segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Cecy Barbosa Campos (O Malabarista)


Poderia ter uns quinze anos, mas sua fisionomia gasta e cansada e o olhar sem brilho demonstravam que a sua vivência não correspondia a tão curto período de vida.

Costumava encontrá-lo na mesma esquina, de segunda a sexta-feira, quando voltava do trabalho. O ônibus parava no sinal, e eu o via na pista lateral, a dos automóveis, fazendo os seus malabarismos com pequenas bolas que jogava para o ar e que pareciam lá permanecer, pois o toque em suas mãos era tão sutil, que quem o observava tinha dificuldade em perceber. Rapidamente, encerrava aquela apresentação relâmpago, para ter tempo de percorrer os carros, estendendo a mão aos motoristas antes que surgisse a luz verde que não representava esperança – ao contrário - muitas vezes, ela evidenciava o desapontamento pelo parco resultado da coleta ou o desgosto misturado à raiva, pelas admoestações que os motoristas frequentemente lhe dirigiam.

Houve tempo em que ele mesmo observava os malabaristas do trânsito e se encantava com a habilidade deles. A mãe puxava-o pela mão, apressada, pois tinha que deixá-lo na creche antes de continuar seu caminho para a casa, onde trabalhava como empregada doméstica. 

A vida parecia bem encaminhada para aquela família humilde. O irmão estudando no Grupo Escolar; a mãe, ativa e descontraída, limpando, com zelo, a casa dos patrões e o barraco em que habitavam. O pai era vigia e mostrava-se orgulhoso de suas responsabilidades.

De repente, da noite para o dia, tudo mudou. Um tiro certeiro atingiu o coração do pai quando, bravamente, ele enfrentou os bandidos que assaltaram a firma em que trabalhava. O desespero da mãe levou-a a um infarto fulminante alguns dias depois; o irmão, assediado pelos traficantes do morro, passa a ser usado por eles sem possibilidades de escapar e tomar outro caminho,

Edilson compreende que deve fugir daquele local e vai para o outro lado da cidade, onde aprende o jogo das bolas que passam a servir-lhe de ganha-pão.

Agora, não mais se encanta com os movimentos que se desenham no ar. Os insultos que ouve de alguns motoristas, ao mesmo tempo em que machucam seu coração, servem de alerta para a necessidade de conseguir algum tipo de serviço.

Fiquei sabendo de sua história porque, cedendo a um impulso, desci do ônibus naquele sinal e decidi-me a abordá-lo. Desconfiado, não queria conversa, mas, aos poucos, sua resistência foi diminuindo e acabou respondendo ás minhas perguntas.

Combinamos que eu tentaria arranjar-lhe algo que pudesse levá-lo ao aprendizado para alguma profissão. Consegui, através de alguns contatos, localizar um jardineiro que, há muitos anos servira aos meus avós. Aposentado, não mais trabalhava assiduamente, mas conhecia a arte da jardinagem como ninguém e mesmo sem os requintes de um paisagista tinha bom gosto para combinar diversos tipos de plantas e mãos de ouro que faziam a terra aceitar prazerosa mudas e sementes que nela inserisse.

Conversei com o bondoso ancião que, feliz, aceitou a incumbência.

Levei-lhe o Edilson. Os dois se entenderam às mil maravilhas. O experiente jardineiro, além de transmitir as manhas do ofício, praticamente completou a educação do outro neto que ganhara.

Por algum tempo, nada soube a respeito deles. Depois fiquei sabendo da partida do velho que, por certo, fora plantar flores ainda mais belas, em outros jardins. Anos mais tarde, li num jornal uma noticia pequena que falava de um rapaz que, levando ás costas um caixote com as flores que cultivava, fora atingido por uma bala perdida. Ao cair, sobre o seu corpo espalharam-se os pequenos buquês que, cuidadosamente, arrumava e vendia à porta de um restaurante próximo.

O caso não teve nenhuma repercussão. O Edilson fora apenas mais uma vítima de balas perdidas que, diariamente, aumentam as estatísticas das grandes cidades.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

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