Insônia e cansaço fazem-me vítima na insensatez do meio sono, em vigília entrecortada entre dormitar e despertar concomitantes e constantes, E produzem pensamentos lerdos que perambulam pela cachola quais mandarovás sobre o lençol, agora transformado em toalha de mesa que o estado de letargia concebe.
São fantasmas roliços e pegajosos que saem á procura de algo enquanto o sono não vem. Tudo corre na lerdeza dos passos de suas mini pemas nos vai-e-vem sem rumo definido, até que surge do nada, posta ali bem no meio sobre o pano branco estendido, uma taça de vinho. Está cheia até a metade e tem na borda marca de batom. Belo pedaço de lábio impresso em carmim. Pela mostra a boca deve ser linda, marca em vermelho vivo o poder, a vitalidade e a ambição, a atração, o amor, a paixão, o desejo, a confiança e a coragem; vermelho também de irritação, impaciência e inconformismo e tudo mais que essa linda cor pode representar.
Está ali na boca impressa e consigo neste meio sono perscrutar, ondulantes, os mandarovás nem se preocupam em resguardar intimidades: amontoam-se na base e se empurram para ganhar caminho, e sobem pelo cristal sem se importar comigo. Acho que estão desejosos pelo vinho do amor que permanece sereno, aguardando talvez um segundo gole do lábio que deixou a marca.
Por enquanto foco apenas o cálice que agora é rodeado e inteiramente tomado por eles que se arrastam da base ao bojo para cheirar, na borda, o bouquet, artificial que dali emana. Como pode o vinho atrair tantos pensamentos-mandarovás? Como estarão ligados os tais que enredados disputam espaço naquele objeto com a toalha, o cálice, o vinho e a marca de batom? Não sei. Isso é coisa de sonho, ou do desejo, ou da aspiração, ou a falta do que fazer enquanto o sono não chega.
Nessa corrida perigosa das lagartas, uma e outra caem pelo lado de dentro. Tentam voltar, esperneiam, batem-se, mas acabam por boiarem, paralisadas, na superfície não mais serena, em redemoinho de volúpia na falta de precaução. Teriam escorregado ou simplesmente pulado para a morte etílica?
Apenas espio, porque nesses pensamentos rastejo com elas até que fiquem adultas, transformem-se em crisálidas, ganhem asas e sejam atraídos pela luz da promessa que a falsa felicidade faz. E me deixem com a minha insônia.
Perambulo o espaço que expõe a imagem vã do meio sonho e da meia consciência e consigo atingir uma distância curta e sem medida que os vários pares de patas alcançam no perímetro do retângulo branco. E crédulo, boquiaberto e na espera do sono inteiro de algumas horas, fixo-me na marca de batom. Não adormeço.
Nessa angústia o tempo passa e consome a noite, o sol se intromete pela fresta, desfaz o cálice e afugenta as caminhantes de vez; e, num esgar de susto ponho-me em prumo para enfrentar a realidade de mais um dia.
Enquanto aliso de leve os olhos vermelhos e empapuçados, fico a matutar sobre o batom vermelho envolvido por mandarovás. A boca, pelo seu formato, deve ser linda, carnuda, sensual; e gostosa ao ser sorvida como se suga polpa de fruta madura, ou quando o vinho é sorvido a dois, aos poucos.…
Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
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