maneira peculiar, além de revelar as identidades, o modo de pensar, de agir e de ver o mundo dos indivíduos e de sua época. 

Sem poder, sem dinheiro, sem nada para oferecer. A propósito, quando o atleta participa de uma competição e não logra vitórias, se diz que saiu da porfia “com mãos abanando”, sem medalhas ou troféus. Há times de futebol igualmente contemplados com essa expressão mordaz, pois nada ganham nas competições esportivas em que estão empenhados. Participam delas, perdem sempre quase todos os jogos e saem de lá “com as mãos abanando”…
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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quarta-feira, 12 de março de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Mão de Vaca”

A expressão idiomática MÃO-DE-VACA indica pessoa egoísta, extremamente apegada ao dinheiro e que faz de tudo para economizar até os centavos nas compras mais insignificantes. É também conhecido como avarento, sovina, unha de fome, miserável, agarrado, cobiçoso, forreta, cúpido ou casquinha. Tem origem no formato da pata da vaca, que é fechada como a mão do indivíduo pão-duro, que não admite gastar dinheiro nem que a “vaca tussa”. 

Tem o mesmo significado de “mão fechada” se refere especificamente a alguém que mesmo dispondo de recursos, não solta a grana, não gasta, se escora nos outros, não contribui com nada e por vezes atrasa ou não honra suas obrigações financeiras como taxas condominiais, mensalidades escolares, de clubes e associações, foge de despesas com festas, passa longe de restaurantes ou confraternizações entre amigos, das quais, quando raramente vai, sai sorrateiramente antes que peçam a conta.

Há uma ligeira diferença entre as expressões ser “muquirana” e “mão-de-vaca”. Enquanto aquela se refere a quem não gosta de emprestar dinheiro a terceiros, esta retrata o tipo miserável, mesquinho, forreta e pão-duro. Tal expressão ganhou até mesmo uma série na Discovery denominada “OS MÃOS DE VACA” narrando a saga de quatro famílias que chegam ao limite de vasculhar o lixo e reformar a casa com as próprias mãos para economizar, levando assim vida monástica, com o mínimo de desembolso ou sofisticação. 

A propósito, todo aglomerado humano tem os seus mão-de-vaca e sobre eles, contam-se episódios quase inacreditáveis, mercê de sua costumeira aversão a qualquer gasto, embora não dependam disso para viver. Ficou famoso entre familiares e vizinhos, o sujeito que tapava vários orifícios do chuveiro elétrico, para economizar na conta de energia elétrica. Mas há situações até histriônicas, que vão da alimentação à higiene pessoal, nenhuma despesa passando ilesa pelos que adotam artifícios até bizarros, contanto que resultem na economia de alguns trocados. 

Tem gente muito criativa concebendo métodos para não gastar, como aprender a reformar casa para não contratar pedreiro, consertar o carro para não chamar o mecânico e até arriscar levar choques reparando a fiação elétrica para não contratar eletricista. Outras situações, por hilárias, merecem registro. 

Na década de 60 as compras ainda eram feitas nas mercearias da esquina. Vizinho de uma delas, um conhecido forreta ia até lá comprar leite Ninho, àquela época ainda vendido em latas. Ele colocava de duas em duas latas nos pratos da balança e ficava observando qual delas era mais pesada que a outra. Repetia sistematicamente a experiência e só depois pagava e ia embora, levando a que lhe parecia conter alguns gramas a mais de leite que as outras.

A forretice dos “mão-de-vaca” inspirou um dos quadros mais engraçados na célebre Escolinha do Professor Raimundo, exibida na TV Globo até maio de 1995, programa criado por Chico Anysio e Haroldo Barbosa, reunindo um seleto grupo de humoristas, dentre os quais o comediante Marcos Plonka (26/09/1939 - 06/09/2011) que encarnava a personagem "Samuel Blaustein", comerciante avarento que usava o bordão “fazemos qualquer negócio”. Errava todas as respostas da arguição e quando recebia nota “zero” do professor, comemorava dizendo “mas antes zero na nota do que prejuízo na bolsa”.

Segundo a gozação popular, quando o rei Roberto Carlos compôs em 1978 o grande sucesso que foi “Café da Manhã”, na verdade tinha em mente um apaixonado “mão-de-vaca”, que em vez de presentear sua amada com uma sofisticada cesta de café da manhã, optou por algo bem mais barato, achando que apenas um café dava para os dois, que ainda ficou esfriando na mesa: 

AMANHÃ DE MANHÃ
VOU PEDIR O CAFÉ PARA NÓS DOIS
TE FAZER UM CARINHO E DEPOIS
TE ENVOLVER EM MEUS BRAÇOS

Fazendeiro afortunado, senhor de terras e gado, o Major Salustiano - oficial da antiga Guarda Nacional - no fastígio da borracha adquiriu uma imponente embarcação para visitar seus vastos seringais no alto Rio Purus e para se auto homenagear, resolveu batiza-lo com o seu próprio nome e sua patente militar, da qual muito se orgulhava. Porém, vítima de atávica sovinice, o mão-de-vaca mudou de ideia quando soube que o serviço de pintura era cobrado por cada letra desenhada no casco da embarcação. Depois de muita barganha com o pintor, de “MAJOR SALUSTIANO” o majestoso barco passou a se chamar simplesmente de “SALU”, obviamente bem mais barato para o dono. 

Episódios como esse evidenciam que os mão-de-vaca são facilmente identificáveis em quaisquer grupos sociais, pela psicótica aversão que tem a qualquer desembolso, mesmo quando o gasto se mostra absolutamente necessário, pois é sabido que eles jamais abrem a mão para nadar, dar adeus aos poucos amigos ou mesmo para cigana ler a sorte...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras. Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Célio Simões ("O nosso português de cada dia") "Sem eira nem beira"

 
“Eira” é um terreno de chão batido ou rusticamente cimentado onde, em Portugal, os grãos da colheita ficavam ao ar livre para secar. A palavra “eira” vem do latim "área", significando um espaço de terra batida, lajeada ou cimentada, próximo às casas, nas aldeias portuguesas, onde se malhavam, trilhavam, limpavam e secavam cereais. Depois da colheita, os cereais ficavam ao ar livre expostos ao sol, a fim de serem preparados para a alimentação ou para serem armazenados. Quem possuía uma eira era considerado proprietário e produtor, com terras, casa, bens, riqueza, poder e influência social.

E “beira” é a beirada da eira, é a aba da casa, aquela extensão do telhado que serve para proteger da chuva. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário suporta o prejuízo. Há regiões em que este ditado tem o mesmo significado, porém com outra e curiosa explicação. Qual seria? 

Antigamente, como dito acima, as casas dos cidadãos endinheirados tinham esse tipo de telhado triplo: a eira, a beira até mesmo a tribeira, como era chamada a sua parte mais alta. E como a camada pobre da população não tinha condições de fazer tal telhado, rebuscado e dispendioso, se limitavam a construir somente a “tribeira”, ficando, por conseguinte, "sem eira nem beira". 

Por aqui, a expressão surgiu no Brasil Colônia, em referência tanto ao estilo arquitetônico como à condição social das pessoas, incorporando-se à linguagem coloquial, pois até hoje se refere a quem é despido de bens materiais, posses ou dinheiro, que vive na condição de extrema pobreza.

Dizer que determinado indivíduo não tinha “eira nem beira”, significava e ainda significa ser ele economicamente carente, despido de patrimônio pessoal, que não tem onde cair morto, que alguns dizem que “não tem onde cair vivo”, porque morto ele cai em qualquer lugar... A rima contida na expressão tem forte conteúdo discriminatório, pois implícita e jocosamente evidencia a condição de grande parte da população do Brasil que infelizmente é muito pobre, daí ser prudente sua não utilização, mesmo que a título de gracejo.

Na música popular brasileira a expressão marcou presença no DVD “PRA TOMAR CACHAÇA”, do cantor, músico e compositor “Luan Estilizado”, ritmo brega forte e marcante, de sugestiva letra:

“Perdeu o seu cobertor
Não tem mais seu lugar
Tá do lado de fora do meu coração.
Tá no frio e não tem fogueira
No relento, sem eira e nem beira
Sem meus braços pra te aquecer
Sem ninguém pra ficar com você (...)”

O sacerdote, evangelizador, escritor, poeta, compositor e cantor brasileiro, José Fernandes de Oliveira, nacionalmente conhecido como Padre Zezinho, um dos maiores nomes da nossa música cristã, atualmente com mais de três mil músicas em seu extenso repertório, também utilizou a expressão vinda de Portugal em uma de suas composições, que ele denominou “SEM EIRA NEM BEIRA”, cujo texto poético alude à vida despojada de Jesus Cristo: 

“José trabalhava na carpintaria,
cuidando zeloso da sua Maria.
Maria esperava chegar sua hora,
no ventre levava seu filho e Senhor.
Mas eis que um decreto os arranca do teto
que foi testemunha do mais puro amor.
E assim foi que antes de haveres nascido,
te vistes banido pelo imperador.
Por longas estradas que ainda não vias,
sem eira nem beira calado seguias (...)”.

Na literatura, o escritor Jorge Menezes lançou o livro “SEM EIRA, NEM BEIRA” (Editora Jorge Menezes, 92 páginas, ano 2020), no qual, em um momento de fantasia, a personagem Antônio lembra de seu passado, invocando momentos de sua via, tanto os bons, como aqueles marcados pela carência de quem nada tinha para chamar de seu.

Outra escritora, Efigênia Zeferina Costa, também nos legou o excelente livro “MINHA INFÂNCIA SEM EIRA NEM BEIRA” (Editora Efigênia Zeferina Costa, 75 páginas, ano 2020) em que narra com leveza, sem mágoas e de maneira quase poética, as vicissitudes de sua infância e a vida social transcorridas na primeira metade do Século XX em Itapecerica, minúsculo vilarejo no interior de Minas Gerais (hoje município), incursionando numa seara modestamente explorada na literatura, mas com relevante papel na cultura brasileira. 

Pode-se dizer que a expressão “SEM EIRA NEM BEIRA” deixou sua marca indelével na poesia, na música, na literatura, nas rodas de conversas em família ou entre amigos, tantas foram as obras que dela se ocuparam desde que aqui chegou de caravela com os portugueses, e de tão utilizada que continua sendo, acabou “dando panos pras mangas”. Opa! Sem querer, acabamos de mencionar outra expressão idiomática do nosso linguajar de cada dia, que bem poderá vir á lume numa terça-feira qualquer...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Casa da Mãe Joana”

A conhecida expressão "Casa da Mãe Joana", usada quando se quer evidenciar um ambiente marcado pela permissividade, daqueles onde se entra e sai sem controle, todo mundo manda e ninguém obedece, espécie de babel sem qualquer organização, carente de regras mínimas de convivência civilizada. Hodiernamente, trata-se de um local onde todos fazem o que bem entendem, em ambientes presenciais ou virtuais, como acontece, neste último caso, com certos grupos de WhatsApp, com suas postagens repetitivas e impertinentes, sem qualquer interesse para os demais que dele fazem parte.  

A expressão remonta à época de Joana I, rainha de Nápoles e Condessa de Provença (que viveu de 1326 até 1382, quando morreu assassinada), uma jovem linda, inteligente, endinheirada e com atitudes à frente de seu tempo, pois bancava do próprio bolso, boêmios, artistas e intelectuais, dos quais se arvorou ser uma espécie de protetora. Joana levou uma vida desregrada, vivendo de forma conturbada, tanto que foi uma das protagonistas da trama envolvendo o rei francês Felipe IV, que resolveu impor tributos aos bens da Igreja, que a ela também pertenciam - e por esse motivo foi excomungado pelo papa Bonifácio VIII.

Na flor da idade, ao completar seus 21 anos em 1347, Joana I achou por bem normatizar o funcionamento dos bordéis da cidade Avignon, onde vivia refugiada por ter sido acusada de participação no assassinato do seu marido, tendo criado regras para impedir que frequentadores violentos agredissem as prostitutas ou saíssem sem pagá-las. E num desses decretos, foi determinado que os prostíbulos deveriam ter uma porta única, por onde todos poderiam entrar sem pagar ingresso e sair quando quisessem. Tais locais de tolerância no país vizinho passaram a ser conhecidos também em Portugal com o nome de “Paço da Mãe Joana”, deixando claro o sentido afetivo concebido na cidade francesa, de pousada acolhedora e receptiva a qualquer um. 

Sua ousada iniciativa lhe rendeu a pena de exílio imposta pela Igreja, inconformada, em tempos de costumes tão austeros, com a vida publicamente permissiva que Joana I levava, demonstrando seu desprezo às convenções sociais de então, conduta que ela provocativamente nunca deixou de ostentar, até quando, em 1382, foi assassinada por seu sobrinho Carlos, movido pela cobiça de sua herança. Mesmo após a sua morte, seus feitos em Avignon continuaram na boca do povo, onde ela era tida, vista e considerada como  protetora dos seus prostíbulos e das suas meretrizes.

Daquela retrógada Portugal do século XIV, o “Paço da Mãe Joana” chegou naturalmente ao Brasil, só que ligeiramente modificado, pois sendo a palavra “paço” pouco usual, por força da praticidade foi aos poucos sendo substituída por “casa”, consagrando-se assim a expressão “Casa da Mãe Joana” em definitivo, representativa de um lugar onde cada qual faz o que bem entende, sem respeitar nenhuma convenção social, uma casa onde impera a bagunça, o hedonismo, o desregramento, a farra sem limites e a pândega. De tão utilizada na linguagem cotidiana, ganhou até música interpretada pela saudosa cantora Marília Mendonça, com que lhe atribuiu esse mesmo título: 

“Meu coração 
não é Casa da Mãe Joana
pra você bagunçar igual
cê faz na minha cama
respeita quem te ama
cê acha que me ilude
ou vaza ou me assume” (...)

Em 2008, referida expressão idiomática batizou uma comédia de sucesso (da Globo Filmes) sob a direção de Hugo Carvana com um elenco espetacular, integrado pela nata do humor e da dramaturgia brasileira, como José Wilker, Agildo Ribeiro, Juliana Paes, Pedro Cardoso, Laura Cardoso, Mièle, Cláudio Marzo, Paulo Betti, Arlete Salles e Malú Mader, abordando situações inusitadas, com suspense e muita expectativa. Traduzido para o espanhol como “La Casa de la Madre Joana”, o filme conta a história de três amigos de longa data que dividem um amplo e velho apartamento de classe média, do qual precisam sair por dívida hipotecária, impasse cuja pretensa solução ocorreu do modo mais atabalhoado possível. 

No Brasil existem dezenas de lanchonetes, pizzarias, "fast-foods", dançarás, pousadas e mafuás ostentando em suas fachadas essa famosa expressão idiomática, como ponto de referência para deleite da população local. 

Dentre eles, uma acanhada baiúca numa cidade da região do nordeste paraense, inaugurada há alguns anos com o tosco nome de “Bucho Cheio”, que mudou mais tarde para “O Moscão” (enfatizando sua falta de compromisso com a higiene) e finalmente passou a se chamar de “Casa da Mãe Joana” talvez por coerência pois lá, dezenas de pescadores se reúnem nos finais de semana para comer e encher a cara, quando correm soltos os jogos de purinha e o bilharito, as piadas indecentes, a troca de sopapos pelas rivalidades no futebol, as fofocas generalizadas, sendo que ao fim e ao cabo, a exemplo de Avignon, ninguém é impedido de sair mesmo deixando as contas penduradas, que são quitadas somente na semana seguinte, isso quando a sorte torna a pescaria farta e altamente promissora para todos eles...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Dicas de Escrita (Como fazer a análise de um conto)

É importante considerar diversos aspectos que ajudam a entender e interpretar a história em profundidade. Vamos apresentar os tópicos que devem estar presentes para uma análise mais abrangente com exemplos em cada um deles:

1. Resumo da História
Faça um resumo conciso da trama, destacando os eventos principais e a sequência cronológica.

Exemplo: Em "A Cartomante" de Machado de Assis, a história segue Vilela, Camilo e Rita, e gira em torno de um triângulo amoroso e uma visita intrigante à cartomante que dá título ao conto.

2. Personagens
Analise os personagens principais e secundários, suas características, motivações, relacionamentos e desenvolvimento ao longo da história.

Exemplo: Em "O Gato Preto" de Edgar Allan Poe, o narrador é um personagem complexo que sofre uma transformação profunda de um amante de animais para um homem tomado pela loucura.

3. Ambiente (Cenário)
Descreva onde e quando a história se passa. Considere como o ambiente influencia a narrativa e os personagens.

Exemplo: Em "O Coração Delator" de Edgar Allan Poe, o ambiente sombrio e claustrofóbico da casa contribui para a atmosfera de tensão e suspense.

4. Tema
Identifique os temas centrais e subtemas do conto. Pense nas mensagens ou questões que a história levanta.

Exemplo: Em "O Alienista" de Machado de Assis, o tema central é a linha tênue entre sanidade e loucura, e a crítica à autoridade e à ciência.

5. Enredo
Analise a estrutura do enredo, incluindo a exposição, conflito, clímax e resolução. Veja como os eventos se desenrolam e como eles são conectados.

Exemplo: Em "A Dama do Cachorrinho" de Anton Tchekhov, o enredo acompanha o romance extraconjugal de Dmitri e Anna, culminando em um encontro emocionalmente carregado que redefine suas vidas.

6. Ponto de Vista (Narrador)
Determine o ponto de vista da narrativa (primeira pessoa, terceira pessoa, onisciente, etc.). Analise como a escolha do narrador afeta a percepção da história.

Exemplo: Em "A Queda da Casa de Usher" de Edgar Allan Poe, o narrador em primeira pessoa testemunha os eventos sobrenaturais, proporcionando uma perspectiva pessoal e subjetiva.

7. Estilo e Linguagem
Observe o estilo de escrita do autor, incluindo o uso de linguagem, figuras de linguagem, diálogos e descrições. Considere como esses elementos contribuem para a atmosfera e o impacto da história.

Exemplo: Em "A Metamorfose" de Franz Kafka, o estilo direto e quase clínico contrasta com a surrealidade da transformação de Gregor Samsa em um inseto.

8. Simbolismo e Metáforas
Identifique símbolos e metáforas utilizados no conto. Analise seu significado e como eles enriquecem a narrativa.

Exemplo: Em "O Morro dos Ventos Uivantes" de Emily Brontë, a casa Wuthering Heights simboliza a natureza selvagem e intempestiva dos personagens e seus conflitos.

9. Conflito
Identifique o conflito central e os conflitos secundários. Considere como eles impulsionam a ação e o desenvolvimento dos personagens.

Exemplo: Em "A Rosa Púrpura do Cairo", de Woody Allen, o conflito entre a fantasia do cinema e a realidade da vida de Cecilia é central para a narrativa.

10. Resolução e Conclusão
Analise como o conto chega à sua conclusão. Veja se a resolução dos conflitos é satisfatória e como ela afeta os personagens e a mensagem do conto.

Exemplo: Em "O Conto da Aia", de Margaret Atwood, a conclusão ambígua deixa o leitor refletindo sobre o futuro da protagonista e a natureza do regime totalitário em que ela vive.

EXEMPLO DE ANÁLISE

Vamos aplicar essas etapas a um conto famoso, "A Cartomante", de Machado de Assis:

1. Resumo da História:
A história segue Vilela, Camilo e Rita, que formam um triângulo amoroso. Camilo e Rita têm um caso, mas Rita fica preocupada com o futuro do relacionamento e consulta uma cartomante. A cartomante prevê um futuro positivo, mas o conto termina tragicamente com a morte de Camilo, assassinado por Vilela.

2. Personagens:
- Camilo: Jovem indeciso e ansioso em relação ao relacionamento com Rita.
- Rita: Mulher apaixonada e supersticiosa.
- Vilela: Marido traído que toma medidas drásticas.

3. Ambiente:
A história se passa no Rio de Janeiro do século XIX, com cenários urbanos que refletem a sociedade da época.

4. Tema:
Superstição versus realidade, amor e traição, destino e livre-arbítrio.

5. Enredo:
A narrativa segue a descoberta do caso amoroso, a consulta à cartomante, e a resolução trágica com o assassinato de Camilo.

6. Ponto de Vista:
Narrador em terceira pessoa onisciente, que proporciona uma visão completa dos pensamentos e ações dos personagens.

7. Estilo e Linguagem:
Machado de Assis utiliza uma linguagem formal e rica em detalhes, com descrições vívidas e diálogos realistas.

8. Simbolismo e Metáforas:
A cartomante simboliza a influência da superstição na vida dos personagens. O destino trágico de Camilo reflete a inevitabilidade das consequências de suas ações.

9. Conflito:
O conflito central é o triângulo amoroso e a tensão entre a superstição e a realidade.

10. Resolução e Conclusão:
O conto termina com a morte de Camilo, deixando uma reflexão sobre a influência da superstição e o poder das ações humanas.

Ao seguir essas etapas, você pode fazer uma análise detalhada e completa de qualquer conto, destacando seus principais elementos e temas.

Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos textos: Contos e Crônicas. Maringá/PR: Copilot – Plat. Poe.  Biblioteca Voo da Gralha Azul..
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quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Chato de galocha”

É o famigerado “mala sem alça”, “dose pra elefante”, “dose pra cavalo”, que não tem “simancol”, termo popular utilizado quando alguém não se toca, não se manca, não percebe que está sendo impertinente, inconveniente, sem senso se oportunidade, de comportamento social desagradável, que se insinua sem ser chamado, é repetitivo, insiste em assuntos desinteressantes ou que só a ele interessam e por isso todo mundo dele quer distância.

O pior é que esse tipo de pessoa, independentemente do nível de escolaridade, nem se dá conta de quão inconveniente é. Os “CHATOS DE GALOCHA” tem um status mais elevado na escala mundial da chatice, formam uma categoria especial, pois de tão inoportunos, conseguem chatear o chato, dizem anedoticamente que chegam a dar dor de dente em serrote.

Quanto à origem da expressão, acredita-se que ela tenha surgido em meados da década de 50, quando o uso de galochas era um costume típico entre homens e mulheres. Galochas são botas usadas para proteger os pés do contato com a água, preservando-os da umidade, principalmente durante o inverno, onde prevalecem ambientes alagados e de muita lama. São feitas de material muito resistente, normalmente de borracha sintética e são calçadas por cima dos sapatos normais, servindo-lhes de proteção e mantendo os pés aquecidos.

A expressão se firmou porque, durante o período invernoso, antigamente o indigesto cidadão calçava suas galochas e entrava na residência de pessoas conhecidas, emporcalhando a casa do anfitrião, que naturalmente achava aquilo um despautério, porém ficava inibido de esboçar qualquer reclamação, em razão do vínculo de amizade, compadrio, vizinhança, relação de negócios ou de parentesco que geralmente existia entre a vítima e o chato. Quando finalmente iam embora, seguia-se a faina da família para a limpeza, não sem muitos impropérios contra o abominável visitante.

Atualmente, a expressão continua sendo usada para descrever pessoas com especial talento para aporrinhar a paciência alheia, encher o saco, mesmo que hoje não mais usem galochas, cada vez mais raras de serem vistas, por terem caído em franco desuso, sendo substituídas pela bota de plástico em PVC, largamente utilizada nas obras da construção civil, postos de gasolina, lojas de autopeças, agroindústrias, atividades agrícolas, pesca, etc. 

É muito difícil para alguém nunca ter encontrado esse tipo irritante de pessoa ou dela ter sido eventual vítima predileta. Em qualquer situação, “CHATO DE GALOCHA” é uma expressão idiomática muito usada entre os brasileiros para descrever uma pessoa inconveniente, irritante, pegajosa e que se comporta de forma inapropriada, constrangendo os demais presentes ou convidados.

Ouve-se, comumente desabafos do tipo: “fulano é um chato de galochas, não deixa ninguém falar”. Ou, “o meu dia até que estava ótimo até aquele chato de galochas infelizmente aparecer”. E ainda situações marcadas pelo radicalismo: “eu não vou sair com vocês hoje, porque o sicrano vai e ele é um chato de galochas, vai estragar a nossa noite”.

A verdade é que gente chata costuma ter algumas características em comum, por isso são facilmente identificáveis e a partir daí, abertamente evitadas. São polêmicas, raivosas, reclamam de tudo, insistentes, rudes, manipuladoras, sarcásticas, rancorosas e parecem padecer de uma deficiência que se torna o denominador comum entre todas elas: – nunca percebem que são chatas. 

Um traço importante da personalidade desses indivíduos é que eles costumam discordar de tudo, não possuem sendo de humor, são mesmo “do contra”. É evidente que a percepção da chatice tem nítidas consequências sociais, afetando a cordialidade que as pessoas devem merecer em circunstâncias normais de convívio social e de relações interpessoais. 

Conta-se que um conhecido e notório “CHATO DE GALOCHA” de uma pequena cidade ribeirinha, daqueles que entra numa conversa para ter o prazer de discordar e ser contrário à opinião da maioria, ao fazer a travessia de barco para a margem oposta enfrentou uma ventania, naufragou e pereceu afogado.

Vários dias foram gastos pelas equipes de resgate, que vasculharam rio abaixo atrás do corpo e nada encontraram. Até que alguém lembrou que ele passara a vida sendo contra tudo, mesmo aquelas iniciativas mais louváveis dos amigos eram por ele contestadas. E a partir desse “estalo” passaram a procurar o corpo do náufrago rio acima, onde ele finalmente foi encontrado. Ou seja, fiel à sua própria chatice, até depois de morto seu corpo deslocou-se contra a correnteza...  
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
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quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Santinha do pau oco”

A língua portuguesa possui inúmeros dizeres interessantes, que permanecem imutáveis ao longo do tempo, representando um forte viés cultural para o idioma. Esses dizeres podem ser fundamentados na cultura do próprio país ou ainda, ter influência estrangeira, mitológica, religiosa, histórica, etc. 

Sabe-se que a partir dos cinco ou seis anos, as crianças começam a usar pelo menos algumas delas, que são repetidas com frequência em casa pelos pais e amigos, e esse procedimento de expressões populares repetitivas acaba por se incorporar ao acervo cultural de uma pessoa, contribuindo assim para o enriquecimento do dicionário mental de cada qual na vida adulta.

Existe uma justificativa histórica para a expressão “SANTINHA DO PAU OCO”, que utilizamos para designar uma pessoa de caráter duvidoso, mentirosa ou falsa, surgida ainda no tempo do Brasil Colônia, por volta do Século XVII em Minas Gerais, berço da mineração do ouro, na época pesadamente tributado em 20% a título do “quinto”, que constituía a parte imposta pela coroa portuguesa como condição básica para quem se dedicava à garimpagem, extração e comercialização de metais preciosos em solo brasileiro.

Vivíamos o apogeu do domínio do catolicismo nas cidades e no campo, pela forte influência da Igreja Católica num Estado não laico, pontificando o talento dos artesãos que esculpiam em madeiras previamente selecionadas, a imagem dos santos que mais tarde viraram cobiçadas relíquias do barroco brasileiro, confeccionados propositadamente ocos, para que pudessem ser recheados de ouro em pó, assim driblando a rígida fiscalização vigente, que impunha um escorchante tributo cobrado pelas “Casas de Fundição”, repartições incumbidas de arrecadar os impostos sobre a mineração no Brasil.

A partir de então, a dita expressão invariavelmente alude à pessoa conhecida como sonsa, que aparenta ter um temperamento cordial, agradável e inocente, mas na realidade é o oposto, pois age de modo sorrateiro, escondendo suas intenções, no mais das vezes malévolas e o que é mais grave, com o obscuro e inconfessável propósito pessoal de levar vantagem, de tirar proveito.

Cairon e Márcio Oliveira aproveitaram o tema para enriquecer o cancioneiro popular, com um texto poético que revela o sentido pejorativo da expressão:

Eu pensava que você era santinha
eu jurava que você era só minha
mas foi tudo ilusão
e o meu pobre coração
você fez de bobo
Sua santinha do pau oco...

Na esteira dessa composição musical, os cantores e compositores Jefferson Morais, Luís Marcelo e Gabriel, Márcio Dhuka e Marreta, também lançaram suas canções com a mesma denominação - “SANTINHA DO PAU ÔCO” - evidenciando que não constitui motivo de orgulho para ninguém ser assim rotulado, por exprimir um conceito negativo, rebarbativo, quase sempre de pessoa falsa ou dissimulada, na qual não se deve confiar, nem mesmo rimando: 

Com a santinha de pau oco
todo cuidado é pouco!
Confiou, ela te engana
e te deixa no sufoco...

E assim se consolidou essa expressão que atravessou gerações e até hoje surge quando no meio social em que vivemos aparece alguém - homem ou mulher, jovem ou idoso - que por razões insondáveis, lança mão da dissimulação e da esperteza, para ludibriar outrem. 

E basta olhar em volta, pois em qualquer aglomerado humano, dos mais modestos aos requintados, essa nefanda figura pode ser identificada com facilidade, bastando que se observe seu agir manhoso, astuto e disfarçado, visto pela psicologia como inerentes a quem oculta seus sentimentos reais, ludibriando quase todo mundo, para só depois mostrar suas verdadeiras e turvas intenções. 
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fonte: Enviado pelo autor

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) ““Botar as barbas de molho”

É outra expressão popular da língua portuguesa, que equivale a “deixar as barbas de molho” ou “colocar as barbas de molho”, justamente porque todas elas indicam que determinada pessoa, com presumível culpa no cartório, deve ficar alerta, esperta, preparada para o que der e vier, porque a sua “batata está assando” e mais cedo ou mais tarde haverá algum ajuste de contas.

Desde a mais remota Antiguidade a Idade Média, a barba sempre foi vista e considerada como o símbolo máximo da masculinidade, da honra, da determinação e do poder. Por essa ótica, era impensável que um indivíduo, ciente desses atributos, permitisse que outro - barbeiro ou não - cortasse sua barba, pois isso significava indignidade, flagrante, pública e inaceitável humilhação perante o meio social em que a pessoa vivia. 

Com o passar do tempo e até os dias de hoje, ouvir alguém dizer que alguém deveria “deixar suas barbas de molho”, significa aludir que por algum motivo, o tal sujeito deveria ficar de sobreaviso, prevenido para qualquer eventualidade, porquanto algo ocorrerá acabando por lhe impor determinada penalidade. 
 
Na Espanha é de cediço conhecimento famoso provérbio que diz: “Quando você vir as barbas de seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho” indicando, com base no que aconteceu com alguém muito próximo, que a mesma coisa poderá acontecer com o próprio.
 
Alguns estudiosos afirmam que esta expressão sofreu uma corruptela motivada pelas condições de pobreza que caracterizou a sociedade brasileira na primeira metade do Século XX, fase histórica na qual os cortiços que albergavam os menos favorecidos eram construídos pegados uns aos outros, tendo como cobertura um capim denominado “bargas”, quase uma variação do sapê, tendo  na Amazônia seu correspondente na carnaúba, no babaçu, no buriti e na piaçava, que se prestam à cobertura dos barracos ribeirinhos. 

Pois bem, tais habitações utilizavam grandes fogões à lenha para o preparo das refeições dos moradores, que lançavam fagulhas que causavam incêndios entre elas, facilmente disseminados pelo vento, devastando todas as que estavam próximas. Daí adveio o costume do vizinho da casa que ardia em chamas de molhar intensamente seu telhado, como meio hábil de salvá-la, surgindo assim a expressão: “Fulano colocou suas “bargas” de molho, porque que a casa do vizinho está queimando!”, fala popular transmudada para “barbas”, pelo repetitivo dizer dos que enfrentavam o problema.

A expressão é tão utilizada que inspirou o livro “Barbas de molho” do escritor Luís Pimentel (Editora Dimensão, 64 páginas), que recebeu o Prêmio Cruz e Souza de Santa Catarina, pela Menção Honrosa recebida como finalista do Concurso Nacional de Literatura João-de-Barro, do Estado de Minas Gerais, ao discorrer sobre a vida de um menino no Brasil dos anos 30, contando seus primeiros encontros amorosos, os meandros da revolução tenentista, a pobreza do bairro em que morava e, mesmo assim, sua grande alegria de viver.

Pela sua popularidade, o tema inclusive foi objeto dos versos da esquecida e jocosa Dança da Desfeiteira, praticada nos folguedos juninos das cidades do Baixo Amazonas, onde os versejadores não deixaram por menos:

O cavalheiro:
tapuinha oferecida
no teu gingar estou de olho
contigo na minha vida
vou botar as barbas de molho...

A dama: 
Te manca, chifrudo!...

Barbas longas e bem cuidadas sempre fizeram a fama de muita gente no mundo todo, que por causa delas faturaram respeitabilidade e fixaram imagem identitária inconfundível, talvez por isso nunca admitiram raspá-las, do que é o melhor exemplo Papai Noel, ícone universal do Natal, que viraria apenas mais um na multidão trajado de vermelho, sem a sua branca e esvoaçante barba.

Para ficar só entre os políticos que governaram o Brasil nos primórdios da República, Deodoro, Floriano, Prudente de Morais, Rodrigues Alves e no Segundo Império, o respeitável, visionário, generoso e culto Imperador Dom Pedro II (um nobre de origem e não de título comprado), que teve o privilégio de existir na época áurea em que um fio da barba ou do bigode tinha a força de um documento solene para selar compromissos, prática de há muito postergada pelos espertalhões de todo tipo com os quais, nos dias de hoje, as pessoas de bem tem a desventura e a má sorte de conviver.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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domingo, 29 de dezembro de 2024

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Onde a coruja dorme”


A expressão é bastante conhecida no meio futebolístico, e é usada principalmente pelos locutores esportivos para indicar que a bola entrou, após ser chutada por acaso ou com maestria, em um dos ângulos retos superiores da trave do gol. Invariavelmente se ouve, com o entusiasmo próprio de quem narra uma partida: – Golaço! A bola entrou onde a coruja dorme!…

É um dos lugares mais difíceis para um goleiro defender a bola, haja vista que por mais que tente, não consegue impulso suficiente para alcança-la a tempo de impedir a marcação do gol. Este tipo de chute também é conhecido no meio esportivo como “chute na gaveta” ou “chute no ângulo”. Antigamente, alguns narradores variavam o jargão e também diziam “onde a coruja faz o ninho”.

Mas afinal, quando e porque teria surgido essa expressão? Circula entre os entusiastas de futebol (e que no Brasil são milhões) a versão de que nos anos 70, numa fria noite de muita garoa, o time da Sociedade Esportiva Palmeiras enfrentava um adversário de menor expressão, numa partida morna, pelo evidente desequilíbrio das forças entre os dois competidores. Como o Palmeiras era muito superior, fazendo prever uma goleada contra o fraco opositor, os fotógrafos incumbidos de cobrir a peleja se posicionaram atrás do gol do adversário, esperando que o poderoso Palestra Itália iniciasse a qualquer momento o festival de gols.

Enquanto isso não acontecia, o tranquilo goleiro palmeirense, com pouco ou nenhum trabalho para fazer, se recostou em sua trave, cruzou os braços e encolheu-se para melhor se proteger do frio que naquela oportunidade fazia. Foi quando no canto superior oposto de onde ele se encontrava, pousou uma vistosa coruja e lá ficou quieta, observando atentamente a movimentação dos arredores. De imediato, mesmo estando do lado oposto do campo, o fotógrafo Domício Pinheiro percebeu a inédita cena, correu rapidamente até lá e registrou numa única foto, que ele tirou posicionando-se por trás do gol, a indigitada coruja pousada lá em cima, no canto da trave, hirta de frio causado pela chuva fina, entorpecida e imóvel como se estivesse dormindo, porém visivelmente sintonizada com a própria monotonia do jogo que o goleiro enfrentava.

Para preservar o “furo” jornalístico ele espantou a coruja, para que nenhum outro fotógrafo dela fizesse a mesma foto, que posteriormente foi publicada como ilustrativa do que foi a pasmaceira daquele jogo. A partir daí, quando um jogador acerta qualquer dos ângulos numa partida de futebol, os locutores alardeiam que a bola entrou “onde a coruja dorme”. É bom lembrar que os locutores de futebol também são artistas natos, cada qual com a sua narrativa personalizada, seus jargões prediletos, que se tornam uma espécie de marca registrada de cada qual, e também constituem parte do espetáculo, pois são capazes de cativar o público com a sua verve e criatividade. Assim, naturalmente, a classe desses talentosos profissionais acabou adotando a expressão para tipificar as situações acima descritas.

De tão emblemática se tornou a expressão, que fora do futebol, passou a servir também para definir as vivências de cada qual em situações limites. “Eu vou onde a coruja dorme…” foi a frase adotada pelo cantor e compositor Bezerra da Silva, para definir seu tortuoso e sofrido processo de trabalho para se firmar no meio musical. Com seu jeito malandro desde o início da carreira, o festejado artista percorria os morros e recantos da Baixada Fluminense gravando sambas de jovens desconhecidos e buscando inspiração para encantar com a sua música o público brasileiro, com letras bem humoradas sobre o cotidiano das favelas.

Que a vida de goleiro não é fácil bem sabem aqueles que já levaram um frango vergonhoso nos acréscimos do segundo tempo. Em algumas situações, no entanto, tudo parece conspirar contra esses valorosos atletas responsáveis por manter o placar inalterado durante o jogo inteiro. Bola chutada de longe que entra “onde a coruja dorme” nem de longe constitui um frango, apenas uma circunstância favorável ao atacante e adversa a qualquer goleiro.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Uruá Tapera. 10 junho 2024.
https://uruatapera.com/onde-a-coruja-dorme/
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quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Terminou em pizza”

Essa é uma expressão idiomática genuinamente brasileira. E por ser brasileira, sintomaticamente teve origem no mundo do futebol em terras paulistanas, haja vista que a pizza foi introduzida na nossa culinária com os imigrantes italianos que aqui chegaram desde o final do século XIX, sendo São Paulo conhecida como a capital nacional da pizza e na pauliceia, o Bixiga, a Mooca e o Brás são bairros que se destacam pela cultura vibrante, histórias fascinantes e rica culinária, com seus restaurantes, pizzarias famosas e padarias inigualáveis.

Remonta ao ano de 1874 a chegada dos primeiros colonos italianos ao Brasil a bordo do veleiro “La Sofia”, que atracou em Vitória (ES), a partir de onde a maioria se estabeleceu nos estados do Sul e Sudeste, especialmente em São Paulo e no Rio Grande do Sul, estados onde a forte influência italiana é percebida também na arquitetura, nos eventos culturais e na vida social. 

E a pizza, inicialmente consumida apenas pela comunidade italiana, aos poucos foi conquistando paladares brasileiros, até que na década de 50 foi inaugurada a “Casa Vêneta” em São Paulo (SP), considerada a primeira pizzaria do país, a partir da qual o consumo de pizza se popularizou de maneira irreversível, e aos poucos chegou a todos os Estados brasileiros. E o que tem a ver o costume de comer pizza com essa expressão famosa?

Para os desavisados, ela foi criada pelo jornalista e apaixonado torcedor palmeirense Milton Peruzzi, que trabalhava na radio e TV Tupi como locutor e comentarista esportivo, titular da coluna “Periscópio” no jornal A Gazeta Esportiva. E por causa do seu incondicional amor pelo clube, o Palmeiras, muitos anos após sua morte, a Diretoria Palmeirense colocou em 2008 seu nome na sala de imprensa do famoso clube, que nos primórdios chamava-se Palestra Itália, nome abolido durante a 2.ª Guerra Mundial, na qual o Brasil lutou contra as potências do Eixo, integrado por Alemanha, Itália e Japão.  

Conta-se que na década de 1960, quando uma grave crise se instalou entre os dirigentes da Sociedade Esportiva Palmeiras, foi marcada uma reunião para estabelecer diretrizes para equacionar e encerrar um amontoado de problemas que estavam inviabilizando o clube e o próprio time de futebol, conclave que se estendeu por mais de mais de quatorze horas, chegando a um ponto em que os participantes foram vencidos pelo cansaço e pela fome.

Sendo a maioria dos “cartolas” descendentes de italianos, fizeram eles uma pausa nas discussões e encomendaram nada menos que 18 pizzas gigantes, chope, vinho e acepipes diversos, para que, assim alimentados, pudessem prosseguir naquela jornada de acusações e debates, em busca de alguma solução para tantos problemas, que pela complexidade, se afigurava difícil.

Ao fim do bate-boca, dos dedos em riste e daquela pantagruélica comilança, chegou-se a um acordo por via do qual ninguém seria diretamente considerado culpado de nada ou responsável pela caótica situação que provocou a própria reunião. Mercê desse desfecho inesperado, o inteligente e criativo jornalista esportivo Milton Peruzzi, antes citado, publicou a notícia em sua prestigiada coluna, com o seguinte título: “CRISE DO PALMEIRAS TERMINA EM PIZZA”.

Foi o que bastou para que assim passassem a serem conhecidas todas as crises ao fim das quais, por força do corporativismo profundamente entranhado nas instituições brasileiras, “não pega nada para ninguém” ou “tudo termina numa boa”, ficando tudo sem qualquer punição, com os comprovadamente culpados saindo absolutamente incólumes de seus deslizes.

E de tanto ser utilizada no cotidiano, tal expressão chegou à política, mas esse tipo de cambalacho não se limita ao futebol e à política, seus laboratórios prediletos. Atualmente, em qualquer instituição que se possa imaginar, surgem espertalhões que concebem manobras escusas, com o único fito de tirar proveito pessoal e quando o escândalo vem à tona, entram em cena os apadrinhadores, esgrimindo enfáticos argumentos para não deixar prosperar a apuração, capaz de desmascarar e punir o autor da fraude ou do engodo.

Talvez por isso o saudoso Milton Peruzzi, falecido em 21/02/2001, nos deixou sabendo que a expressão idiomática por ele definitivamente criada, nesses mais de 50 anos se tornou sinônimo de compadrio, de conchavo, de arranjo, de ação entre amigos em prol da impunidade, apostando no “deixa tudo como está para ver como é que fica”...
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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