segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Caldeirão Poético XXXII


BENI CARVALHO
(1886-1959)

ESSÊNCIA IMPERECÍVEL


De ti, de teu casulo material
Todo o eflúvio de carne embriagador
Há de passar, há de fugir, tal qual
Se vai, da murcha rosa, o aroma e a cor.

De teu olhar o cálido fulgor,
De teus lábios a música auroral,
Tudo se extinguirá, quando se for
De teu corpo a dinâmica vital.

Não morrerás, no entanto; eterna e viva,
Brilharás nos lampejos de tua alma,
Que a Morte não domina, não cativa.

E, então, como Virtude, hás de viver
Desfeita em branda luz, na suave, e calma
E espiritual essência do teu Ser!

BRUNO BARROSA
(1886-1956)

ÂNSIA INFINITA


Alma! sobe, desvenda, alcança outras planuras,
Quebra o grilhão fatal, quebra a maldita algema
Que te prende no chão, e voa nas alturas,
Embora o sol desmaie, embora a nuvem trema.

Povoa a solidão das noites mais escuras...
Tira da luz a crença, esta verdade extrema
Que te falta e, se um deus é o que, ardente, procuras,
Faze um deus que contigo as dores sinta e gema.

Mas, que vejo? Voaste, asas abertas, frio
O ar, a nuvem que passa e foge, a imensidade
Viste e viste sem luz o espaço, ermo e vazio.

Baldado é teu esforço, inútil é teu grito:
És pequena demais, mesquinha humanidade,
E esmaga-te a cabeça o peso do infinito.

COSTA E SILVA
(1885-1950)

EGO


Sou, talvez, o mais triste ser humano
Que vive sob o céu ou sobre o solo,
Porque possuo o espírito de Apolo
Na feia catadura de Vulcano.

Malgrado esta desdita e o desengano
A que Amor me votou, eu me consolo
Na esperança de ainda sobre um colo
De Nereida dormir tranquilo e ufano.

É que, sem mesmo as correções marmóreas
Que teve o deus para os cinzéis helenos,
Com a sacra flama e com os pulmões de Bóreas,

Hei de, em carnes polífonos, ao menos,
Vencendo as glaucas vastidões equóreas,
Enternecer o coração de Vênus.

HEITOR LIMA
(1887-1945)

RENÚNCIA


Fugir, deixando um bem que o braço já tocava
Pela incerteza atroz de uma fé que redime...
Fugir para ser livre, e sentir, na alma escrava,
A sujeição fatal de uma paixão sublime.

Fugir, e, surdo à voz da consciência, que oprime,
Opor diques de gelo a torrentes de lava,
Sentindo, na renúncia, o alvoroço de um crime
Que a ingratidão aumenta e a covardia agrava.

Fugir, tão perto já da enseada, vendo, ao fundo,
Gaivotas esvoaçando entre velas e mastros,
Na glorificação triunfal do sol fecundo.

Fugir do amor - fugir do céu, fugir de rastros,
Sufocando um clamor que abalaria o mundo
E abafando um clarão que incendiaria os astros!

HERMES FONTES
(1888-1930)

IN EXCELSIS!


Glória a ti, que és perfeita, em quanto, humanamente,
possa alguém atingir à perfeição moral!
Glória! Ao desabrochar dessa alma redolente
o incenso do meu culto, o hino do meu ritual!

Glória a Ti, só a Ti, pois é em Ti, somente,
ó Expressão Natural do Sobrenatural,
é só em Ti que encontro a invisível semente
com que, assim, frutifico em pensamento e ideal!

Glória, em Ti, alma irmã! Milagre, que conferes
a todos os que atrais e a mim, que repudias,
a alta revelação da maravilha que és!

Glória, em Ti, ao Amor! Glória, em Ti, às mulheres!
A Ti, que reduziste a glória dos meus dias
a degrau do teu Sólio, a escrínio dos teus pés!...

OSCAR LOPES
(1883-1938)

O FIM


Um de nós morrerá primeiro... Eis a verdade,
Eis o que é natural, sendo embora monstruoso!
Um ficará na terra, envolto na saudade,
Depois de o outro ir buscar o absoluto repouso.

Quem de nós transporá primeiro a eternidade?
Eu ou tu? - Quanta vez, nos momentos de gozo,
Sinto em mim a aflição dessa curiosidade
Devorar o meu ser, como um cancro horroroso!

Tu ou eu? Tu, que és linda, e que és moça, e que és boa,
Ou eu, que não sou mais do que um farrapo humano?
- Não sei o que me diz que irás na minha frente...

Irás... E eu ficarei como uma coisa à toa,
Como um cão para o qual é tudo desengano
E que chora o seu dono inconsolavelmente...

RAUL DE LEONI
(1895-1926)

DESCONFIANDO


Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,
Atento tu me escutas quando falo;
Bem antes que te exponha o meu desejo
Já pronto estás correndo a executá-lo.

Achas em tudo um venturoso ensejo
De servir-me de servo e de vassalo;
Perdoa-me a verdade num gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

Mas não penses que estólido eu te creia
Como um Patroclo abnegado, não:
De todos os excessos se receia...

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;
Odeias-me, que eu sei, mas, histrião,
Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...

RONALD DE CARVALHO
(1893-1935)

AVATAR


Antes, a alma que tenho andou perdida.
Porque mundos rolou, que mão sutil
Pôs tão nobre fulgor, e estranha vida,
Nesse bocado de ouro e barro vil?

Decerto, árvore foi: verde jazida
De ninhos, sob o céu de espuma e anil,
E foi grito de horror, na ave ferida,
E, na canção de amor, sonho febril!

Foi desespero, sofrimento mudo,
Ódio, esperança que tortura e inferna;
E, depois de exsurgir, triste, de tudo,

Veio para chorar dentro em meu ser,
A amarga maldição de ser eterna,
E a dor de renascer, quando eu morrer!

Nenhum comentário: