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| Quebra-cabeça da vida |
De fragmentos, tento fazer meu todo. Pedaço aqui, pedaço ali. No final do dia, além do cansaço pelo extasio, vejo-me como quebra-cabeças mal-acabado, de peças mal ajustadas. Há falhas nas junções que não consigo preencher, motivo pelo qual o retrato não satisfaz.
O coração bate como asas de andorinha, mas, enquanto ela vai, ele fica. Em mim, como as mãos ajustadoras de cacos. Elas tremem no delicado tremor que os anos insistem em colocar, e os dedos, mais que indecisos, têm dificuldade nos encaixes que fazem a vida. É a incerteza que chegou de manso.
Essa escreve ainda em linhas retas, consegue colocar acentos que as vogais pedem, as vírgulas e os pontos. E sabe que haverá de percorrer as reticências... e nesse trotar bêbado que fazem os passos, mantém esticadas as linhas tortas do caminho.
Meus velhos olhos quase não enxergam o futuro. Há postes sem lâmpadas, há matos no leito da estrada, há penumbra a se derramar aqui e ali. São montículos de dificuldade, mas carregam em si o passado com suas cores, brilhos e até estupidez.
Há sempre alguma coisa de estúpido no passado. Tente enxergar o seu e veja o quanto e o tudo que poderia ter sido feito; que agora, encostado no parapeito que regula o tempo, vê-se que a água que se deixou passar não faz mais o rio e não moverá moinho algum da existência. São as oportunidades perdidas!
Meu passado me lembra da voz grave e engrossada pelo cigarro a sair em trotões da boca do meu pai, da voz limpa, suave e incisiva da mãe, dos panos quentes da irmã mais velha na proteção de meu traseiro quando a bola quebrava xícaras, da cinta dependurada num prego fincado na parede como aviso, da pá de polenta aquecendo-se na panela do fogão à lenha, do gato se alisando em quem estivesse parado, das galinhas com pintinhos ciscando o chão e dos ninhos, vários, entre os ovos de chocar e os de comer, da roupa no varal, da privada de casinha, do forno de tijolos e do cheiro bruto de necessidade.
Havia necessidade nos olhos de meu pai, carência nos da minha mãe, privação nos dos irmãos e indagação nos meus, mas havia também sorrisos de vez em quando, talvez para enganar a pobreza. Ela detesta alegria. Tem medo da persistência.
Ali o tempo era simétrico: harmonioso ao desenhar a necessidade diária que tira de cada um o instinto de evolução e transforma o esforço do grupo exclusivamente em função da sobrevivência. Vencer as contas, o aluguel e o verdureiro era a tônica ao juntar tostões. As roupas gastas do pai transformam-se em novas dos filhos e os tecidos floridos dos aniversários, em vestidinhos de missa. Nos pés, quantas alpargatas rotas passaram por eles? Não tem conta.
Pedaços do ontem que se juntam a fazer das mãos trêmulas e olhos cansados o lenitivo, compondo com gratidão o passado. Sim, esse que nos dá um presente especial. Naquelas dificuldades, sim, havia um desejo: o de lutar.
É ela que faz com que esses caquinhos de vida a que chamamos lembrança, bem se encaixem na composição de ótimo retrato.
A beleza ou a feiúra ficam por conta de nossos olhos.
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RENATO BENVINDO FRATA (79) nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs: Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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