segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Malba Tahan (O Marido Alugado)


Rachid Biram, homem generoso e rico, que negociava em joias e sedas, procurou-me um dia, muito aflito, em minha tenda.

A sua situação era delicada e, na verdade, apresentava não pequena dificuldade. Dentro de algumas horas, antes de surgir a lua, deveria partir com uma grande caravana de mercadores damascenos para a feira de Hil. Queria, porém, antes de iniciar essa longa jornada, casar-se outra vez com a encantadora Naziha, sua ex-esposa, que oito dias antes, num momento de exaltação, levado pelo ciúme, havia repudiado segundo a fórmula sagrada.

    - Conheço aqui em Kufa - disse-lhe, sem muito hesitar, - um certo Musa ibn-David (1) que se aluga para marido. Por que não o procuras? Deves obter, agora mesmo, um "marido desligador".

Antes de prosseguir, devo um esclarecimento aos leitores que ainda não percorreram, ao passo lento das caravanas, os intermináveis desertos da Arábia.

Segundo as instituições muçulmanas, quando um marido repudia a esposa uma ou duas vezes, pode recuperá-la, sem mais formalidades, ao fim de três meses e dez dias; quando, porém, o repúdio é feito pela terceira vez ou mediante a fórmula: - "Eu te repudio três vezes" - o casamento está definitivamente rompido e o ex-marido só poderá contrair novo casamento com essa mesma mulher, no caso em que ela se case com outro homem, sendo pelo novo marido igualmente repudiada!

Tal exigência do Alcorão - que os doutores afirmam ser justificável em teoria - é na prática uma fonte fecunda de situações cômicas e extravagantes, pois, muita vez, um marido, desejoso de reatar relações com a esposa que repudiou impensadamente, prepara para ela a farsa ridícula de um casamento com um "marido alugado". Homens há que se prestam, mediante boa remuneração, a desempenhar o papel de marido "desligador" - preenchendo as formalidades de um casamento burlesco que dura, às vezes, pouco mais de uma hora.

Musa ibn-David era um dos tais que se "alugavam" para marido. Era provável, pois, que servisse ao rico Rachid Biram.

    "- Já o procurei - declarou Rachid. - Ofereci-lhe uma boa recompensa, mas ele não a aceitou.

    - Por Allah! - exclamei. - Não é possível! Musa sempre se prestou ao ignóbil papel de marido alugado e não será, portanto, capaz de recusar uma oferta desta ordem.

    Montei a cavalo e, acompanhado de um guia negro, dirigi-me no mesmo instante para a tenda do marido mercenário.

    Encontrei sentado à porta um velho de longas barbas brancas. Era o pai de Musa.
      
    - Naharak, sahid, ia qhawaja! (2) - saudei-o, ao chegar. - Onde está Musa, ó David?

    - Partiu há pouco para o deserto de Hajar - respondeu-me o ancião - e só voltará depois da outra lua!

    - Sabes, ó cheique! - Perguntei - por que motivo Musa não quis servir de "marido desligador" ao rico Biram?

    - Sei, sahheb (3) - respondeu-me. -- Meu filho, quando ainda muito jovem, conheceu Naziha e apaixonou-se por ela. E bem sabes que um homem digno não poderia fazer, com a mulher amada, o papel de marido alugado!

    - Uallah! - exclamei. - Ridícula desculpa! Arrojada tolice! Um homem que exerce a degradante profissão de teu filho não pode ter semelhantes escrúpulos! A formosa Naziha conhece-o bem e considera-o, por certo, mais desprezível que o chacal!

    - Por Maomé! - exclamou o velho erguendo-se, colérico. - És um covarde! Procuras ofender meu filho quando sabes que já não tenho forças para repelir os teus insultos! Queira Allah que sejas castigado como mereces, pois o castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras o estão dos olhos!

    E o eco dessa praga terrível acompanhou-me os passos pelo deserto.

    Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, achava-me sentado à porta de minha tenda, meditando sobre o caso de Musa ibn-David, quando de mim se acercou uma jovem, completamente velada, que se fazia acompanhar de duas escravas.

    Saudei-as respeitosamente e perguntei-lhe o que de mim desejava.

    Respondeu-me, com voz terna e maviosa:

    - Que Allah te cubra de dons, ó jovem! Informaram-me hoje, pela manhã, que estavas de passagem por esta cidade com uma caravana de mercadores do Cairo e de Damasco, e que hoje mesmo partirás para Bagdá e daí para Basra. Quero comprar alguns vestidos, peças de adornos e joias.

    E, enquanto falava, a jovem foi pouco a pouco erguendo o seu espesso véu, deixando descoberto o pequenino rosto, em cujas linhas o Divino Artista fizera aparecer os mil segredos da sedução. Fiquei deslumbrado! Exaltado seja Allah, o Único, que soube reunir tanta beleza no olhar e tanto encanto no sorriso de uma mulher formosa!

    Seduzido pela incomparável beleza da jovem desconhecida, prontifiquei-me a mostrar-lhe, no mesmo instante, todos os ricos artigos que levava: sedas, vestidos, tapetes, casimiras da índia, colares, cafetãs de veludo, telas riquíssimas do Industão, véus bordados a ouro, sapatos da Pérsia, peles do Cáucaso e mil outras coisas igualmente preciosas e deslumbrantes.

    Duas horas ficou a jovem em minha tenda a examinar e escolher os objetos que pretendia comprar. Durante todo esse tempo, Hadija - assim se chamava a linda muçulmana - falou-me  de sua  vida  no  harém de seus pais, que eram ricos e viviam num grande serralho junto ao Eufrates.

    - Hadija - declarei, afinal, num ímpeto, tomando-lhe as mãos entre as minhas - devo partir amanhã para Bagdá. Confesso-te, porém, que estou loucamente apaixonado por ti! Queres casar comigo?

    Com um sorriso encantador, que por timidez parecia procurar refúgio nas covinhas das faces, ela assim me respondeu:

    - Ó jovem tão bem dotado! Teu pedido traz grande alegria ao meu coração! As tuas palavras, como o vento no deserto, erguem bem alto a areia ardente dos meus desejos! Quero ser tua esposa e acompanhar-te pelo mundo na tua vida aventureira e incerta de mercador!

    E, como não houvesse tempo a perder, ficou resolvido que o casamento se faria imediatamente.

    Uma hora depois, no grande salão do palácio em que morava Hadija, realizou-se o casamento, segundo os preceitos muçulmanos, na presença do cádi e das testemunhas.

    Terminada a cerimônia, deixei rapidamente o salão e fui falar com alguns amigos e empregados que me tinham acompanhado.

    Quando voltei para junto dos convidados, aguardava-me a mais dolorosa das surpresas. Fui encontrar minha esposa, em um canto do salão reclinada sobre um rico divã que um largo reposteiro ocultava; estava abraçada a um jovem, que a beijava apaixonadamente nos olhos negros e na boca nacarina e fresca.

    - Ó falsa criatura! - bradei, tomando de grande furor. - Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante! Longe de mim, mulher indigna, filha de Cheitã (4)

     E, revoltado com o procedimento da desleal que eu escolhera, para esposa, gritei, cheio de cólera, a fórmula definitiva do divórcio:
   
     - Ó falsa criatura! - bradei, tomado de grande furor. - Ainda não há uma hora que nos casamos e já tens um amante!

    - De ti me divorcio três vezes!

    Ao ouvir tais palavras, ergueu-se a jovem, e, com voz calma, irônica, disse-me:

    - Julgas então que eu tenho amante? És um tolo, um pateta! Olha! Olha bem! Este "jovem" que me abraçava e beijava é a minha boa escrava Zobeida, que fiz vestir com trajes masculinos! Foste completamente ludibriado e estou de ti para sempre divorciada!

    Foi com espanto que percebi o engano que cometera num momento em que o ciúme e a paixão me haviam tornado cego. A pessoa que estava com Hadija era realmente uma escrava disfarçada com os cabelos cortados e vestida à maneira dos homens.

    - Hadiji! - exclamei. - Não sei como explicar o teu estranho proceder. Se não querias ser minha esposa, por que aceitaste o meu pedido de casamento?

    - Devo-te uma explicação, ó muçulmano - tornou a jovem. - Há dois meses, mais ou menos, meu marido, Salim Hamed, num momento de exaltação, divorciou-se de mim, pronunciando três vezes a fórmula sagrada do divórcio. Ontem, porém, procurou-me e propôs a reconciliação e um novo casamento. Infelizmente, segundo as nossas leis, eu não poderia casar com ele sem ter casado antes com outro homem que me repudiasse. Na falta de um "desligador" de confiança, resolvi lançar mão de um estratagema. Casei contigo e procurei dar-te um pretexto, embora falso, para que me rejeitasses imediatamente. Agora, sim, posso casar com Salim Hamed!

    E voltando-me as costas, deixou-me estupefato diante do cádi e das testemunhas que se riam de mim.

    Eu havia feito, sem querer, o ridículo e ignóbil papel de marido desligador!

    O castigo de Deus está realmente, mais perto do pecador, do que as pálpebras o estão dos olhos!
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Notas:
1- Musa ibn-David. - Musa, filho de David.
2- Bom dia, ó chefe!
3- Sahheb - Título honroso. Corresponde a Senhor.
4 - Cheitã - Demônio.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

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