sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Caldeirão Poético XXXIII


AFONSO LOPES DE ALMEIDA
(1888-1953)

VOLTA À TERRA


Abre os braços, do Céu, à minha alma, o Cruzeiro...
Abre os braços de luz... Vou chegar! Vou chegar!
O vento já me traz das florestas o cheiro,
E é um balanço de berço o balanço do Mar...

Longe como eu do ninho, é para o ver primeiro
Que aquela ave levanta o vôo e sobe no ar.
Volta agora este Mar das terras de Janeiro,
Onde rio se fez, para as poder entrar!

É meu, todo, este Céu! É meu este braseiro
Em que se queima o Sol à luz crepuscular!
És meu, vento de terra, amoroso e fagueiro!

Na lua que desponta, olhai! vem o meu luar!
E abro os braços também, como faz o Cruzeiro,
A esta Lua, a este Céu, a este Vento, a este Mar!

ALCEU WAMOSY (1895-1923)

DUAS ALMAS


Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

AUTA DE SOUSA (1876-1901)
NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)

LEGADO


Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

GILKA MACHADO (1893-1980)

NONA REFLEXÃO


Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o
uma vez, outra vez (sonhos insanos!)...
e desespero haja maior não creio
que o da esperança dos primeiros anos.

Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio
do meu silêncio, aquém de olhos profanos,
carícias virgens, para quem não veio
e não virá saber dos meus arcanos.

Desilusão tristíssima, de cada
momento, infausta e imerecida sorte
de ansiar o Amor e nunca ser amada!

Meu beijo intenso e meu abraço forte,
com que pesar penetrareis o Nada,
levando tanta vida para a Morte!...

GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969)

SILÊNCIO

Silêncio - voz do amor, voz da alma, voz das coisas,
suave senhor dos céus, dos claustros e das grutas;
quebra-te o encanto o vôo, em trêmulas volutas,
do bando singular das lentas mariposas!

Silêncio - alma da dor de pálpebras enxutas;
reino branco da paz, dos círios e das lousas;
quando me calo, és tu, só tu, Silêncio, que ousas
falar-me, e quando falo, és só tu que me escutas!

Irmão gêmeo da morte, ó mística linguagem
com que se fala a Deus! Meu coração selvagem
segreda-te a impressão que à flor da alma resvala:

e tu lhe fazes, mudo, a confidência triste
que te faz a mudez de tudo quanto existe,
porque és, Silêncio, a voz de tudo o que não fala!

JORGE DE LIMA (1893-1953)

PAIXÃO E ARTE

Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso...
O Verso é a Arte do Verbo - o ritmo do som...
Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E a Música o modula em gradações de tom...

Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso
Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso:
Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom...

Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala
Dum amor inocente, (o mais alto destino):
A Paixão de Jesus, o perdão a Madala.

Homem, faze do Verso o teu culto pagão
E canta a tua Dor e talha o alexandrino
A quem te acostumou a ter Arte e Paixão.

MARTINS FONTES (1884-1937)

ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA


Penetrei no teu quarto, sorrateiro.
Entreabri do teu leito o cortinado.
Invejei, morno e fofo, o travesseiro
Em que teu sono dormes, perfumado.

Delicadezas vi do teu apeiro
De prata. E, entre cem joias, perturbado,
Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro,
Como um ávido amante alucinado.

E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo,
A fronte, a face, o cálice vermelho
Da boca em flor, os cílios de veludo...

E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho,
E ao fim beijei, enternecido e mudo,
O lugar dos teus pés no teu espelho.

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