sábado, 28 de setembro de 2019

Malba Tahan (Um Noivado em Bagdá)

    


Quando eu tinha vinte anos de idade, fui, certa vez, a Bagdá.

No dia seguinte ao de minha chegada - tendo a necessária licença do Valli (1) - armei uma grande tenda junto à praça de Otmã e preparei-me para vender aos vaidosos "bagdalis" perfumes, tapetes e as mil quinquilharias que lhe trouxera das terras longínquas da índia e da China.

    Em dado momento aproximou-se de minha tenda uma mulher, já velha, magra e esfarrapada, o rosto descoberto, o andar curto e arrastado. Depois de examinar, com o olhar distraído, talvez por mera curiosidade, as bugigangas espalhadas sobre grossos tapetes hindus, disse-me:

- Ó jovem e formoso mercador! Seja Allah o teu guia e o teu amparo! Há quarenta anos passados, um homem do teu tipo escolheu-me para esposa e tirou-me do serralho de meus pais! E a felicidade sempre me sorriu no harém (2) de meu amado!

Ao ouvir palavras tão bondosas, cuja simplicidade parecia aliar-se a uma emoção sincera, fiquei profundamente lisonjeado.

- Agradeço-vos - respondi-lhe - a expressão amável e a forma gentil do vosso salã! Seja a paz a vossa estrada e a alegria sã e perfeita a luz dos olhos de vossos filhos!

- Ualá! - acudiu a velha. - Vejo que és afável e eloquente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora nos teus lábios provém realmente de teu coração. Escuta, mercador: sou pobre e não tenho de meu um único dinar. Queres, ainda, assim, fazer comigo uma transação?

- Ouço a vossa proposta, senhora! - retorqui, sem hesitar. - Asseguro-vos, porém, que já está aceita.

- Dá-me, então - atalhou a anciã - um frasco de perfume. Prometo, em troca, ensinar-te alguns versos de um antigo poeta de Mossul.

Tomei de um dos mais belos e valiosos frascos de essência e entreguei-o à misteriosa criatura.

E ao tempo em que ela ocultava sob as vestes rotas, a obra-prima de um perfumista de Basra, disse-lhe:

- Aguardo ansioso o vosso pagamento, senhora!

- Oh, jovem bem dotado! - exclamou - os versos com que pretendo retribuir a tua desmedida generosidade jamais deverão desamparar os teus pensamentos. Escuta-os:

"Só é digno mil vezes da misericórdia infinita de Deus aquele que em si próprio encontra forças para resistir à tentação do pecado!"
    
E, sem mais palavra, afastou-se, o andar arrastado, impelindo para diante o cascalho do caminho.

Era a hora triste do ezzã (3).

A voz cantante do muezim (4) cego chamava os crentes à oração:

- Allah é grande e Maomé é o Enviado de Deus! Vinde à prece, ó muçulmano; vinde à prece! Lembrai-vos de que, na vida, tudo é pó, exceto Allah! Lembrai-vos de que...

Voltei-me na direção da Cidade Santa (5), retirei as sandálias, estendi o meu tapete e em Allah Onipotente, criador do céu e da terra, concentrei meus pensamentos, isolando-me da vida material e vil.

- Ualá! - acudiu a velha. - Vejo que és afável e eloquente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora aos teus lábios provém realmente de teu coração. Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!

E o eco ressoando ao longe, nas montanhas de Kilv, parecia repetir:

- Exceto Allah! Exceto Allah!

Cinco dias volvidos achava-me descuidado junto à tenda, quando avistei um cheique que passava solene em garboso camelo que um escravo negro, seminu, conduzia vagarosamente pela rédea.

    - Cheique dos cheiques! - exclamei, dirigindo-lhe amistoso salã (saudação). - Maahaba ahlã na Sahlã na anastina! Aqui tenho à vossa disposição os únicos perfumes dignos das mulheres encantadoras do vosso harém.

O desconhecido ergueu o rosto para mim, e num sorriso afável traduziu o agradecimento com que retribuía a saudação carinhosa que acabara de ouvir.  Parecia ainda relativamente moço. Os traços enérgicos de sua fisionomia serena faziam pensar que um escudo possante de energia devia revestir-lhe a alma. Ostentava, num requinte de bom-gosto, riquíssimo keffié (6) de três pontas, todo de seda branca, com barras azuis.

O cheique fez parar o camelo, ordenou ao escravo que o fizesse apear-se do matuflê (7) e concedeu-me a honra de vir examinar de perto as ricas alcatifas que eu  vendia, com paciência e probidade, sem ferir um só versículo do Alcorão!

Quis a vontade de Allah (glorificado seja o Eterno!) que o olhar do cheique fosse incidir sobre um pequeno quadro de madeira no qual eu escrevera em belos caracteres negros os tais versos que, à guisa de pagamento, ouvira da anciã.

Mostrou-se o cheique tomado do mais vivo espanto ao se lhe deparar a legenda poética do quadro, as mãos tremiam-lhe e uma onda de acentuada palidez invadiu-lhe as faces.

    - Mercador - interpelou-me, num tom seguro e autoritário - quem te ensinou esses versos?

Contei-lhe - e não via razão para ocultar a verdade - a invulgar transação que, dias antes, fizera com a velha, repetindo-lhe fielmente as palavras gentis que dela ouvira naquela tarde!

    - Louvado seja Allah, o Justiceiro! - exclamou o cheique. - Acabo de descobrir, graças ao teu auxílio, ó mercador, o paradeiro de uma criatura que há três anos procuro pelas terras do Islã.

Naquele momento a desconfiança e a dúvida invadiram-me o espírito. Teria o infeliz cheique a razão perturbada pela loucura? Ou que sentido oculto haveria em suas palavras?

O rico muçulmano, esclarecendo o caso, contou-me o seguinte:

- Meu nome é Abd-el-Uhad, e sou filho do poeta El-Bagavi, de Mossul. Compelido pelas necessidades da vida e forçado, muito cedo, por um destino ingrato, deixei minha família e fui tentar a vida no país de Candahar, na índia, onde graças a Allah, tive um largo período de prosperidade. Passados vinte anos, como já me satisfizessem as riquezas que então possuía e também para livrar minha filha Sálua de um rajá perverso que a queria desposar, resolvi voltar ao meu velho torrão natal. Soube, chegando a Mossul, que meu pai havia falecido alguns anos antes, mas do paradeiro de minha mãe não me souberam dar notícia alguma. E há três anos que a procuro inutilmente pelas cidades e aldeias. Já desanimado, depois de fatigantes pesquisas, deliberei, a conselho de um velho imã de Basra, fazer uma peregrinação a Meca. Cheguei ontem a esta cidade e daqui pretendia partir dentro era breve, com uma caravana de xiitas (8) para o Santuário da Fé. Quis, porém, Allah, o Exaltado, que eu viesse agora encontrar na tua tenda - naquele quadro que ali está - alguns dos mais belos versos de meu saudoso pai. Não me foi difícil inferir - na narrativa que fizeste - que a misteriosa anciã que levou o teu perfume era precisamente aquela que foi a esposa única de meu pai. Na certeza de que ela se acha nesta cidade, espero encontrá-la sem mais canseiras nem jornadas.

    E, ao terminar, pousou no meu ombro a sua larga mão bronzeada e perguntou-me, como se tivesse tomado, no momento, uma resolução inabalável.

    - Quanto queres, mercador, pela tua tenda, com tudo o que nela se encontra?

    Meditei, em silêncio, durante  algum  tempo, e  compreendi  que  o  dadivoso  cheique entendia ter encontrado uma forma delicada de manifestar a sua gratidão. O céu e a generosidade do árabe - ensina um provérbio - não tem limites no possível.

- Pela minha pobre tenda - respondi, fitando-o com desembaraço - nada quero! Considerai-a, desde já, como coisa vossa! Mas pelos versos, que estão naquele quadro, quero - se for possível - a mão de Vossa filha Sálua!

A minha audaciosa proposta causou não pequena surpresa ao rico Abd-el-Uhad.

- Ó mercador! - exclamou. É singular! Acabas de pedir em casamento uma jovem sobre os predicados da qual não tens a menor informação (9). Sálua será formosa ou terá os traços deformados pela feiura?

- Cheique dos cheiques - retorqui, no mesmo instante. - Tenho sobre a beleza incomparável de minha futura noiva, duas indicações preciosas, de grande valor. Primeiro: Sálua é vossa filha!

- E qual é a outra? - indagou o cheique, lisonjeado na sua vaidade de pai.

- Houve um rajá que a desejou para esposa. Não conheço vossa filha, é certo, mas conheço muito bem os rajás; e sei que são homens que não caminham de olhos vedados pelas estradas da vida!

    - Aceito o teu pedido - replicou, risonho o cheique. - És, ó jovem, mais inteligente do que eu pensava. Dou-te minha filha em casamento e tomo-te, de hoje em diante, sob minha proteção.

Foi assim que fiquei noivo em Bagdá. O sol anunciava no horizonte azulado do Islã a hora da prece do crepúsculo.

A voz clara do muezim perdia-se em ondas vagarosas pelo céu.

E naquele momento, precisamente, em que o Destino parecia concluir a página mais feliz da minha louca existência, apontando-me o caminho da Ventura e do Amor, chegava-me aos ouvidos aquelas palavras eternas, que me arrancavam do mundo dos sonhos para a realidade triste da Vida.

    - Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah...
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Notas
1- Valli – Prefeito da cidade, governador de uma província.
2- Harém - Vocábulo derivado do árabe harã - proibido. Harém é a parte da casa de um muçulmano onde ficam suas esposas.
3- Ezzã - Oração da tarde.
4- Muezim - Pregoeiro. O muezim chama do alto dos minaretes os fiéis à oração. Os muezins, em geral, são cegos.
5- Meca.
6- Peça do vestuário.
7- Espécie de palanquim que se coloca no camelo.
8- Xiitas - Seita protestante dentro do Islã.
9- Eram, em geral, as velhas que frequentavam os haréns que davam aos namorados indicações sobre os predicados das jovens casamenteiras.

Fonte:
Malba Tahan. Os segredos da alma feminina.

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