terça-feira, 17 de setembro de 2019

Carolina Ramos (Os Três)


Eram três. Três marginalizados que a fatalidade confinou na mesma cela. E quando a vida, aranha traiçoeira, teceu sua teia, teve o cuidado de envolvê-los muito bem, com fios viscosos, de maneira que não mais se separassem.

Três: — "Bá", o gaúcho, bravo como o diabo, que acumulava no costado sabe-se lá quantas mortes! “Mengo", carioca, alma de cuíca gemedora, cumprindo pena sem saber se, fruto inocente da violência urbana, ou culpado, pela contribuição pessoal, para um todo violento, ainda que por interferência mínima. Certo, é que estava entre as grades, com maior ou menor culpa, a batucar nas paredes o protesto ritmado contra o peso excessivo da mão da lei, pousada sobre seus ombros. O terceiro era mineiro. Desconfiado, sim, entremeando estágios de mutismo, com fases de loquacidade desenfreada. Pagava o pecado, amargo, da cupidez incontrolada. Estupros vários. Um deles seguido de morte.

Eram três diabos, vindos de pontos diferentes, a arder na mesma fornalha da Pauliceia. Entendiam-se. Chegavam às confidências. Arquitetavam planos para o futuro. E desses planos a violência não constava.

A boa conduta dos três presidiários chegou aos altos escalões, com retorno satisfatório.

A notícia de que poderiam passar as festas natalinas em liberdade condicional, junto às famílias, foi recebida com particular entusiasmo pelo gaúcho.

— Bá! Presente de Pai Noel! Melhor, só a liberdade definitiva!

A alma queixosa do "Mengo" despertou como cuíca em Quarta-feira de Cinzas, melancólica, gemendo em surdina, num canto da cela.

O mineiro, ou "Mineirão", nome de guerra, introverteu-se. Deixou-se engolir pelo silêncio, no canto oposto.

Sem eco, a alegria do gaúcho esmoreceu como gaita murcha:

— E então?! — indagou, desafiante, aos dois vultos encolhidos.

A única resposta veio, soluçada, lá das bandas cariocas:

— Belo presente, meu! Mas, só mesmo pra quem tem sapato. Quem não tem família, fica como noix, no tanto faix, como tanto feix!

"Mineirão" nem deu sinal de vida. Enrustido em si mesmo, era cápsula, hermética, resguardando os próprios pensamentos. Ostra, fechada, preservando a pérola.

As lembranças das confidências trocadas fizeram-se presentes na cabeça eufórica do Bá. A verdade é que os dois companheiros de reclusão não tinham família e, portanto, não tinham, também, motivos para partilhar da alegria que lhe inflava o peito atlético.

— Duro não ter ninguém lá fora! Duro demais, tche!...

No ermo da cela, um raio de magnanimidade acoplou-se sobre os cabelos negros e lisos do gaúcho, que decidiu a questão:

— Nada de tristeza, amigos... os dois vão comigo. Tenho uma casa, tche... tenho uma guapa chinoca e uma guria que é uma beleza! Onde comem três... comem cinco! Estamos conversados.

Piscou o olho malicioso, acariciando os fartos bigodes:

— Vais provar o chimarrão, mineiro velho! E tu também, Mengão. Os dois vão conhecer os pampas, ao sentir o mate quentinho escorregar goela abaixo, até a cuia roncar de gozo. Barbaridade! não há coisa melhor no mundo! Só mesmo o beijo da minha chinoca consegue ganhar dessa gostosura! Bah!

Na penumbra da cela, dois pares de olhos ganharam brilho.

Ninguém interrompeu o devaneio gauchesco. Logo, havia festa antecipada, ao toque dos preparativos para a partida.

Presentes! Precisavam levar presentes. Ao menos, para a menina.

O mineiro, vasculhando os "trens", encontrou a caixinha de guardar badulaques, feita, por ele mesmo, de fósforos queimados. Trabalho paciente, que deveria agradar a chinoca do Bá.

Isto lembrou ao Mengo o porta-lápis, elaborado no seu lazer forçado, com palitos de sorvetes, que, com certeza, a guria do gaúcho não desprezaria, se pintada de cores vivas e adornada de desenhos.

Às vésperas do Natal, as portas do presídio do Carandiru abriram-se prazerosamente, dando passagem aos três amigos que, findas as festas e expirada a licença, assumiam o compromisso de retomar, para cumprimento do restante da pena.

Bem... o tempo não para...

A guria do "Bá" tinha já quinze anos, desabrochara. Por isso mesmo, o coração deslumbrado do Mengo chegou-lhe às mãos, dentro do porta-lápis, espremido, latejante de amor, desses tais amores que eclodem à primeira vista!

Com o "Mineirão" a coisa não foi diferente. Só que, por azar, a graça da chinoca é que lhe roubou o sossego. Ficou doidinho de todo, ao ver de perto o decantado beijo trocado pelo par gaúcho. Sentiu, a seco, o gosto doce do chimarrão, antes mesmo de tê-lo provado. Não o sabia amargo!

Na primeira oportunidade, atacou. Todos os seus impulsos reprimidos vieram à tona. A gaúcha, subjugada, cravou-lhe as unhas de gata brava, riscando-lhe a face, de alto abaixo, em linhas paralelas, que logo se tingiram de rubro.

Nada precisou ser dito para que o gaúcho, sem mesmo ter visto a cena, tomasse sentido do que se passara.

Uma bala certeira vingou-lhe a honra insultada,

"Mineirão" foi cumprir o resto da pena em terras mais quentes.

"Bá", inapelavelmente, dobrou a sua.

E “Mengo” ao transportar para cela uma esperança doce, tomou mais curtos e mais suaves seus dias de penitente. Nem "mermo" a mão da justiça parecia pesar-lhe sobre os ombros. Abafou dentro da alma a voz gemedora da cuíca. Trocou-a por outra, lírica e seresteira, de violão cantador!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

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