sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Chico Anysio (Mestre-de-Obras)


31 de dezembro. Há 3 dias São Paulo não fala noutra coisa que a Corrida de São Silvestre.

— Deve ganhar um holandês desses...

Há corredores da Holanda, realmente, como os há da Bél­gica, dos EUA, da França, da Argentina. Até da Etiópia há um, que corre descalço. Um de cada país. Do Brasil há 75.

— Boa sorte.

Josué, um dos 75, agradece à namorada o que ela lhe deseja.

É um mulato atarracado, de pernas finas. Nordestino dos que ajudaram a construir São Paulo. Foi pedreiro em muitas obras, fiscal em tantas outras. Hoje, é Mestre, na construção de um prédio na Avenida Ipiranga.

— Obrigado.

Ele agradece à sua neguinha o desejo de boa sorte. Iolanda sorri e lhe põe um beijo na testa. Iolanda é cozinheira, no Morumbi. Conseguiu licença dos patrões para ver seu homem correr. Seria melhor ter ficado em casa, acompanhando pela televisão. Ali, verá a partida e nada mais. Mas achou que sua presença era muito importante. Assim como um estímulo para o namorado.

Josué aquece-se, balançando as pernas de músculos tão diferentes das pernas francesas, inglesas, holandesas, que se põem ao lado.

Mantém-se entre os primeiros no começo da maratona. Há dois louros na frente, além de um japonês pequenino, de sapatilha azul.

As pernas começam a pesar, tornam-se impotentes. O louro da Inglaterra parece máquina. Tum-tum... tum-tum... tum... tum... não muda o passo, não arrefece um segundo. Tem um francês nos seus calcanhares. Quinze metros atrás, o japonês calçado de azul, com muita torcida nas calçadas. Depois, Josué, com a camisa da Força Pública, esperança brasileira, na sua opinião.

— Manda brasa, baiano.

Josué, da Paraíba, tem melado na boca, o coração pulsa na veia do pescoço escondido. Josué sabe que o belga sabe que na hora em que desejar vai superá-lo. Pensa em Iolanda, tentativa de arregimentar forças.

Estão na subida da Rua da Consolação. Josué olha longe. A rua não tem os quilômetros que pensava, mas talvez mais de doze. Sente a perna grossa, os pés começando a doer.

O louro da Inglaterra já está pequenino, pela distância que aumenta. Na esquina da Caio Prado começam as cãibras.

— Pelo menos quinto...

Josué não tem grandes pretensões. Sabe que não come o que os outros comem, que não vive no mar de rosas dos estrangeiros. Ele é mestre-de-obras, trabalha pra ganhar a vida. E trabalha pesado, não vive em moleza.

O belga o supera. Josué percebe que o belga sorri quando lhe passa à frente. E já há um argentino e um venezuelano a persegui-lo de perto.

— Vamos, Josué.

Não sabe de onde partiu a voz, mas sente refrigério no incentivo que escuta. A subida é íngreme apenas para ele. Lá se vão os sul-americanos passando à frente. Calcula estar em oitavo lugar.

— Pelo menos décimo. . .

Josué tem as coxas medindo dois palmos de diâmetro. Dormentes, inclusive. Sente o cheiro do seu suor. Diferente do da obra. Agora, é um cheiro de atleta. Pensa um instante nos irmãos, em Sousa, na Paraíba, que nem sabem que ele é atleta. Pensa em Iolanda, certamente junto a um rádio. Será que estão falando o seu nome?

O sueco o suplanta, como também o holandês. Vão virar na Avenida Paulista.

A noite estava tão fresca, antes da corrida. Agora é esse inferno, essa sufocação que quase não o deixa respirar. Ele bufa a cada passo, morre um pouco a cada pisada. Passa por ele um brasileiro do Corinthians, bastante aplaudido.

— Nem o primeiro brasileiro eu vou ser.

Dobra na Avenida Paulista em vigésimo sexto. Mas há de chegar na frente de muita gente boa. Como estarão suas pernas amanhã? Josué sente o suor escorrer pelas coxas. Está cansado e sofrido. Padece mais, cada vez que um lhe passa à frente. Muitos, aliás, brasileiros. Passa Altamiro, também da Força Pública. Josué não percebe, mas já não corre, passeia. Vão passando muitos. O colombiano é o 78º a superá-lo.

— Subdesenvolvido como eu — pensa Josué, agora em frente do Conjunto Nacional.

Agora, tudo o que deseja é chegar. Qualquer coisa, menos parar no meio, como a maioria dos brasileiros. Chegar. Precisa chegar. Nem que seja em último Mas tem que ir até o fim. Falta quanto? Deseja tão pouco: chegar. Não pede demais, meu Deus do Céu.

— Andando, até eu.

A voz de gozo que sai da calçada o magoa. Pensa um palavrão que não pode falar. Da boca já sai, pelos cantos, uma espuma branca, um creme de cansaço. Faltam 400 metros. Chegar. Iolanda. Os irmãos na Paraíba. Chegar. Os amigos que arranjaram um jeito dele correr, defendendo a Força Pública. Iolanda.

Chegar.

Duzentos metros, Josué.

Continuam a passar por ele. Está incapacitado de saber em que colocação se encontra. Só saberá o lugar que tirou amanhã, pelos jornais.

— Corre, que dá pra tirar terceiro.

Zombam, na calçada. Josué pensa em lhes dizer que se ponham no seu lugar. Não é atleta, é mestre-de-obras, seus idiotas, que só sabem dizer besteira.

As pernas param de resistir. Faltam cem metros. Ele cai. O asfalto queima-lhe a cara. Retiram-no da avenida. Não há ar no mundo. Josué tenta o ar que não existe. A boca aberta, com dentes de ouro, busca o ar impossível. É tarde. O ar acabou, para ele, pelo menos.

No podium colocam uma coroa de louros na cabeça do inglês.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Nenhum comentário: