segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Cecy Barbosa Campos (O Malabarista)


Poderia ter uns quinze anos, mas sua fisionomia gasta e cansada e o olhar sem brilho demonstravam que a sua vivência não correspondia a tão curto período de vida.

Costumava encontrá-lo na mesma esquina, de segunda a sexta-feira, quando voltava do trabalho. O ônibus parava no sinal, e eu o via na pista lateral, a dos automóveis, fazendo os seus malabarismos com pequenas bolas que jogava para o ar e que pareciam lá permanecer, pois o toque em suas mãos era tão sutil, que quem o observava tinha dificuldade em perceber. Rapidamente, encerrava aquela apresentação relâmpago, para ter tempo de percorrer os carros, estendendo a mão aos motoristas antes que surgisse a luz verde que não representava esperança – ao contrário - muitas vezes, ela evidenciava o desapontamento pelo parco resultado da coleta ou o desgosto misturado à raiva, pelas admoestações que os motoristas frequentemente lhe dirigiam.

Houve tempo em que ele mesmo observava os malabaristas do trânsito e se encantava com a habilidade deles. A mãe puxava-o pela mão, apressada, pois tinha que deixá-lo na creche antes de continuar seu caminho para a casa, onde trabalhava como empregada doméstica. 

A vida parecia bem encaminhada para aquela família humilde. O irmão estudando no Grupo Escolar; a mãe, ativa e descontraída, limpando, com zelo, a casa dos patrões e o barraco em que habitavam. O pai era vigia e mostrava-se orgulhoso de suas responsabilidades.

De repente, da noite para o dia, tudo mudou. Um tiro certeiro atingiu o coração do pai quando, bravamente, ele enfrentou os bandidos que assaltaram a firma em que trabalhava. O desespero da mãe levou-a a um infarto fulminante alguns dias depois; o irmão, assediado pelos traficantes do morro, passa a ser usado por eles sem possibilidades de escapar e tomar outro caminho,

Edilson compreende que deve fugir daquele local e vai para o outro lado da cidade, onde aprende o jogo das bolas que passam a servir-lhe de ganha-pão.

Agora, não mais se encanta com os movimentos que se desenham no ar. Os insultos que ouve de alguns motoristas, ao mesmo tempo em que machucam seu coração, servem de alerta para a necessidade de conseguir algum tipo de serviço.

Fiquei sabendo de sua história porque, cedendo a um impulso, desci do ônibus naquele sinal e decidi-me a abordá-lo. Desconfiado, não queria conversa, mas, aos poucos, sua resistência foi diminuindo e acabou respondendo ás minhas perguntas.

Combinamos que eu tentaria arranjar-lhe algo que pudesse levá-lo ao aprendizado para alguma profissão. Consegui, através de alguns contatos, localizar um jardineiro que, há muitos anos servira aos meus avós. Aposentado, não mais trabalhava assiduamente, mas conhecia a arte da jardinagem como ninguém e mesmo sem os requintes de um paisagista tinha bom gosto para combinar diversos tipos de plantas e mãos de ouro que faziam a terra aceitar prazerosa mudas e sementes que nela inserisse.

Conversei com o bondoso ancião que, feliz, aceitou a incumbência.

Levei-lhe o Edilson. Os dois se entenderam às mil maravilhas. O experiente jardineiro, além de transmitir as manhas do ofício, praticamente completou a educação do outro neto que ganhara.

Por algum tempo, nada soube a respeito deles. Depois fiquei sabendo da partida do velho que, por certo, fora plantar flores ainda mais belas, em outros jardins. Anos mais tarde, li num jornal uma noticia pequena que falava de um rapaz que, levando ás costas um caixote com as flores que cultivava, fora atingido por uma bala perdida. Ao cair, sobre o seu corpo espalharam-se os pequenos buquês que, cuidadosamente, arrumava e vendia à porta de um restaurante próximo.

O caso não teve nenhuma repercussão. O Edilson fora apenas mais uma vítima de balas perdidas que, diariamente, aumentam as estatísticas das grandes cidades.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Pétalas do Quotidiano) 1


GAÚCHO

Sou gaúcho e sinto o brilho
do Rio Grande em ação,
tenho orgulho de ser filho
deste pedaço de chão.
Ao Brasil, de pé agradeço,
pela evolução notória,
a ele o meu braço ofereço
para escrever sua história.
Conclamo os concidadãos
que também doem as mãos
pra cantar grande vitória.

Ninguém, sem um paradigma,
consegue os passos seguir,
inerte estagna e no estigma
falta um sonho a perseguir.
Não chore a chance perdida,
outras hão de aparecer,
fosse à morte o fim da vida,
não vale a pena viver...
Desperte e mude o cenário,
desentranhe o relicário
dos valores sem temer.

TROPEIRO

O tropeiro anda apressado
nos campos da humanidade,
busca forças, se cansado
lhe faltar vitalidade.
Nas estâncias do passado
cavalga na plena herdade,
mesmo quando arremessado
sobre a relva da saudade.
Rédeas e cabresto alçado,
comemora ao ter laçado
no abraço à felicidade.

Estribo, sinal de alerta,
tilinta a espora tal guizo,
ao ver a porteira aberta
apear nem é preciso,
relho na anca do cavalo
curva o queixo rente a crina
solta um queixume do estalo
sussurrando na colina,
nada tem a conturbá-lo,
vive em paz sem intervalo
com a proteção divina,

Se no campo falta o luxo
tem sobrado a animação,
segue a vida do gaúcho
pautada na tradição.
Aos gritos do pensamento
a alma presta continência,
ecoando ao som do vento
nas coxilhas da existência.
Crença na eterna bondade
do Patrão da eternidade,
herança pra descendência.

Quando chega o fim do dia
no horizonte o sol se lança
e a brasa que antes ardia
em brisa na noite avança,
pondo à cuia a erva da paz
e a água da fraternidade,
sorve o chimarrão que faz
tornar mais forte a amizade.
No assobio da persistência
desperta com nova essência
do sonho à realidade.

CAVALEIRO

Cavaleiro veste o brio
rasga a mata e o infinito,
porque a luta o fez perito
frente a cada desafio.

Traz no cabresto a saudade
em seu tordilho montado,
reponta um vasto passado,
buscando a felicidade.

Galopeia, livre e forte,
nas verdejantes colinas,
solta as rédeas campesinas,
olhar fixo para o norte.

Após longa caminhada,
passa rente à jovem mata,
berço da velha cascata
hoje, na mente calada.

Pouco dos sonhos restou
além das recordações,
se orgulha das tradições
que nas andanças plantou.

POR UM CENTAVO

Por um centavo, na esquina,
o pedinte suplicava
porque à compaixão divina
quase não mais esperava,
do carro em velocidade
passando, o ronco ficava,
mesmo assim na caridade
a esperança alimentava,
vivendo à precariedade,
em busca de saciedade
de pedir nunca cansava.

Mãos estendidas em vão
tristemente se fechavam,
sem ver sequer um tostão
pelos ares balançavam.
Olhos voltados ao chão
e o cabelo esvoaçava,
com um gesto de perdão
seu semblante murmurava:
- obrigado, de antemão,
um centavo é muito bom,
agradecendo acenava.

VELHO TREM

Das videiras, vistas tinhas.
Nas linhas: uvas maduras.
Tu trem! Sozinho não vinhas,
continhas luzes futuras.
Cortaste os vastos vinhedos,
pelos trilhos da bonança,
roçando em fartos rochedos
da mais augusta esperança.
Caxias, feliz cantava,
contigo há muito contava
repleta de confiança.

Sobre os trilhos do passado
rumo à serra o trem seguia,
lento, porém carregado,
dos bens que não produzia,
frente à estação sem revés,
feliz, o povo acorreu,
mês de junho do ano dez,
um novo tempo nasceu.
Toda a cidade, talvez,
muito mais que intrepidez
um salto ao futuro deu.

NOSTALGIA

Uma tépida bruma deita
num lençol de nostalgia,
cobre o desfecho do dia
sem deixar sequer vestígio,
na natureza o prodígio,
que aos homens tanto deleita.

Transpassa a noite calma
como lança sem piedade,
Se hospeda no fundo d'alma
fazendo brotar a palma
entre espinhos e ansiedade.

Nas veredas da vacuidade
chancela um amanhã ameno,
lisonjeiro, caminho sereno,
que leva à posteridade.

Se por nostalgia chamamos
tudo quanto traz saudade,
paremos e então vivamos
intensamente a realidade.

 OUSADIA

Ninguém seja simplesmente
mais uma alma peregrina,
tal uma estrela cadente
que mal a noite ilumina,
à sombra do facho ausente
brilhe a maior obra prima
dando fulgor ao presente
sob a forma de cortina,
colha o fruto da semente
que o passado eficazmente
plantou pela mão divina.

O brilho da caminhada
e os sonhos a conquistar,
não dependem só da estrada
mas da vontade de andar,
se uma pedra for jogada
com o fim de atravancar,
seja logo fragmentada
antes de danos causar
e assim não seja acusada
de ser uma autora ousada
que se orgulha em derrotar.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro gentilmente enviado pelo poeta.

Isabel Furini(Conto e Crônica: Gêmeos Univitelinos?)


Conto e crônica são considerados gêneros de fácil execução, por isso atraem os principiantes. Em “O Livro do Escritor” (editora Instituto Memória, 2009), ao analisar os contos falei: “Escrever contos é uma boa opção para iniciantes. O trabalho conclui-se mais rápido. A ansiedade termina em pouco tempo. Isso pode criar a falsa ideia de que escrever um conto é uma tarefa menor: talvez insignificante. Critério errado. A estrutura do conto não é mais simples que a do romance. É diferente. Escrever um bom conto é difícil.

Mas, ao final quais são as características de um bom conto? O conto, como qualquer texto ficcional, cria um universo paralelo. E esse universo deve ser plausível. Alguns dizem que um bom conto é aquele que o leitor lê sem parar, quase sem respirar. Um conto precisa de uma narrativa intensa, de tensão. No conto tudo se encaminha para o desfecho, o escritor não tem tempo de tratar assuntos laterais. O conto é curto e condensado. 

Cortázar dizia: “O conto está para a fotografia como o romance está para o cinema”. Mas, o que é importante numa fotografia? Para fazer uma fotografia artística é preciso determinar vários elementos, entre eles, enquadramento, luz, definição, proximidade. Pois bem, o mesmo acontece com o conto. Exige enquadramento, ou seja, limitação do assunto, de personagens e de ambiente. Assim como um fotógrafo, o contista se pergunta qual será o melhor efeito, se deve iluminar mais a figura central ou iluminar um lado e deixar o outro `as escuras. Qual ângulo dará a melhor perspectiva? Qual dará mais profundidade? No conto, a perspectiva do personagem, a profundidade que pode alcançar, são elementos que enriquecem a narrativa. 

E a crônica? Já foi considerado um gênero híbrido por flutuar entre a literatura e o jornalismo. A crônica tem pontos em comum com o conto. As duas são narrativas curtas. Além disso, a crônica também admite personagens, o que a torna muito semelhante ao conto. 

Então, quais são as diferenças? Enquanto o conto admite enredos infinitos, a crônica focaliza assuntos cotidianos. O conto admite vários incidentes. A crônica, só um incidente. A característica marcante da crônica é o ponto de vista, a opinião, o comentário, elementos que o conto dispensa. Não é raro confundir os dois gêneros. Isso acontece muito e provoca longos debates em concursos literários. Porque enquanto alguns consideram que a crônica deve ser simples, tão simples que qualquer elemento enriquecedor tira a sua característica de crônica, outros acham que a crônica é um gênero oceânico, permite qualquer tipo de abordagem. 

Desse modo, podemos concluir que conto e crônica não são gêmeos univitelinos. E o que exigem do escritor? O conto exige unidade, além de criatividade. Já a crônica exige o poder de observação. O cronista é um ouvinte. Ele escuta frases, fragmentos de conversas na rua, na fila de banco, no restaurante. Como falou Rubem Braga, o cronista olha o mundo com os olhos de um poeta ou de um bêbado. 

Uma característica: os dois gêneros parecem fáceis de trabalhar. Como são gêneros rápidos, dão a falsa impressão de que é só sentar ao computador e é possível escrever crônicas e contos excelente. Mas não é assim. Esses estilos requerem análise microscópica. É preciso, depois de escrever, trabalhar cada parágrafo, cada frase. 

Como diz o aforismo: a crítica é fácil, a arte é difícil. 

Fonte:
http://livrodoescritor.blogspot.com.br

Carlos Drummond de Andrade (O Segredo do Cofre)


A casa, construída há séculos, ou pelo menos há sessenta anos, tinha uma curiosidade: o cofre de aço embutido na parede, com fechadura de segredo. Ninguém tomava conhecimento da peça; as joias da nova dona eram poucas e não exigiam tamanho resguardo; e o dinheiro do dono cabia folgadamente no bolso, esse cofre sem segredo dos pobres.

Com o tempo, aquilo foi esquecido. Mas um dia, o menino de fora instalou-se na casa, para passar férias e empreender algumas demolições. Findos os atrativos da primeira semana, aquele dínamo em forma de gente começou a explorar o desconhecido, e, à noite, descobriu o cofre, dissimulado por trás de um quadrinho a óleo.

— Vô, quero abrir esse cofre.

— Menino, deixa o cofre sossegado.

— Como é que você deixa um cofre trancado esse tempo todo, sem ver o que tem dentro?

— Não tem nada.

— Deixa ver.

— Perdi a chave, depois eu procuro.

— Não, é agora.

— Sei lá onde eu botei a explicação do segredo.

— Procura também. Se não achar, a gente roda o botão até descobrir como é que é.

Para escapar a uma chateação, o jeito é nos resignarmos a outra. Os troféus foram encontrados depois de intensa busca: a chave, numa pirâmide de coisas enferrujadas, que toda casa conserva sem objetivo aparente; a explicação, dentro da lista amarela de telefones, que se consulta quando se quer comprar não se sabe o que a não se sabe quem, não se sabe onde.

— Fique quietinho aí que eu vou abrir esse cofre para você ver.

— Mas eu queria…

— Menino! Você não se enxerga?

O Homem subiu à mesa, tirou o abajur para ver melhor. Sentou-se, acocorou-se, ajoelhou-se, transpirou. Nada. Os números do botão móvel do cofre estavam apagados pelo tempo, a vista do Homem era curta, cansada.

— Meu pai me contou que os ladrões usam talco — informou o garoto.

— Besteira. Em todo caso, me arranje a lata de talco.

Pois não é que clareia mesmo, aviva os números?

— Onde que teu pai aprendeu essa malandragem?

— Meu pai sabe, ora.

O Homem cumpriu religiosamente os itens da explicação da Casa Vulcano: três voltas para a direita, parar no 25, uma volta para a esquerda, parar no 37, voltar novamente para a direita até encontrar o 12. Nada. Com o calor e a luz no rosto, era de amargar.

O menino sorria:

— Você não está vendo que esse cofre não pode abrir porque foi pintado a óleo e as frinchas estão tapadas?

— É mesmo, confessa o Homem. Não tinha reparado. Agora me lembro que quando mandei pintar a casa… Com uma gilete eu raspo isso.

Vendo que gilete não resolvia, e antes que o Homem, já nervoso, ficasse sem dedo, o garoto apareceu com uma raspadeira fina e um martelo.

— Experimenta isso, vô. É mais prático.

Era. Mas uma ponta da raspadeira, manejada pela mão inábil do Homem, quebrou-se e ficou no interstício, atrapalhando.

— Por hoje chega, sabe? Amanhã mando chamar o serralheiro para ver essa porcaria. E o senhor aí vá dormir, que não é hora de menino de nove anos ficar acordado.

Era tão absurdo ir para a cama, diante de um cofre rebelde, que a resposta do garoto foi voltar à caixa de ferramentas, tirar um pequeno alicate e dizer:

— Deixa por minha conta.

Subiu à mesa com ar resoluto, acenou para o Homem: “Afasta”, e, num gesto leve, fisgou a pontinha encravada. Verificando que os espaços estavam desobstruídos, fez girar a maçaneta. O cofre abriu-se docilmente, como uma blusa.

Dentro, no meio de cartas e programas antiquíssimos de cinema, tinha um dólar de prata, de 1920.

— É meu — disse o vencedor, embolsando-o imediatamente. Para espanto do Homem, que jamais soubera existir na parede de sua casa um dólar de prata.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

domingo, 29 de setembro de 2019

Renato Benvindo Frata (Madrugada)


Insônia e cansaço fazem-me vítima na insensatez do meio sono, em vigília entrecortada entre dormitar e despertar concomitantes e constantes, E produzem pensamentos lerdos que perambulam pela cachola quais mandarovás sobre o lençol, agora transformado em toalha de mesa que o estado de letargia concebe.

São fantasmas roliços e pegajosos que saem á procura de algo enquanto o sono não vem. Tudo corre na lerdeza dos passos de suas mini pemas nos vai-e-vem sem rumo definido, até que surge do nada, posta ali bem no meio sobre o pano branco estendido, uma taça de vinho. Está cheia até a metade e tem na borda marca de batom. Belo pedaço de lábio impresso em carmim. Pela mostra a boca deve ser linda, marca em vermelho vivo o poder, a vitalidade e a ambição, a atração, o amor, a paixão, o desejo, a confiança e a coragem; vermelho também de irritação, impaciência e inconformismo e tudo mais que essa linda cor pode representar.

Está ali na boca impressa e consigo neste meio sono perscrutar, ondulantes, os mandarovás nem se preocupam em resguardar intimidades: amontoam-se na base e se empurram para ganhar caminho, e sobem pelo cristal sem se importar comigo. Acho que estão desejosos pelo vinho do amor que permanece sereno, aguardando talvez um segundo gole do lábio que deixou a marca.

Por enquanto foco apenas o cálice que agora é rodeado e inteiramente tomado por eles que se arrastam da base ao bojo para cheirar, na borda, o bouquet, artificial que dali emana. Como pode o vinho atrair tantos pensamentos-mandarovás? Como estarão ligados os tais que enredados disputam espaço naquele objeto com a toalha, o cálice, o vinho e a marca de batom? Não sei. Isso é coisa de sonho, ou do desejo, ou da aspiração, ou a falta do que fazer enquanto o sono não chega.

Nessa corrida perigosa das lagartas, uma e outra caem pelo lado de dentro. Tentam voltar, esperneiam, batem-se, mas acabam por boiarem, paralisadas, na superfície não mais serena, em redemoinho de volúpia na falta de precaução. Teriam escorregado ou simplesmente pulado para a morte etílica?

Apenas espio, porque nesses pensamentos rastejo com elas até que fiquem adultas, transformem-se em crisálidas, ganhem asas e sejam atraídos pela luz da promessa que a falsa felicidade faz. E me deixem com a minha insônia.

Perambulo o espaço que expõe a imagem vã do meio sonho e da meia consciência e consigo atingir uma distância curta e sem medida que os vários pares de patas alcançam no perímetro do retângulo branco. E crédulo, boquiaberto e na espera do sono inteiro de algumas horas, fixo-me na marca de batom. Não adormeço.

Nessa angústia o tempo passa e consome a noite, o sol se intromete pela fresta, desfaz o cálice e afugenta as caminhantes de vez; e, num esgar de susto ponho-me em prumo para enfrentar a realidade de mais um dia.

Enquanto aliso de leve os olhos vermelhos e empapuçados, fico a matutar sobre o batom vermelho envolvido por mandarovás. A boca, pelo seu formato, deve ser linda, carnuda, sensual; e gostosa ao ser sorvida como se suga polpa de fruta madura, ou quando o vinho é sorvido a dois, aos poucos.…

Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 4


A manhã, de alma serena,
e a tarde, de alma tristonha;
juntas, vão dosando a pena
da solidão de quem sonha!

Ao contemplar a tristeza,
que há, no olhar do sol poente,
uma lágrima indefesa
embaça os olhos da gente!

Ao fim da tarde, eu medito,
e percebo a contra gosto,
que a tristeza do infinito
se faz presente em meu rosto!

Ao ver teus olhos vermelhos,
no olhar, rastros de esperança,
percebo que meus conselhos
dão-te paz, desde de criança!

Aquela flor perfumosa
que tu me deste com medo,
guarda o perfume da rosa
e esconde o nosso segredo!

Carro-de-bois, teu gemido
fez no sertão nossa história;
teu canto triste e sofrido
é culto em nossa memória!

É bem mais pesada a cruz
que arrasta o velho andarilho,
quando o olhar quase sem luz,
é a luz dos olhos do filho!

Entre ilusões, sonhos vãos,
e irreversíveis esperas...
sinto escapando entre as mãos,
as mais sutis primaveras!

Escravo do teu assédio,
a minha alma com ternura,
faz dele, um santo remédio,
para um mal que não tem cura!

Eu vi num pobre andarilho,
a paz no rosto de alguém!
Honra e pobreza, meu filho,
é o que pouca gente tem!

Já viste a simplicidade
da majestade da flor?
Majestosa na humildade
torna-se a diva do amor!

Maria, mãe peregrina,
mãe de todos os mortais;
eternamente divina
e alívio de nossos ais!

Na velha ermida parece
que a solidão, que a conforta,
vem do achado de uma prece
que há, na paz da tarde morta!

No entardecer da cidade,
antes do sol se esconder...
Há mais cinzas de saudade
nas cinzas do entardecer!

No meu sertão causticante,
há dois milagres divinos:
O amor à terra escaldante
e o riso dos nordestinos!

O orvalho caindo aos molhos,
ao despertar da alvorada...
Revela o pranto nos olhos,
dos olhos da madrugada!

Por decisões tão profanas,
cumprindo seus rituais...
Como crer nas leis humanas
com rumos tão desiguais?

Por ironia ou por terdes
falso orgulho, é que, no entanto,
há nos vossos olhos verdes
perpétuas gotas de pranto!

Quando o sol dobra os joelhos,
de rubro a tarde se banha,
para escutar seus conselhos
sobre os braços da montanha!

Quanto mais ouço conversas,
mais eu vejo esforços vãos,
em mãos, incultas, perversas,
escravizando outras mãos!

Se a vida é luz e esperança,
riso, alegria, acalanto...
Por que será que a criança
ao vir à luz, chora tanto?!...

Seguindo os teus passos certos,
não temo o peso da cruz!...
Quero em teus braços abertos,
crucificar-me de luz!

Sem teu amor eu não vivo,
sem teus abraços, tampouco.
Sou velho escravo e cativo
desse amor que me fez louco!

Se um sonho bom, não te alcança,
fujas da vida vazia,
plantando pés de esperança
na esquina de cada dia!

Sino! Por que tanto alarde?
Há mais pranto em teu cantar...
Se és mesmo o pastor da tarde,
a tarde não quer chorar!

Só uma verdade me inspira,
não suporto a falsidade.
Por mais que brilhe a mentira,
não brilha mais que a verdade!

Sou poeta de alma nua
fazendo versos ao léu...
Cobrem-me, as vestes da lua
e as nuvens brancas do céu!

Tanta alegria no ninho,
tanto amor, no antigo lar!...
E agora, o meu passarinho
não tem mais onde morar!

Teu adeus, triste miragem!
Aos teus sinais, me anteponho:
Por que buscar noutra imagem,
a ilusão de um novo sonho?

Todo poeta é um peregrino
com coração de criança;
nas costas, leva o destino,
no coração, a esperança!

Tu tens dois gestos dos sábios,
no teu modo de pensar:
Tens o silêncio em teus lábios
e a humildade em teu olhar!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  
Livro gentilmente enviado pelo autor.

sábado, 28 de setembro de 2019

Luiz Poeta (Roceiro)


O caminhão-basculante veio arrastando o mato, a poeira embaçando a grama, o barulho potente do motor importado assustando os camaleões e lagartos, espantando os tizius, coleiras, sabiás e sanhaços.

De repente, o baque! Dois bezerros foram colhidos em cheio; outros saltaram a cerca de arame farpado, ferindo-se atabalhoadamente. A caminhonete vermelha foi parar no barranco.

O vaqueiro chicoteou a égua baia, chegou perto, gritou para o motorista:

- Eh, cumpadre, ocê matou dois bezerro!

- Matei!? - respondeu o outro perguntando.

- Matou?!

- Pois aqui não é lugar de bezerro pastar!

~ É, mas ocê podia pelo menos diminuir a marcha, não carecia de correr tanto...

- Meta-se com a sua vida, seu... Eu corro onde quiser!

- Correr ocê inté pode, só num pode é matar os bicho...

- Se matei, tá matado, que se dane!

- Que se dane não, moço... Ocê tem que pagar os bicho morto, no preço justo!

- Pagar uma ova! Quero ver quem é o macho que vai me cobrar - ameaçou.

- Pois daqui o senhor não sai. Bezerro custa caro.

- Não saio? Vamos ver se não saio!

O homem foi atrás do banco do carro, pegou uma barra de ferro e desceu disposto a tudo, avançando ameaçadoramente para o outro.

O vaqueiro não se intimidou. Meteu a mão numa garrucha e disparou.

Os dois únicos tiros que a arma suportava, pegaram numa das pernas do motorista.

Cambaleante, ele arrastou-se até o carro, ligou o motor estabanadamente, manobrou o carro e arremessou-o contra o vaqueiro - que se desviou com precisão - e saiu como um relâmpago.

O roceiro apeou, caminhou até os dois animais ensanguentados. Uma difícil lágrima rolava-lhe discreta na face cabocla...

- Desgraçado! - Choramingou.

Um dos bezerros estertorava, o outro nem se movia.

- Malvado! Nem pra andar devagar... Por que correr daquele jeito?

De repente, as sirenes. A viatura policial deslizava ao longe, levantando a poeira amarela da estradinha que circundava o pasto.

O triste homem levantou-se, afagou os animais mortos, montou na égua e sumiu no meio do capinzal.

Véi Mundim consertava a cerca que circundava a casa de madeira. Um prego na boca, outro entre os dedos, o martelo na mão.

De repente, o rumor de cascos no barro.

A sirene acordando o pasto, os tiros pipocando no silêncio vivo do capinzal.

O vaqueiro vinha feito uma bala riscando o tempo, arriado sobre a sela, a égua avançando ligeira. Quando divisou a porteira, o animal entrou apertado no pequeno vão. O carro da polícia passou direto, estilhaçando a madeira.

O velho estava boquiaberto; o prego semi-enterrado na primeira martelada...

Do que jeito que vinha, o boiadeiro desmontou num salto, a bota afundou no charco, a égua foi parar logo adiante.

- Que foi, homem? — indagou o velho.

- Depois eu conto, agora é fincar pé no mato!

E sumiu no meio do capim-navalha.

A viatura deu marcha a ré e dela saltaram um tenente, dois soldados e o motorista do caminhão-basculante, capengando. Os homens foram entrando cocheira-adentro, o pé do
oficial arrebentou a taramela.

Véi Mundim olhava-os de soslaio, por trás de uma das lentes dos óculos rachados, o cigarro de palha torto num dos cantos da boca. O martelo firme numa das mãos.

- Onde está o bandido? - perguntou o tenente.

O velho bateu o segundo prego, sem responder; as pupilas azuis como um céu aberto sobre o vale.

O tenente aborreceu-se.

- Como é que é, meu senhor? Onde está o marginal?

O velho nada respondia. O soldado tentou segurá-lo. O martelo tomou-se um machado,

- Se chegar mais perto, eu abro sua cabeça, sordado!

E abria mesmo, não fosse a intervenção do tenente.

- Calma, rapaz, deixe o moço. - chegou-se para o velho demonstrando atitude pacífica. - Amigo... aquele homem que entrou aqui correndo, baleou este moço aqui - apontou para o irritado motorista que massageava a perna atingida.

- Agora já se pode começar uma conversa... - disse o velho. De primeiro, ocê preguntô por um bandido... Que se saiba, aquele moço num é nenhum bandido...

- Bem, meu senhor... ele baleou um motorista....

- Adispois, - continuou o velho - vosmicê quis sabê de um marginá... se se refere àquele moço que sumiu no mato, também num se trata dele...

- Meu senhor, ele fez uma vítima...

O velho não se abalou:

- Adispois ainda, o sordado raso ai tentou botar a mão ni mim... Como é que ocê ainda tem o descaramento de fazer pregunta a uma pessoa que nunca viu mais gorda? Seja mais educado, homem! Cadê os estudo? Cumpra o seu dever, mas num martrata as pessoa di bem.

O tenente coçava a cabeça, os soldados franziam a testa, o baleado enrijecia os músculos faciais e não se conteve:

- Aquele safado me deu dois tiros!

~ Eu conheço ocê de algum lugar? - indagou o velho sem se abalar... Além do mais, se levou dois tiro, à toa é que num foi... nessas banda, ninguém leva tiro a troco de nada...

- Ora, seu... - o motorista avançou para o velho, que muniu-se de um pedaço de madeira da cerca.

– Eu acho que ocê num tá satisfeito com os dois tiro. Se me provocar, vai ter dois buraco na perna e um taio na cabeça. Vem procê vê!

- Calma, gente, vamos conversar - interrompeu o tenente.

- O que nós queremos é saber onde foi aquele moço que estava montado nesta égua aqui, o senhor poderia nos ajudar?

- Que eu visse, se embrenhou no mato.

- Onde?

- Ué ! É só oiá pro mato e procurá.

- Bem, o senhor vai nos mostrar onde ele está!

- Quando ele chegou aqui, eu tava pregando as tábua da minha cerquinha. Tava ainda no primeiro prego, quando ouvi toda a barulheira que ocês fizeru.

- Tudo bem, tudo bem, gritou um dos soldados! E pra onde ele foi? O senhor já está deixando a gente nervoso!

- Vem cá, me diz uma coisa... Quem é o comandante desse pelotão? É ocê? É aquele cidadão capenga ou é o outro sordado?

- Soldado, cale-se!

- Mas eu...

- Cale-se! Eu faço as perguntas! O tenente estava irritado.

- Meu senhor, aquele homem é um criminoso e nós vamos pegá-lo!

- Que nós? Eu e ocês? Eu num güento nem carregar um molho de agrião, quanto mais correr atrás de alguém. Ocês é que se vire!

- Mas nós temos que alcançá-lo!

- Ué, e por que não arcançaru ainda? Ocês num ião de carro? Ele tá a pé. Qual o pobrema?

- O problema é que... Ora, meu senhor...

De repente, um grito no capinzal:

- Eu tô aqui, seus trouxa! Para de conversa-fiada e vem me buscar!

Estupefatos, todos saíram voando na direção do grito. O tenente, os soldados e o capenga.

O velho balançava a cabeça reprovando:

- São uns bando de maluco..,

As botas pisavam fundo as barrentas poças de lama amassando capinzal; concomitantemente, frangos-d'água, galinhas-d'angola e gaviões acordaram o vale num estrondoso farfalhar de asas, pios, chiados e gritos...

- Vêm me pegá, seus bunda-suja ! - gargalhava o peão dentro da capoeira - Cês num intendi de genti, vai intende di mato?

Dois filas, um doberman, um rotweiller e um pitbull que guardavam a casa grande despertaram do seu sono rural e, curiosos, empinaram ouvidos e narinas na direção do vento que trazia rumores e cheiros urbanos e partiram para cima dos barulhentos forasteiros.

Paralelamente a esse fatídico acontecimento inesperado, as entonações já não mostravam tanta gana em pegar o fugitivo.

Os sons eram outros:

- Uma cobra! - berrou um dos soldados, a jararacuçu grudada na sua bota.

O velho continuava a martelar sua cerca, um riso capenga atravessando o vazio entre os dois caninos cariados, enquanto completava: - São uns bunda-suja mermo.

- Socorro! - era outro gritando, agora o que levara o tiro.

No seu encalço, um touro preto enorme - um pedaço de cueca vermelha num dos chifres do boi babão,

Bruscamente, o desfecho da perseguição:

- Cuidado! Areia movediça!!!!

E todos estavam chafurdados naquele monte de lama misturado com gravetos, animais mortos, frutas podres e folhas secas...

A margem da capoeira, o touro bufando, os cães rosnando e o fugitivo mordendo um galhinho de murubu.

- Ocês sabia que aí tem jacaré do papo amarelo daqueles grandão?


(Texto premiado pela Academia Irajaense de Letras)

Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.