sábado, 28 de setembro de 2019

Luiz Poeta (Roceiro)


O caminhão-basculante veio arrastando o mato, a poeira embaçando a grama, o barulho potente do motor importado assustando os camaleões e lagartos, espantando os tizius, coleiras, sabiás e sanhaços.

De repente, o baque! Dois bezerros foram colhidos em cheio; outros saltaram a cerca de arame farpado, ferindo-se atabalhoadamente. A caminhonete vermelha foi parar no barranco.

O vaqueiro chicoteou a égua baia, chegou perto, gritou para o motorista:

- Eh, cumpadre, ocê matou dois bezerro!

- Matei!? - respondeu o outro perguntando.

- Matou?!

- Pois aqui não é lugar de bezerro pastar!

~ É, mas ocê podia pelo menos diminuir a marcha, não carecia de correr tanto...

- Meta-se com a sua vida, seu... Eu corro onde quiser!

- Correr ocê inté pode, só num pode é matar os bicho...

- Se matei, tá matado, que se dane!

- Que se dane não, moço... Ocê tem que pagar os bicho morto, no preço justo!

- Pagar uma ova! Quero ver quem é o macho que vai me cobrar - ameaçou.

- Pois daqui o senhor não sai. Bezerro custa caro.

- Não saio? Vamos ver se não saio!

O homem foi atrás do banco do carro, pegou uma barra de ferro e desceu disposto a tudo, avançando ameaçadoramente para o outro.

O vaqueiro não se intimidou. Meteu a mão numa garrucha e disparou.

Os dois únicos tiros que a arma suportava, pegaram numa das pernas do motorista.

Cambaleante, ele arrastou-se até o carro, ligou o motor estabanadamente, manobrou o carro e arremessou-o contra o vaqueiro - que se desviou com precisão - e saiu como um relâmpago.

O roceiro apeou, caminhou até os dois animais ensanguentados. Uma difícil lágrima rolava-lhe discreta na face cabocla...

- Desgraçado! - Choramingou.

Um dos bezerros estertorava, o outro nem se movia.

- Malvado! Nem pra andar devagar... Por que correr daquele jeito?

De repente, as sirenes. A viatura policial deslizava ao longe, levantando a poeira amarela da estradinha que circundava o pasto.

O triste homem levantou-se, afagou os animais mortos, montou na égua e sumiu no meio do capinzal.

Véi Mundim consertava a cerca que circundava a casa de madeira. Um prego na boca, outro entre os dedos, o martelo na mão.

De repente, o rumor de cascos no barro.

A sirene acordando o pasto, os tiros pipocando no silêncio vivo do capinzal.

O vaqueiro vinha feito uma bala riscando o tempo, arriado sobre a sela, a égua avançando ligeira. Quando divisou a porteira, o animal entrou apertado no pequeno vão. O carro da polícia passou direto, estilhaçando a madeira.

O velho estava boquiaberto; o prego semi-enterrado na primeira martelada...

Do que jeito que vinha, o boiadeiro desmontou num salto, a bota afundou no charco, a égua foi parar logo adiante.

- Que foi, homem? — indagou o velho.

- Depois eu conto, agora é fincar pé no mato!

E sumiu no meio do capim-navalha.

A viatura deu marcha a ré e dela saltaram um tenente, dois soldados e o motorista do caminhão-basculante, capengando. Os homens foram entrando cocheira-adentro, o pé do
oficial arrebentou a taramela.

Véi Mundim olhava-os de soslaio, por trás de uma das lentes dos óculos rachados, o cigarro de palha torto num dos cantos da boca. O martelo firme numa das mãos.

- Onde está o bandido? - perguntou o tenente.

O velho bateu o segundo prego, sem responder; as pupilas azuis como um céu aberto sobre o vale.

O tenente aborreceu-se.

- Como é que é, meu senhor? Onde está o marginal?

O velho nada respondia. O soldado tentou segurá-lo. O martelo tomou-se um machado,

- Se chegar mais perto, eu abro sua cabeça, sordado!

E abria mesmo, não fosse a intervenção do tenente.

- Calma, rapaz, deixe o moço. - chegou-se para o velho demonstrando atitude pacífica. - Amigo... aquele homem que entrou aqui correndo, baleou este moço aqui - apontou para o irritado motorista que massageava a perna atingida.

- Agora já se pode começar uma conversa... - disse o velho. De primeiro, ocê preguntô por um bandido... Que se saiba, aquele moço num é nenhum bandido...

- Bem, meu senhor... ele baleou um motorista....

- Adispois, - continuou o velho - vosmicê quis sabê de um marginá... se se refere àquele moço que sumiu no mato, também num se trata dele...

- Meu senhor, ele fez uma vítima...

O velho não se abalou:

- Adispois ainda, o sordado raso ai tentou botar a mão ni mim... Como é que ocê ainda tem o descaramento de fazer pregunta a uma pessoa que nunca viu mais gorda? Seja mais educado, homem! Cadê os estudo? Cumpra o seu dever, mas num martrata as pessoa di bem.

O tenente coçava a cabeça, os soldados franziam a testa, o baleado enrijecia os músculos faciais e não se conteve:

- Aquele safado me deu dois tiros!

~ Eu conheço ocê de algum lugar? - indagou o velho sem se abalar... Além do mais, se levou dois tiro, à toa é que num foi... nessas banda, ninguém leva tiro a troco de nada...

- Ora, seu... - o motorista avançou para o velho, que muniu-se de um pedaço de madeira da cerca.

– Eu acho que ocê num tá satisfeito com os dois tiro. Se me provocar, vai ter dois buraco na perna e um taio na cabeça. Vem procê vê!

- Calma, gente, vamos conversar - interrompeu o tenente.

- O que nós queremos é saber onde foi aquele moço que estava montado nesta égua aqui, o senhor poderia nos ajudar?

- Que eu visse, se embrenhou no mato.

- Onde?

- Ué ! É só oiá pro mato e procurá.

- Bem, o senhor vai nos mostrar onde ele está!

- Quando ele chegou aqui, eu tava pregando as tábua da minha cerquinha. Tava ainda no primeiro prego, quando ouvi toda a barulheira que ocês fizeru.

- Tudo bem, tudo bem, gritou um dos soldados! E pra onde ele foi? O senhor já está deixando a gente nervoso!

- Vem cá, me diz uma coisa... Quem é o comandante desse pelotão? É ocê? É aquele cidadão capenga ou é o outro sordado?

- Soldado, cale-se!

- Mas eu...

- Cale-se! Eu faço as perguntas! O tenente estava irritado.

- Meu senhor, aquele homem é um criminoso e nós vamos pegá-lo!

- Que nós? Eu e ocês? Eu num güento nem carregar um molho de agrião, quanto mais correr atrás de alguém. Ocês é que se vire!

- Mas nós temos que alcançá-lo!

- Ué, e por que não arcançaru ainda? Ocês num ião de carro? Ele tá a pé. Qual o pobrema?

- O problema é que... Ora, meu senhor...

De repente, um grito no capinzal:

- Eu tô aqui, seus trouxa! Para de conversa-fiada e vem me buscar!

Estupefatos, todos saíram voando na direção do grito. O tenente, os soldados e o capenga.

O velho balançava a cabeça reprovando:

- São uns bando de maluco..,

As botas pisavam fundo as barrentas poças de lama amassando capinzal; concomitantemente, frangos-d'água, galinhas-d'angola e gaviões acordaram o vale num estrondoso farfalhar de asas, pios, chiados e gritos...

- Vêm me pegá, seus bunda-suja ! - gargalhava o peão dentro da capoeira - Cês num intendi de genti, vai intende di mato?

Dois filas, um doberman, um rotweiller e um pitbull que guardavam a casa grande despertaram do seu sono rural e, curiosos, empinaram ouvidos e narinas na direção do vento que trazia rumores e cheiros urbanos e partiram para cima dos barulhentos forasteiros.

Paralelamente a esse fatídico acontecimento inesperado, as entonações já não mostravam tanta gana em pegar o fugitivo.

Os sons eram outros:

- Uma cobra! - berrou um dos soldados, a jararacuçu grudada na sua bota.

O velho continuava a martelar sua cerca, um riso capenga atravessando o vazio entre os dois caninos cariados, enquanto completava: - São uns bunda-suja mermo.

- Socorro! - era outro gritando, agora o que levara o tiro.

No seu encalço, um touro preto enorme - um pedaço de cueca vermelha num dos chifres do boi babão,

Bruscamente, o desfecho da perseguição:

- Cuidado! Areia movediça!!!!

E todos estavam chafurdados naquele monte de lama misturado com gravetos, animais mortos, frutas podres e folhas secas...

A margem da capoeira, o touro bufando, os cães rosnando e o fugitivo mordendo um galhinho de murubu.

- Ocês sabia que aí tem jacaré do papo amarelo daqueles grandão?


(Texto premiado pela Academia Irajaense de Letras)

Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

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