quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Antonio Carlos de Barros (O Gaúcho e o seu Cavalo)


O cavalo, por sua importância histórica e social, como instrumento de trabalho, de recreação ou até mesmo nas peleias históricas deste Rio Grande velho, constituiu-se, através dos tempos, em um dos temas que mais cativaram e ainda permeiam a sensibilidade dos escritores Gaúchos, tanto em prosa como em versos. 

Para quem desconhece as raízes do tradicionalismo, talvez fique difícil entender essa relação entre um homem e seu cavalo: é comum dizer que, um não existe sem o outro.

No interior dos municípios Gaúchos, é comum a utilização do cavalo para os diversos serviços de campo, ou como montaria para passeio, para ir às carreiras*, para fazer compras no bolicho*; para conduzir as crianças à escola; ir a um Fandango*, e até cerimônias de casamento. Além de ser usado como montaria, o cavalo muitas vezes é utilizado para tração de carroças, charretes, etc.
Gaúcho que é Gaúcho sabe muito bem cuidar do seu pingo*, conversa com o animal, trata-o muito bem, é a sua forma de dizer que gosta, é o respeito e o comprometimento com o animal. Como citado no verso da música com o conjunto Os Monarcas, famosa por relatar a amizade entre O Gaúcho e o Cavalo:

Quem sou eu sem meu cavalo
O que será dele sem mim
Talvez dois seres perdidos
A vagar pelo capim.
Quem sou eu sem meu cavalo
O que será dele sem mim
Porque quando morre um cavalo
Morre um pedaço de mim.

O grande escritor, poeta, EDILBERTO TEIXEIRA, afirma em seu livro Dicionário Gaúcho do Cavalo, que não é temeridade afirmar-se que o Rio Grande do Sul é uma das “Províncias Idiomáticas” mais ricas do Brasil em razão do cavalo. Ele é a maior fonte inspiradora do Gaúcho ao metaforizar conceitos.

Na poesia, na trova e na sua fraseologia peculiar, sempre, há de estar o cavalo como um símbolo, uma comparação, um dito rimado. No seu viver diário, nas suas lides campeiras, nas suas festas, carreiras, rodeios, sempre junto ao cavalo, dele tira as conclusões por força do hábito.

O grande poeta Guilherme Schultz Filho, em sua magistral poesia PINGOS, trás nos versos a comparação de cada fase da nossa existência, infância, mocidade, adulto e na idade madura ou na melhor idade, analogicamente, com os cavalos. Vejamos os versos:

Em cada ronda da vida
eu tive um pingo de lei.
Montado, sou como um rei,
pelo garbo e o entono.
Cavalo pra mim é um trono:
e neste trono me criei.

De piazito* já encilhava
um peticinho* faceiro,
que era cria de um overo*
e de uma egüinha bragada*:
era da cor da alvorada
o meu petiço luzeiro!*

Rosado como as manhãs,
do pelo da própria infância,
mascando o freio com ânsia,
parece que até sorria...
Chamava-se "Fantasia"
e era a flor daquela estância.

Já mocito, o meu cavalo
era um ruano*, ouro nas crinas,
festejado pelas chinas*
que o chamavam - "Sedutor".
Formava um jogo de cor
sob os reflexos da aurora
com os cabrestilhos* da espora
e os flecos* do tirador*.

Naqueles tempos de quebra,
nos bolichos*, ao domingo,
sempre floreando* meu pingo
todos me viram pachola*
com o laço a bate-cola*
e virando balcão de gringo.

O meu cavalo de guerra
chamava-se "Liberdade"!
Chomico!* Quanta saudade
me alvoroça o coração!
Era um mouro* fanfarrão,
crioulo* da própria marca
e eu ia como um monarca*
na testa de um esquadrão.

Em uma carga das feias,
como aquela do Seival*,
o mesmo que um temporal
rolamos por um lançante*
e até o próprio comandante
ficou olhando o meu bagual*.

Homem feito e responsável,
o meu flete* era um tostado*,
tranco macio, bem domado,
êita pingo macanudo*!
desses que "servem pra tudo",
segundo um velho ditado.

Mui amestrado na lida,
um andar de contra-dança;
de freio, era uma balança,
campeiro, solto das patas...
Gaúcho, mas sem bravatas,
e o batizei de "Confiança"

O cavalo que encilho
nesta quadra da existência,
dei-lhe o nome de "Experiëncia".
É um picaço* de bom trote
e levando por diante o lote
rumbeio* à Eterna Querência.

E, assim, vou descambando,
ao tranco e sem escarcéu,
sempre tapeado o chapéu
por orgulho de Gaúcho,
e se Deus me permite o luxo
entro a cavalo no céu!

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* GLOSSÁRIO:

- Bagual – animal ainda não domado.
- Bate cola – o laço entre a cauda do animal.
- Bolicho – armazém de campanha.
- Bragada – pelo do cavalo que tem a virilha ou a barriga branca e o resto do corpo de outra cor.
- Cabrestilhos – correias de couro que seguram as esporas aos pés.
- Carreiras – corridas de cavalos.
- Chinas – descendente ou mulher de índio, morena.
- Chomico – interjeição de espanto.
- Contra dança – macio, leve.
- Crioulo – natural de determinado lugar, região, estado, País.
- Fandango – bailes campeiros.
- Flecos – franjas.
- Flete – cavalo bom e de bela aparência.
- Floreando – manejar com destreza.
- Lançante – descida, qualquer terreno em declive.
- Luzeiro – claro como a luz.
- Macanudo – bom, poderoso, superior.
- Mocito – mocinho.
- Monarca – gaúcho que monta com garbo e elegância.
- Mouro – pelo do animal negro salpicado de branco.
- Overo ou Oveiro – diz-se do animal malhado.
- Pachola – metido.
- Peticinho – ou Petiço - cavalo pequeno, curto, baixo.
- Piazito – gurizinho.
- Picaço – cavalo de pelo escuro com a testa e as patas brancas.
- Pingo – cavalo bom, corredor, bonito, vistoso.
- Ruano – pelo de cavalo arruivado.
- Rumbeio – rumar, encaminhar-se para certo lugar ou direção.
- Seival – banhado extenso, alagadiço. Local de uma batalha próximo à Bagé, na Revolução Farroupilha.
- Tirador – espécie de avental de couro macio, que os laçadores usam pendente da cintura.
- Tostado – cor de canela, meio ruivo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

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