O caminhão-basculante veio arrastando o mato, a poeira embaçando a grama, o barulho potente do motor importado assustando os camaleões e lagartos, espantando os tizius, coleiras, sabiás e sanhaços.
De repente, o baque! Dois bezerros foram colhidos em cheio; outros saltaram a cerca de arame farpado, ferindo-se atabalhoadamente. A caminhonete vermelha foi parar no barranco.
O vaqueiro chicoteou a égua baia, chegou perto, gritou para o motorista:
- Eh, cumpadre, ocê matou dois bezerro!
- Matei!? - respondeu o outro perguntando.
- Matou?!
- Pois aqui não é lugar de bezerro pastar!
~ É, mas ocê podia pelo menos diminuir a marcha, não carecia de correr tanto...
- Meta-se com a sua vida, seu... Eu corro onde quiser!
- Correr ocê inté pode, só num pode é matar os bicho...
- Se matei, tá matado, que se dane!
- Que se dane não, moço... Ocê tem que pagar os bicho morto, no preço justo!
- Pagar uma ova! Quero ver quem é o macho que vai me cobrar - ameaçou.
- Pois daqui o senhor não sai. Bezerro custa caro.
- Não saio? Vamos ver se não saio!
O homem foi atrás do banco do carro, pegou uma barra de ferro e desceu disposto a tudo, avançando ameaçadoramente para o outro.
O vaqueiro não se intimidou. Meteu a mão numa garrucha e disparou.
Os dois únicos tiros que a arma suportava, pegaram numa das pernas do motorista.
Cambaleante, ele arrastou-se até o carro, ligou o motor estabanadamente, manobrou o carro e arremessou-o contra o vaqueiro - que se desviou com precisão - e saiu como um relâmpago.
O roceiro apeou, caminhou até os dois animais ensanguentados. Uma difícil lágrima rolava-lhe discreta na face cabocla...
- Desgraçado! - Choramingou.
Um dos bezerros estertorava, o outro nem se movia.
- Malvado! Nem pra andar devagar... Por que correr daquele jeito?
De repente, as sirenes. A viatura policial deslizava ao longe, levantando a poeira amarela da estradinha que circundava o pasto.
O triste homem levantou-se, afagou os animais mortos, montou na égua e sumiu no meio do capinzal.
Véi Mundim consertava a cerca que circundava a casa de madeira. Um prego na boca, outro entre os dedos, o martelo na mão.
De repente, o rumor de cascos no barro.
A sirene acordando o pasto, os tiros pipocando no silêncio vivo do capinzal.
O vaqueiro vinha feito uma bala riscando o tempo, arriado sobre a sela, a égua avançando ligeira. Quando divisou a porteira, o animal entrou apertado no pequeno vão. O carro da polícia passou direto, estilhaçando a madeira.
O velho estava boquiaberto; o prego semi-enterrado na primeira martelada...
Do que jeito que vinha, o boiadeiro desmontou num salto, a bota afundou no charco, a égua foi parar logo adiante.
- Que foi, homem? — indagou o velho.
- Depois eu conto, agora é fincar pé no mato!
E sumiu no meio do capim-navalha.
A viatura deu marcha a ré e dela saltaram um tenente, dois soldados e o motorista do caminhão-basculante, capengando. Os homens foram entrando cocheira-adentro, o pé do
oficial arrebentou a taramela.
Véi Mundim olhava-os de soslaio, por trás de uma das lentes dos óculos rachados, o cigarro de palha torto num dos cantos da boca. O martelo firme numa das mãos.
- Onde está o bandido? - perguntou o tenente.
O velho bateu o segundo prego, sem responder; as pupilas azuis como um céu aberto sobre o vale.
O tenente aborreceu-se.
- Como é que é, meu senhor? Onde está o marginal?
O velho nada respondia. O soldado tentou segurá-lo. O martelo tomou-se um machado,
- Se chegar mais perto, eu abro sua cabeça, sordado!
E abria mesmo, não fosse a intervenção do tenente.
- Calma, rapaz, deixe o moço. - chegou-se para o velho demonstrando atitude pacífica. - Amigo... aquele homem que entrou aqui correndo, baleou este moço aqui - apontou para o irritado motorista que massageava a perna atingida.
- Agora já se pode começar uma conversa... - disse o velho. De primeiro, ocê preguntô por um bandido... Que se saiba, aquele moço num é nenhum bandido...
- Bem, meu senhor... ele baleou um motorista....
- Adispois, - continuou o velho - vosmicê quis sabê de um marginá... se se refere àquele moço que sumiu no mato, também num se trata dele...
- Meu senhor, ele fez uma vítima...
O velho não se abalou:
- Adispois ainda, o sordado raso ai tentou botar a mão ni mim... Como é que ocê ainda tem o descaramento de fazer pregunta a uma pessoa que nunca viu mais gorda? Seja mais educado, homem! Cadê os estudo? Cumpra o seu dever, mas num martrata as pessoa di bem.
O tenente coçava a cabeça, os soldados franziam a testa, o baleado enrijecia os músculos faciais e não se conteve:
- Aquele safado me deu dois tiros!
~ Eu conheço ocê de algum lugar? - indagou o velho sem se abalar... Além do mais, se levou dois tiro, à toa é que num foi... nessas banda, ninguém leva tiro a troco de nada...
- Ora, seu... - o motorista avançou para o velho, que muniu-se de um pedaço de madeira da cerca.
– Eu acho que ocê num tá satisfeito com os dois tiro. Se me provocar, vai ter dois buraco na perna e um taio na cabeça. Vem procê vê!
- Calma, gente, vamos conversar - interrompeu o tenente.
- O que nós queremos é saber onde foi aquele moço que estava montado nesta égua aqui, o senhor poderia nos ajudar?
- Que eu visse, se embrenhou no mato.
- Onde?
- Ué ! É só oiá pro mato e procurá.
- Bem, o senhor vai nos mostrar onde ele está!
- Quando ele chegou aqui, eu tava pregando as tábua da minha cerquinha. Tava ainda no primeiro prego, quando ouvi toda a barulheira que ocês fizeru.
- Tudo bem, tudo bem, gritou um dos soldados! E pra onde ele foi? O senhor já está deixando a gente nervoso!
- Vem cá, me diz uma coisa... Quem é o comandante desse pelotão? É ocê? É aquele cidadão capenga ou é o outro sordado?
- Soldado, cale-se!
- Mas eu...
- Cale-se! Eu faço as perguntas! O tenente estava irritado.
- Meu senhor, aquele homem é um criminoso e nós vamos pegá-lo!
- Que nós? Eu e ocês? Eu num güento nem carregar um molho de agrião, quanto mais correr atrás de alguém. Ocês é que se vire!
- Mas nós temos que alcançá-lo!
- Ué, e por que não arcançaru ainda? Ocês num ião de carro? Ele tá a pé. Qual o pobrema?
- O problema é que... Ora, meu senhor...
De repente, um grito no capinzal:
- Eu tô aqui, seus trouxa! Para de conversa-fiada e vem me buscar!
Estupefatos, todos saíram voando na direção do grito. O tenente, os soldados e o capenga.
O velho balançava a cabeça reprovando:
- São uns bando de maluco..,
As botas pisavam fundo as barrentas poças de lama amassando capinzal; concomitantemente, frangos-d'água, galinhas-d'angola e gaviões acordaram o vale num estrondoso farfalhar de asas, pios, chiados e gritos...
- Vêm me pegá, seus bunda-suja ! - gargalhava o peão dentro da capoeira - Cês num intendi de genti, vai intende di mato?
Dois filas, um doberman, um rotweiller e um pitbull que guardavam a casa grande despertaram do seu sono rural e, curiosos, empinaram ouvidos e narinas na direção do vento que trazia rumores e cheiros urbanos e partiram para cima dos barulhentos forasteiros.
Paralelamente a esse fatídico acontecimento inesperado, as entonações já não mostravam tanta gana em pegar o fugitivo.
Os sons eram outros:
- Uma cobra! - berrou um dos soldados, a jararacuçu grudada na sua bota.
O velho continuava a martelar sua cerca, um riso capenga atravessando o vazio entre os dois caninos cariados, enquanto completava: - São uns bunda-suja mermo.
- Socorro! - era outro gritando, agora o que levara o tiro.
No seu encalço, um touro preto enorme - um pedaço de cueca vermelha num dos chifres do boi babão,
Bruscamente, o desfecho da perseguição:
- Cuidado! Areia movediça!!!!
E todos estavam chafurdados naquele monte de lama misturado com gravetos, animais mortos, frutas podres e folhas secas...
A margem da capoeira, o touro bufando, os cães rosnando e o fugitivo mordendo um galhinho de murubu.
- Ocês sabia que aí tem jacaré do papo amarelo daqueles grandão?
(Texto premiado pela Academia Irajaense de Letras)
Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
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