domingo, 22 de setembro de 2019

Francisca Júlia (O Sabiá Doente)


Era pequeno ainda o sabiá, quase implume, quando caiu do ninho onde nasceu. Curioso, invejando o voo de outros passarinhos menores que ele, tentou também voar: — abriu as asas mal empenadas, fez um esforço e caiu. Ao cair, foi resvalando pelos galhos, pelas folhas da árvore, de modo que a queda foi pequena e não o magoou.

Quando caiu na grama, começou a ensaiar o voo para subir de novo até ao ninho, arrependido de o ter deixado, piando, piando de medo.

Um homem, que passou, levou-o consigo.

O passarinho cresceu preso na gaiola.

À tarde, quando os outros pássaros cortavam o ar em busca do repouso, ele sonhava com a tepidez do ninho escondido num galho, perdido no meio do bosque. Léguas em redor tudo era verde, coberto de folhagens que o vento agitava.

Além, escorregava entre fileiras de murtas, seixos. O ar livre do campo, a frescura das manhãs, o marulho das folhas, tudo acudia ao seu espírito, o fazia sonhar por muito tempo, arrancando-lhe da sonora garganta as mais angustiosas queixas.

E com a cabecinha no ar, os olhos cerrados, os nervos agitados de comoção, traduzindo a tristeza que o invadia, cantava, cantava horas inteiras, às vezes triste, alegre às vezes, executando escalas e gorjeios ou prolongando numa nota toda a amargura de sua alma.

Os que lhe ouviam o canto, paravam a escutá-lo, encantados.

Assim viveu o sabiá por muitos anos, sempre preso, sem conhecer a liberdade de que gozam os outros pássaros que ele via através da grade, a uma vertiginosa altura, espalhados pelo azul.

Voar! Quem lhe dera também um dia em que a porta da prisão amanhecesse aberta, fugir, e, de asas entendidas, voar, voar, ir muito alto, muito alto, e gozar, até à embriaguez, da vertigem de luz que deve haver lá em cima!.

E o pobre pássaro sentia no corpo estremeções de ânsia, agitações de desejo, e abria as asas; mas a ilusão desfazia-se e ele fechava-as de novo, recolhendo-se à sua tristeza de encarcerado.

Então pensava que, quando ficasse velho e sua voz se tornasse rouca, haviam de apiedar-se dele e dar-lhe a tão desejada liberdade. Vivia dessa esperança.

Envelheceu. Sua vista foi-se escurecendo aos poucos. O sabiá estava cego.

Uma manhã, passeando pelo chão da gaiola, aproximou-se da porta, como de costume, a sentir se estava aberta.

Estava aberta a porta.

Pôs a cabecinha de fora, aspirou o ar, agitou o corpo, sacudiu as asas entorpecidas pela velhice e quis voar. Mas, como já estava cego, teve receio de bater-se contra a parede, no ímpeto do voo, em vez de tomar a direção do campo; então recolheu-se de novo e chorou abundantemente .

Daí em diante nunca mais da sua sonora garganta saíram os gorjeios de outrora.

Fonte:
Francisca Júlia César da Silva Münster. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

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