quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Cecy Barbosa Campos (O Artista)


Era um menino bonito, quieto, educado. Na escola, cumpria suas obrigações com eficiência, mas nunca mostrava muito entusiasmo. No recreio, ao invés de participar das correrias e brincadeiras usuais aos garotos de sua idade, preferia sentar-se numa pedra grande, que ficava próxima ao campinho de futebol e, com um graveto na mão, absorver-se, elaborando desenhos na terra úmida que havia no local.

Apesar de seu distanciamento, era estimado pelos colegas. Vez por outra, algum deles se aproximava, sentava-se na pedra ou no chão ao lado e conversava com o "artista" - como o chamavam - até que a agitação característica da idade interrompia o assunto, por mais interessante que fosse.

Assim foi levando a vida, e o tempo passando. Como não causava problemas, era aceito pelos pais e irmãos que não se aprofundavam na questão e ignoravam o seu transitar silencioso sem tentar analisar aquela situação ou considerar se ela era, de fato, normal.

Não havia preocupação financeira na família, de modo que os filhos não tinham obrigações além do estudo.

Ingressando na Universidade, após três anos de curso, os pais lhe perguntaram se já estava próxima a formatura. A resposta surgiu com a maior tranquilidade:

– Não vou me formar, O que ensinam lá, não me interessa. Os rumos que vou tomar são diferentes.

Atônitos, os pais não souberam o que dizer. Passadas algumas semanas, o filho avisou que iria viajar para continuar suas pesquisas e observações pelo mundo. Ninguém conseguiu arrancar-lhe explicações. Disse que não se preocupassem, e que enviaria notícias. Não precisava de dinheiro, pois da mesada que recebia pouco gastava.

De fato, ao contrário dos irmãos, nunca fora de pedir nada e parecia não tomar conhecimento dos depósitos que os pais faziam mensalmente, para os filhos. Usava as roupas que ganhava nos aniversários e natais, principalmente dos de casa, que o consideravam relaxado com a aparência, embora, admitindo que ele era dono de uma elegância natural. Mantinha-se limpo, mas, moda para ele, não queria dizer nada.

Por alguns breves telefonemas e mensagens eletrônicas ainda mais sucintas, os pais iam tendo suas notícias. Souberam que fazia sucesso na Europa e nos Estados Unidos quando depararam com uma entrevista cujo título, "Jovem artista brasileiro fala das obras que produz usando elementos da natureza, tais como terra, folhas e sucata em geral", chamou-lhes a atenção.

Tempos depois, reapareceu em seu país. O estilo era o mesmo; roupas despojadas, um tanto ultrapassadas, largas e confortáveis. Os cabelos tinham crescido e passara a usar sandálias. Bonito, quieto, educado, com um olhar sonhador que transmitia ingenuidade quase infantil.

Ganhava muito dinheiro, mas casara-se mal e a mulher, aplicando-lhe um golpe, levou tudo que ele havia adquirido, deixando-lhe os bolsos e o coração vazios. Não ficou muito tempo em casa dos pais. Sentia-se incomodado com a presença daqueles que sempre conhecera e com as perguntas das quais preferia se esquivar. Não entendia porque as pessoas se interessavam tanto pela vida uns dos outros.

Resolveu partir. Desta vez, soube-se que iria rumo à Amazônia, pois a floresta mais diversificada do planeta poderia proporcionar-lhe novas ideias. Como era de seu feitio, não deu indicações de seu destino. Na verdade, nem ele mesmo sabia.

Ao chegar lá, deixar-se-ia levar pelas águas dos rios, ou pelo vento que sacudia os ramos das árvores.    Ficassem tranquilos que suas notícias chegariam.   

Passaram-se meses. Finalmente, o pai recebe um comunicado vindo do Serviço de Saúde de uma cidadezinha do interior do Amazonas. Pediam a presença de alguém que pudesse identificar um homem branco aparentando pouco mais de trinta anos e que, pelas peças que produzia demonstrava ser artista plástico. Como o homem dificilmente pronunciava uma palavra, pois estava muito debilitado, só após várias tentativas e investigações descobriram aquele endereço e solicitavam a vinda de algum conhecido ou pessoa da família que pudesse encaminhá-lo a tratamento ou levá-lo de volta a casa.

Em lá chegando, o pai, que fora acompanhado do filho mais novo, teve um choque. Encontrou o rapaz magro e abatido, definhando sobre um catre mal-cheiroso. Quase nada restava que lembrasse o jovem de porte elegante e olhos sonhadores. Observando mais detalhadamente, notou que a linha do queixo mostrava a obstinação que marcara a sua vida, sempre isolada dos demais.

O reencontro emocionado mostrou ao artista o sofrimento do pai e a existência de um amor que, até então, não havia percebido.

Sem forças para falar, permaneceu em silêncio, condição que, afinal, era a sua característica. Entretanto, o pai percebeu o brilho que ressurgiu em seu olhar e teve certeza de que, com o cuidado e a atenção de todos, o filho renasceria para a vida.

Retirado num pequeno avião daquele humilde barraco em que se alojara, foi conduzido para um hospital em Manaus, do qual, seria transportado para a casa da família logo que o tratamento inicial o permitisse.

A assistência dos pais, a companhia da mãe, que logo veio ao encontro do filho, e as visitas frequentes dos irmãos fizeram com que seu ânimo retornasse surpreendentemente.

A atitude dos pais mudara em relação a ele. Sentia-se amado, o que não havia notado até então. Ele era o filho que passava despercebido, pois, como não dava trabalho e não participava de farras e bebedeiras, propiciara aos pais uma vida confortável à qual o acomodaram, achando que não precisavam preocupar-se com ele.

A indiferença causa o mais doloroso dos sentimentos. Machuca mais do que a raiva ou a agressão. Sentindo-se ignorado, o rapaz sofria com a sua invisibilidade. Contudo, descortinava agora os caminhos que se abriam a sua frente e se sentia feliz e disposto a percorrê-los.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

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