quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 24: Hermoclydes Siqueira Franco

 

Isabel Furini (O dia em que me senti um personagem)


Quando um livro é publicado de maneira clássica, ou seja, quando o autor envia seu texto a uma editora que “banca” a publicação e encarrega-se de conseguir diagramador, capista, de fazer a correção ortográfica e procurar uma boa gráfica, é comum o autor ganhar alguns livros para presentear a imprensa ou pessoas que sejam consideradas líderes de opinião.

Pois bem, isso aconteceu quando há mais de vinte anos foi publicado um livro infantil de minha autoria chamado “O Prego Nélio”.

Acontece que eu fui doando os exemplares que tinha até ficar sem nenhum. Irritada com meu próprio erro, fui até uma instituição que tinha um exemplar do livro para tirar fotocópias. Minha surpresa foi enorme quando escutei a secretária dizer: “Ninguém pode tirar fotocópias dos livros”.

Mostrei minha identidade e falei:

- Eu sou a autora do livro.

- Mas se fotocopiar o livro, isso seria plágio. - retrucou-me com muita seriedade.

- Eu sou a autora. Acaso irei plagiar o meu próprio livro? - perguntei um pouco confusa, sentindo-me um personagem que havia fugido de alguma crônica do Veríssimo.

- Não pode fotocopiar. - insistiu.

- Eu escrevi esse livro! - gritei.

- Mas o exemplar é nosso e não poderá fotocopiar.

Tive que me resignar e voltar para casa. Por sorte, uma antiga aluna que havia guardado um exemplar tirou fotocópia e teve a delicadeza de ficar com a mesma e presentear-me com o livro do qual sou autora.

Mas isso despertou várias reflexões: a primeira sobre a necessidade de guardar um exemplar de qualquer obra de minha autoria; a segunda, de que muitas vezes o zelo administrativo leva a situações absurdas como a que eu havia vivido, e ficou em mim a sensação de que em algumas situações nossa humanidade parece perder-se no mar da ficção. Parecemos um personagem de crônica vivendo uma situação bizarra, e precisamos nos olhar no espelho para reconhecer quem realmente somos.

Francisca Júlia (Cristais Poéticos) 7


AS DUAS IRMÃS


Vem a primeira a fala-lhe em segredo:
“Amiga, vê, (nem sei como isto conte!)
Como correm as águas desta fonte:
Tal corre a vida, e acaba-se tão cedo!

Ama, pois!” A segunda, em cuja fronte
Brilha um raio de luz, murmura, a medo,
Apontando-lhe o chão: “Este é o degredo
Perpétuo e atroz do teu amor insonte.

Contudo, espera.” E somem-se a Esperança
E a Saudade. E ela fica, como doida,
A olhar o rastro dessas deusas belas...

E ela fica esperando-as.... Cansa, cansa
De esperá-las assim, a vida toda,
Sem jamais receber notícias delas! ...
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A UMA CRIANÇA

(Imitação de Hugo)
Vous qui ne savez pas combien l’enfance est belle,
Enfant! N’enviez point notre age de douleurs...*
Vitor Hugo.


Choras, criança, mas chorar não deves;
Entre a velhice e as tuas horas leves
É pequena a distância;
Choras debalde; choras,
Por que não sabes, flor, quanto são breves
Da humana vida as horas,
Por que não sabes quanto é bela a infância!

Tu, cuja vida é um suave paraíso
Adornado de flores,
Da nossa vida mísera de dores
Amargas e revezes,
Nunca invejes o júbilo indeciso,
Porque teu pranto é menos triste, às vezes,
Do que nosso sorriso.
Os teus dias são rosas
Que vicejam, alegres e radiosas,
Nessas tuas manhãs de eternas galas;
Nunca as desfolhem, gárrula criança;
Deixa-as em paz, descansa,
Deixa que o tempo venha desfolhá-las.
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 *“Você não sabe como é linda a infância,
Criança! Não inveje nossa idade de dor...”

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EGITO

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;
Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;
Um velho ibe* somente arranca um raro piorno**
Que cresce pelos vãos das lajes de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,
Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.
Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno
Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora, o vulto absorto
De um adelo que passa, em caminho da feira,
Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranquilo,
Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,
A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.
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* Ibe ou Ibis: ave do Egito.
** Piorno =  Denominação de vários tipos de arbusto do gênero retama.

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MÃE

Embora a mágoa a aflija e a sorte a oprima,
O seu amor, como celeste esmola,
É um perfume sutil que se lhe evola
Do peito e sobe deste mundo acima.

Com que ternura a sua voz me anima,
Quando, pelo meu rosto, o pranto rola!
Ninguém, como ela, a minha dor consola,
Ninguém, como ela, o meu pesar lastima.

Julgo-me só e chamo-a... Ela não tarda!
Volta, acode-me, alegre; e, num momento,
Desfaz a dor que o coração me enluta.

Ela é a mais fiel, a mais constante guarda
Que, no meio da noite, o ouvido atento,
O meu suspiro entrecortado escuta.
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QUADRO INCOMPLETO

Foi um rico painel. Traço por traço,
Nele notava-se a paixão do artista.
Via-se, ao fundo, a tortuosa crista
De altas montanhas a beijar o espaço.

No centro, um rio, a distender o braço.
Selvas banhavam em triunfal conquista.
Ao longo, dois amantes, pela lista
De um carreiro, seguiam, passo a passo.

Foi um rico painel. Uma obra finda
A primor, que, apesar de velha, ainda
Conservava das cores a frescura.

Hoje, porém, não é como era dantes:
Pois no ponto onde estavam os amantes,
Existe apenas uma nódoa escura.

Fonte:
Francisca Júlia da Silva. Mármores. Brasília: Senado Federal, 2020. Publicado originalmente em 1895.

Mia Couto (Fosforescências)

Dona Amarguinha era tão magra que só lhe servia roupa de luto. Viúva, não se retirava da penumbra da loja que lhe restara do casamento. Detrás do balcão, quase nem se percebia seu vulto. E era como se ela se tivesse antepassado, descriatura (renegada). As pessoas entravam naquele lugar sombrio com o respeito de quem penetra num local de culto.

A cantina ficava em meio da praça — a vila por ali desfilava. Passavam as mulheres matinais, os velhos poeirentos, as moças em idade divorciadoura. A todos ela espreitava da obscuridade. Como se a sombra lhe desse uma ilha intransponível. E daquele abrigo ela assistisse ao proceder do tempo.

Também eu passava por ali regressado de minhas aulas noturnas. A mim ela me repetia a sempre igual pergunta: “Se havia passado no cemitério.” E sempre eu apressava uma resposta:

—Sim, passei.

—Não viu fosforescências?

Fosforescências? Sim, fogos-fátuos, chamas sem labareda por dentro. Emanavam das profundezas, cinzas luzentes pairando no lugar dos mortos. O que produzia tais súbitas claridades eram pirilampejos das almas, os fosfogênicos falecidos virando de posição. Carecemos de explicar o mundo quando tememos os acontecimentos. Mas Dona Amarguinha nem precisava de explicação. A bem dizer, ela só falava depois da lágrima. Apenas usava de palavra depois de, nos recantos dos olhos, lhe surgir uma aguinha trêmula.

—Viu ou não viu?

E eu que sim, que tinha visto luzinhas se entrelinharem sobre as campas.

— Sabe o que é? É o sacana do meu falecido.

A razão das fosforescências era o seu marido Naftal em sem vergonhices. Já em vida quando fazia amor com ela se acendiam aquelas luzes na obscuridade.

— Aquilo é o sacana na brincadeira com outras.

— Com outras?

— Sim, com falecidas.

Seguiam-se impropérios, a velha desfilava as palavras. Que ele se atolasse nos pântanos do Inferno, malandro do homem que lhe prometera a mais bela das promessas, juramento mais cheio nenhum marido pode encomendar: que um dia ele a levaria a passear onde só as nuvens conseguem alcançar.

Imitava o falecido, em tom jocoso: “Queixa-se, mulher, que eu nunca a levo a passear? Pois eu lhe mostrarei caminhos que nem ninguém sonhou.” Lembrando se, ela ria com a mesma amargura que exibia em seu nome. E apontava sem olhar, dedos cegos indicando as alturas:

— Além de lá, nas nuvens.

Certa noite me decidi ir ter com ela, pesando em mim a mentira. Queria confessar que tinha faltado à verdade, que eu jamais passara pelo cemitério. Quando cheguei à cantina da viúva deparei com um ruidoso ajuntamento. Se encrespavam ali os burburinhos. Os rostos eram de ocorrência. Inquiri, ansioso, a razão da multidão. As vozes ziguezagueavam, em confuso enredo. Resumindo e não concluindo: Dona Amarguinha tinha sido levada, em emergência, a saúde dela já em mal estado. A velha estava desfalecida? Nem tanto, porque seus olhos rebrilhavam no rosto magro enquanto chamava pelo defunto marido:

— Naftal, ó Naftal, não vás.

É que ela estendia os braços para o vazio a pontos de fazer medo. Que a loucura a ela chegara, já se sabia. Mas a pontos daqueles acessos, isso era novidade. E aquilo, quem sabe, podia ser doença de contagiar os próprios mortos e deixar a vila atreita a visitações das almas. Levassem, sim, a desordenada velha e lhe dessem uma guarida para a sua mente vadia.

Aos poucos todos se retiraram. A bisbilhotice é como o gafanhoto: só desanda quando não resta mais folha para roer. A vizinhança se foi, deixando um descampado vazio, nunca o pátio da cantina parecera tão imenso a meus olhos. Subi a escadaria empurrado por dolorosa estranheza. A tristeza me doía como se fora uma doença caranguejando em meus ossos.

Entrei no quarto de Amarguinha. A meus olhos, a penumbra se foi desnudando. A primeira coisa que eu vi: uma flor abandonada sobre a cômoda. E depois, como que um baque em meu entendimento: da cama desalinhada exalavam ainda fosforescências. Como se Naftal e sua esposa ainda cumprissem conjugalidades, seus corpos inventando eternidades.

Me sentei no leito e me quedei frente a um espelho tão idoso que nele me revi com meu rosto de menino. Alisei a dobra do lençol: todo o gesto era inútil como travesseiro que se desse a um morto. Repente, na almofada a mancha me despertou. Sangue? Não, eram marcas de batom. Aquilo muito me espantou: a viúva enfeitara os lábios, enchera de vida seu rosto.

E aconteceu conforme meus dedos roçavam a fronha: a almofada se foi desfazendo. Do rompido irrompia um algodãozinho miúdo que depois foi crescendo e se tornou bastante infinito como se ansiasse habitar os além céus. Abri a janela e aqueles flocos brancos foram subindo, condecorando os céus com as mais luzentes nuvens que jamais por ali esvoaram.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Fabiane Braga Lima (O suicídio da poesia!?)

Reconheci meu erro, ainda estava em um sonho, ou em um delírio que eu mesma deixei me levar, presa em um passado complexo cheio de mentiras. Um absurdo que até uma criança poderia desvendar!!!

E eu, tentando fazer rimas, poemas, sangrando, derramando lágrimas, assassinando a arte poética. Mas percebi o erro, toda aquela demência que me levava a querer se suicidar, junto com a poesia.

Então, me libertei dessa insanidade de um passado que me comprometia e me matava aos poucos, com lembranças tóxicas, nas quais esqueci há muito tempo.

Silenciei a minha poesia e criei uma palavra nova chamada (vida). Parei no tempo, mas me reinventei. Hoje, as minhas utopias são carregadas de magia, onde lavo minha alma com prazer. Minha arte carrego comigo!!!

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 541

 

A. A. de Assis (Um Espião na Boca)

Foi lá pelos anos 1970, meados de maio, mais para frio do que para calor. Movimento singular na antiga “Boca Maldita”, instituição que ao longo de muitos anos funcionou na Avenida Getúlio Vargas, centro de Maringá. Falava-se de tudo, até de política. Deputados, vereadores, secretários municipais, empresários, jornalistas, gente mil a batepapear nas preguiçosas manhãs domingueiras, fazendo hora para o frango com macarronada.

De repente Milton Seixas saiu de roda em roda assustando a turma: “Olhem aquele ilustre ali... tá com todo jeito de espião...

De fato a figura era estranha na Boca. Sozinho numa mesa de canto, bebericava uma batidinha. Terno escuro, colete, gravata, elegância inusual naquela área famosa pelas fofocas e pela descontração dos seus frequentadores.

Quem seria o insólito visitante? O alerta do Seixas deixou o pessoal encucado. Ninguém havia ainda prestado atenção no distinto, mas num instante os olhares estavam todos voltados para aquela mesa.

Todo mundo falando baixinho. Até que o Verdelírio, encafifado com a situação, resolveu desvendar o mistério. O estranho se levantou, dirigiu-se ao caixa do bar e o Verde foi atrás, disposto a puxar conversa e identificar o elegante e circunspecto cidadão.

Enquanto isso, ficou aquele suspense. Por via das dúvidas, o melhor era só falar de futebol, até saber se o homem era ou não era mesmo espião.

A questão era que na Boca o pessoal costumava ser irreverente no trato de qualquer assunto. Enquanto estavam presentes apenas os habituais críticos da vida alheia, não havia problema. Vigorava uma espécie de código de ética, de modo que o que ali se falava morria ali.

Mas aquele estranho era motivo bastante para recomendar prudência nos comentários. Vai que alguém falasse alguma inconveniência e o distinto dedurasse...

Gozador inveterado, Seixas aproveitava para botar mais lenha na fogueira: “Manerem a língua, porque o homem tava olhando de soslaio e anotando umas coisas no caderninho dele... Passei perto e vi o jeitão do baita...

Nesse tempo e meio, o sempre tranquilo Verdelírio cumpriu com sucesso a missão de esclarecer a misteriosa situação. Voltou com a ficha do estranho: “Não é nada disso que vocês estão pensando. Ele é até um bom cara, gente de paz. Tem umas terras no Mato Grosso e está em Maringá só de passagem. Sozinho no hotel, resolveu procurar o ponto de aperitivo da cidade pra passar o tempo. Só isso...

Aliviada, a Boca agitou-se novamente. Piadas, gargalhadas, fofocas. O visitante tomou mais uma e saiu faceiro, desfilando sua requintada fatiota na avenida. Nem lhe passava pela cabeça a ideia do quase pânico que fizera reinar por alguns momentos no ambiente.
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(Crônica publicada no “Jornal do Povo” – Maringá – 25-11-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 13 –

A bonequinha de trança,
vê na criança que passa...
A pobreza da criança,
nas mãos sujas da vidraça!
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A fonte leva no peito
o exemplo que nos encanta;
Quanto mais pedras no leito,
mais ela saltita e canta!
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A paz que encontrei nos campos
nestes versos que compus,
vem do olhar dos pirilampos
com os olhos cheios de luz!
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As coloridas falenas
à tarde, por sobre as flores,
parecem pincéis de penas
pondo mais penas nas cores!
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Eis, que dúvida atrevida
trago no outono da idade:
Se não fosse a despedida
existiria a saudade?
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Esquece as mágoas pequenas
e a grande, esquece também;
pois, as mágoas são apenas,
ódio, aos olhos de outro alguém!
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Essa fronte encanecida
com sonhos da cor de neve,
rende-se às curvas da vida
e às rugas que o tempo escreve!
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Havia tanta ternura
entre nós dois, nessa rua,
que, se a noite fosse escura,
seria noite de lua!
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Hoje à tarde, ao fim do dia,
não sei se alguém percebeu
que o pôr do sol escrevia,
tudo que Deus prescreveu!
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Já na penumbra da idade,
depois de tantas jornadas...
Começo a sentir saudade
das infantis madrugadas!
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Muitos "sepulcros caiados"
seguindo um falso decreto,
sepultam sonhos dourados
entre as selvas de concreto!
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Não há tecelão no mundo
nem artista tecelão,
que tenha o saber profundo
de quem tece a ingratidão!
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Nas noites, de vendavais,
minha alma, à tua procura,
tentando ouvir os teus ais
na voz que o vento murmura!
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No amor, verdade divina,
acha-se a divina essência,
de tudo que a vida ensina,
nessa divina existência!
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Ó, lindas rosas vermelhas
de ensinamentos tão sábios;
tendes o mel que as abelhas
vêm roubar de vossos lábios!
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O olhar de um brinquedo usado
nas mãos da criança sem graça,
revela um triste passado
que, infelizmente, não passa!
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O mundo só se refaz,
quando a gente por prazer...
For pobre, por ter demais,
for rico, sem nada ter!
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O velhinho ajoelhado,
diz ao padre em confissão:
Tem que existir o pecado
para que exista o perdão!
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Penso em nós dois, bem velhinhos,
felizes, sem dissabor,
juntos aos nossos netinhos
num grande ninho de amor!
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Por ver tantos sonhos mortos,
na idade dos meus cansaços...
Tento alinhar os mais tortos
aos rituais de teus passos!
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Quando a luz do sol, radiosa,
desfaz o orvalho da flor...
Transforma o choro da rosa
em lindos cristais de amor!
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Que exemplo, nos deixa a fonte,
que vive a cantarolar...
Murmura do pé do monte
ao sal das águas do mar!
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Quero os dias mais risonhos
e as ilusões vêm comigo;
pois, sou mendigo de sonhos
e o sonho me faz mendigo!
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Se a infância se distancia,
e nela, a vida se esmera,
embriague a melancolia
com sonhos de primavera!
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Se a distância, te convém
o nosso amor, se resume,
àquela flor que só tem
espinhos, sem ter perfume!
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Se os amores são mais longos,
ame-os, com mais destemor;
que há mais hiatos, que ditongos
nas entrelinhas do amor!
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Tanto nos olhos da aurora,
quanto no olhar do poente...
Há versos de hora em hora
presos aos olhos da gente!
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Teu adeus, roubou-me a cena,
de toda a beleza agreste,
de tua pele morena
queimada ao sol do Nordeste!
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Tristonho e mantendo a calma,
ao ver que a infância se afasta...
Ouço as vozes de minha alma
em tudo que o vento arrasta!
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Tu partiste e, na verdade,
na ausência do teu afeto,
vivo abraçando a saudade
nas tábuas do mesmo teto!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Sammis Reachers (Malandro demais se atrapalha)

Agora vamos falar de um motorista que passou toda a sua carreira na empresa Ingá. Bom malandro, mulherengo e beliscador, nosso amigo tem um apelido inusitado: Videocassete. Isso mesmo, um malandro com alcunha de eletrodoméstico.

Bem, nosso amigo era chegado numa 'infração'. No tempo em que os ônibus da empresa não tinham câmeras, ele, se encontrasse um cobrador que também gostasse do 'belisco', fazia a festa: eram montes de passageiros pela porta da frente.

Eis que um belo dia nosso personagem está na garagem, e seu cobrador efetivo, que já estava acostumado aos trâmites e métodos de Videocassete, faltou ao serviço. Na garagem, 'torrando' (na sobra ou sem linha fixa) um cobrador novato, com somente uma semana de casa; negro magrinho, cria do morro Santo Cristo, no Fonseca, em Niterói. Nosso sagaz Videocassete olhou e pensou: "Êpa, olha ali um frango novo, vou colocar ele do jeito que eu gosto."

E lá foram os dois, fazendo linha na saudosa 62 Fonseca x Charitas. Mas, ainda saindo da garagem, enquanto estavam sozinhos no veículo. Videocassete perguntou ao rapaz, a quem ele avaliara como muito parado, muito devagar:

- E aí meu compadre, me diz ai: Você gosta de arrumar o do lanche? (Do lanche, fique claro, era a senha para roubar algumas passagens).

- Pô, gosto sim. Mas eu sou novo e fico meio cabreiro...

- Esquenta não, deixa comigo. Hoje a gente vai arrumar muito dinheiro.

E lá foram eles para a jornada de trabalho. Lá pelas tantas, já perto da última viagem, Videocassete chama o rapaz e lhe diz:

- Filho, você está começando agora, então vou lhe ensinar: Eu joguei um monte de passageiro pela porta da frente. Em compensação, a maior parte da arrecadação é minha. Entendeu? Se der cem reais, setenta são meus e trinta seus, pois o trabalho foi todo meu.

Ao ouvir isso, o cobrador pulou:

- Espere aí, mas Isso está errado! O certo é ser meio a meio! E se algum fiscal ver, quem vai pra rua sou eu, que não estou rodando a roleta quando me pagam!

Videocassete insistiu, desesperado para engabelar o rapaz:

- Rapaz, aqui funciona assim. Todo mundo faz assim. Ou você se enquadra no esquema ou fica ruim pra você.

O jovem, encurralado, resolveu assentir, para que Videocassete acreditasse que ele aceitou a sinistra divisão.

Ao fim    dos trabalhos,    o jovem calcula o valor conseguido: algo em torno de oitenta reais. Ao comunicar a Videocassete, ele disse:

- Imaginei isso mesmo, daqui da frente eu fico só contando... Então, já sabe: cinquenta para mim e trinta para você.

Já na garagem, o rapaz, após marcar junto ao despachante o número final da roleta e encerrar a guia (ficha) de trabalho, vai em direção ao nosso querido Videocassete, para lhe entregar, de maneira encoberta, a sua parte do despojo que amealharam. Faz de conta que está apertando a mão do mesmo, lhe entrega seu crachá e junto, a soma em dinheiro, em notas bem dobradinhas.

Videocassete, malandro velho, coloca imediatamente a soma no bolso, sem conferir, para que ninguém visse o movimento.

Dias depois. Videocassete avista o jovem rapaz na garagem. Faz menção de chamá-lo, mas o rapaz faz sinal de que não tem nada pra falar com ele. Videocassete, bastante irritado, vai em direção ao jovem, e ao chegar perto, cochicha:

- Rapaz, qual é a sua? Você me deu uma porrada de notas de dois reais enroladas, um volume enorme, mas tinha só vinte reais! E você ficou com sessenta!

Ao que o rapaz respondeu;

- Amigo, você acha que por eu ser novo aqui, sou algum otário seu? Fui criado na favela, no pé da malandragem. Acha que vim aqui pra tomar volta? Na escola em que você estudou, eu já dei muita aula.

E saiu andando, rindo de nosso velho Videocassete, que, dentro da garagem e à vista dos chefes, nada mais poderia fazer ou dizer.

É como se diz: O mal do malandro é achar que todo mundo é otário…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

José Fausto Toloy (A Faca)

 A enfermeira se aproxima de cidadão  semidespido à beira da Rodovia 365. Observa argutamente  um objeto cortante, faca, arma branca ou algo que o valha. Cerca de cinco metros separam homem e metal. Imediatamente  num átimo joga a faca no mato... e é repreendida:    

– Tá loca, sua doida, por que fez isso?

– Achei que ia se ferir!

– Por sua causa agora não vou mais me encontrar  com DORA…

– Onde, criatura, ela está te esperando?

– No paraíso.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 15

 

Hans Christian Andersen (O Cofrinho)


No quarto de uma criança, onde diversos brinquedos estavam espalhados, um cofrinho ficava em cima de um guarda-roupa muito alto. Ele era feio, de cerâmica na forma de um porco, e havia sido comprado do artesão. Na parte de trás do porquinho havia uma abertura, e essa abertura tinha sido alargada com uma faca, para que notas e até moedas grandes pudessem passar. De fato, haviam duas moedas grandes dentro dele, além de várias pequenas. O cofre de porquinho estava tão cheio que, ao ser chacoalhado, nem fazia barulho, e este é o mais alto nível de preenchimento que um cofrinho pode atingir.

Lá ficava ele sobre o guarda-roupa, elevado e imponente, olhando de cima para todas as outras coisas lá embaixo no quarto. Ele sabia muito bem que tinha dentro de si dinheiro suficiente para comprar todos os demais brinquedos, e isso lhe dava uma opinião muito favorável sobre o próprio valor.

Os outros também pensavam assim, mas nunca tocavam no assunto, porque havia tantas outras coisas sobre o que falar. Uma boneca alta e ainda bonita, apesar de ser meio velha e ter remendos no pescoço, estava dentro de uma gaveta parcialmente aberta. Ela chamou os amigos:

– Ei, vamos brincar de ser homens e mulheres, vai ser divertido.

Essa sugestão provocou um grande rebuliço. Até as gravuras penduradas na parede viraram ao contrário de tanta empolgação, e com isso mostraram seu avesso para os demais, apesar de não terem a menor intenção de se expor dessa forma nem de ir contra a sugestão da boneca.

Já era tarde da noite, mas, como o luar entrava pela janela, eles tinham luz a custo zero. A brincadeira estava prestes a ter início e todos foram convidados a participar, até o vagão do trenzinho, apesar de ele pertencer à categoria dos brinquedos mais toscos.

– Cada um tem seu valor, – disse o vagão – não dá para todo mundo ser nobre; alguém tem que trabalhar!

O cofre de porquinho foi o único que recebeu um convite escrito. Ele ficava tão no alto que os outros brinquedos tiveram medo de ele não aceitar uma mensagem verbal. Em sua resposta, o cofrinho falou que, se fosse para participar, ele deveria poder se divertir ficando na própria casa, e os outros que se virassem para tornar isso possível. E foi o que fizeram.

Assim, o pequeno teatro de bonecos foi colocado em uma posição que permitia ao cofre de porquinho olhar diretamente para ele. Alguns quiseram começar com uma comédia, para depois tomar chá e em seguida fazer um debate sobre desenvolvimento mental, mas acabaram começando pelo último.

O cavalo de balanço falou sobre treinamento e corrida; o vagão, sobre trilhos e energia a vapor, pois esses assuntos pertenciam a suas respectivas profissões, e fazia sentido que quisessem falar sobre eles. O relógio falou sobre política, soando tica-tica em lugar do tradicional tique-taque. Ele dizia sempre saber que horas eram, mas aqui e ali havia cochichos sobre ele não estar bem ajustado. A bengala de bambu estava de pé, rígida e vaidosa (ela se orgulhava de sua ponteira de latão e do castão de prata), e no sofá ficavam duas almofadas bordadas, bonitas, porém bobas.

Quando começou a peça de teatro, os demais sentaram para assistir; os artistas pediram que a plateia aplaudisse, ou batesse os pés no chão, ou desse estalo toda vez que gostasse do que visse. O chicotinho de brinquedo afirmou que nunca estalava por pessoas mais velhas, apenas no lombo dos jovens, em especial os ainda não casados.

– Eu quebro tanto as mais velhas quanto as mais novas – disse o abridor de nozes.

“Sim, e que baita barulhão você faz quando as esmaga”, pensou a plateia, enquanto o teatro prosseguia.

A peça não era muito boa, mas as atuações foram ótimas e todos os atores viraram seus lados decorados para a plateia, pois eram feitos para ser vistos de um lado só, e só ele era pintado. O trabalho foi maravilhoso, exceto pelas poucas vezes em que os atores saíram do foco de luz, por terem fios muito longos.

A boneca do pescoço costurado ficou tão agitada que o remendo se abriu, e o cofre de porquinho declarou que precisava fazer alguma coisa por um dos atores, já que todos eles o haviam agradado tanto. Ele decidiu que em seu testamento iria nomear um dos artistas para ser enterrado com ele no jazigo da família, quando o evento da morte ocorresse.

A comédia foi tão divertida que eles desistiram do plano de tomar chá, e só levaram adiante a ideia da diversão intelectual, que era como eles chamavam a brincadeira de ser homem e mulher. E não havia nada de errado com isso, pois era apenas uma brincadeira. Durante o tempo todo, cada um pensava as melhores coisas sobre si mesmo, ou tentava imaginar o que o cofrinho estaria pensando deles.

Enquanto isso, os pensamentos do cofrinho estavam muito longe dali: estavam no futuro, na redação do testamento, em seu enterro e no momento em que todos viessem a falecer.

Certamente, mais cedo do que ele imaginava, pois, de súbito e sem aviso, ele caiu do alto do armário direto no chão e se partiu em vários pedaços. As moedas que estavam lá dentro saíram pulando e dançando do jeito mais engraçado. As menores giravam como piões e as maiores rolavam para tão longe quanto conseguiam, em especial uma grande moeda de prata, que sempre havia desejado cair no mundo. E ela realizou seu sonho, assim como todas as demais. Os cacos do cofre de porquinho foram recolhidos e jogados na lixeira, e no dia seguinte havia um novo cofrinho no topo do armário; este ainda não tinha nem uma moedinha dentro de si e, portanto, como o anterior, mas por outro motivo, também não fazia barulho quando chacoalhado.

Este foi o início da história dele. Quanto a nós, é o fim de nossa história.

Fonte:
Contos de encantar

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) III


APRISIONADA

 
O mar em calmaria!
Teus braços a envolver-me
O perfume que exalava
Conseguia inebriar-me
 
O sol logo descansaria
Na linha do horizonte
Que ansioso aguardava
A lua, eterna amante
 
Eu por você alucinada!
O sangue borbulhante
Sentia-me dominada
 
Em desejos aprisionada
Só via teu semblante
Descobri-me... apaixonada
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HISTÓRIA DE OUTONO

A mesma história se repete
Quando se faz presente o outono
No chão, há sempre um tapete
Meu ser... a sensação de abandono
 
Não há o que me aquiete
Sinto meu coração, sem o dono
Estaria ele, em seu gabinete?
Nesta angustia me aprisiono!
 
Nas mesmas ruas do parque
Bancos que nunca, contigo sentei
Nem recebi o beijo... que me sufoque
 
Nos muitos sonhos que acalentei
Onde tua imagem, em destaque
O toque das suas mãos... experimentei…
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MEU INVASOR
 
Se o mar é tentador
Quando a lua é cheia
Torna-se instigador
A mente devaneia...
 
Ao ver o cruzador
Meu olhar passeia
Como faz o escultor
Ao moldar a sereia
 
Nele vem meu invasor!
Minha postura, falseia
É do meu amor o aliciador!
 
O coração balanceia
Meu corpo puro ardor
Você me desnorteia…
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Nascente de Paixão
 
Oprime a ânsia, insuportável
no sentimento de benquerença
Instalada, e classificada de incurável
o romantismo arraigado é esperança...
 
Do encontro almejado, sempre adiável
diante dos obstáculos surge mudança
Resta exercitar a persistência inabalável,
atributo que extermina a desesperança
 
Finda e reinicia os anos, em longa espera
a visualizar à distância teu semblante
Quem sabe são, lembranças de outra era!
 
Assim, nesta febre delirante
nascente de paixão, não efêmera
Percebas meu amor, abrasante!
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NATAL BRANCO
 
Natal branco, imagino
recordações dos cartões...
Na lembrança o fascínio
missa do galo, exaltações
 
No período de infortúnio
esperanças e frustrações
Na mente o raciocínio
deve ser as más ações...

Sem neve e presente
eu culpava o bom velhinho
Pela  tristeza, ambiente
 
Na árvore o azevinho
no altar  a vela candente
E a essência de pinho...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Versejando 94

 

Sinclair Pozza Casemiro (Crônica de Natal)


As luzes coloriam as casas de amarelo, vermelho, azul, verde, lilás, em forma de bolas e incandescentes cordões, brilhos que se espalhavam também pelas ruas e refletiam até o céu imenso, lá bem alto, pontilhado de estrelinhas. Não só. Os corações também brilhavam iluminando os seus corpinhos, pequeninos. E de gentes grandes e muito grandes também.

Eram risos, gritos, cantos, uma algazarra que começava no lusco-fusco sem pressa de acabar. Até as mães se desleixavam um pouco e o tempo, as rezas, as brincadeiras se espichavam. As gentes miúdas se perdiam e se achavam, voltava tudo outra vez no lugar. Ali, em cada casa, a comida vestia-se de novidade nos sabores e formas entre doces encantados pelas figuras de estrelinhas, luas, cordeirinhos, vaquinhas, burrinhos e de Papai Noel, de trenós e de renas.

A correria ali também era maior que a de sempre. Entre irmãos, os primos e vizinhos se trombavam, ora correndo, ora caindo e logo se levantando para não se perder tempo. Cada docinho, bala, cada bolacha ou pedaço de bolo se oferecia alegre, participando do enlevo natalino. Os adultos se misturavam na rotina de preparar, cozinhar, assar, embelezar, sempre aqui e ali empurrando um, empurrando outro, nem tempo de zanga havia.

Tia e a mãe confabulavam, primos atazanavam as primas, que cantavam e contavam estórias a não se acabar. Os homens no violão, sanfona ou afazeres, também trocavam assuntos o tempo todo. Sempre uma cantoria no vento que levava e trazia também os mais diferentes e saborosos cheiros e causos.

O rádio se desligava? Para que dormissem, já muito tarde, e se alguém se lembrasse disso! Um barulho a mais, a menos, nada incomodava os momentos da alegre e temperada festança de véspera.

Véspera que durava semanas. À noite, a novena era sagrada, como eram sagradas as imagens de Nossa Senhora, São José, do Menino Jesus, dos Reis Magos, dos pastores, dos animaizinhos no curral que abrigava a história linda daquele nascimento. E dos anjos, estrelas, brilho e mistério enfeitando as noites de dezembro.

O presépio era magia e promessa.

Papai Noel se misturava nesse tempo e nesse espaço, havia um encontro inusitado que no começo os pequenos não entendiam...mas nem precisavam entender. Naquela mistura de luz, gente chegando, gente indo, roupas novas, fogos e presépio, o que contava era ser feliz.

A Igreja, onde chegava a novena que saía de cada uma daquelas casas, ganhava outro sentido, o sentido da infância, da alegria, da beleza resplandecente, cheia de festa. Das tantas brincadeiras de meninas e meninos, dos namoricos e fuxicos de moças e moços. Ninguém distinguia ninguém de ninguém... a paz dava o tom da amizade e dos corações. Livres pelo laço da fraternidade cristã.

Cantos de igreja, do alto-falante e do coral, cantos de rádio, do alto-falante do cinema, de Papai Noel, de propagandas... cantarolados todos, repetidos, tim-tim por tim-tim, mesmo que nem sempre compreendidos.

Não se podia esquecer da cartinha ao Papai Noel. E tinha aquelas que o correio levava para crianças que podiam ser esquecidas, que não se conhecia...mas Papai Noel, sim. Era infalível, o velhinho. E se alegrava pensar que outros amigos se faziam, assim, muitos chegavam a se conhecer de perto.

Ah...e a escolha do presente era outro capítulo dessa história. Tinha que se encaixar numa porção de coisas, mas vinha sempre um presente que era para cada criança, o presente mais lindo do mundo!

Muitas balas, muita alegria, muita música!!! Fascínio.

A espera por Papai Noel se fazendo num agradável ritual. E, claro... não ser desobediente! Era um tempo de muito cuidado, não se podia resvalar numa palavra feia, numa briguinha boba, nem nada. Cautela. Qualquer deslize e...pronto! Papai Noel não apareceria!

E a sua chegada? Outro mistério! Nunca se conseguia vê-lo. Mas ele sempre deixava um recadinho, pelo menos...bastava. Ano que vem não se dorme, se aguenta firme. Até que chega o ano que...os irmãos ficam estranhos, amigos confabulam...não é verdade? Como? Não existe? O que aconteceu?

Chateação...desilusão...sentia-se, por outro lado, que se estava mais importante, já não se era mais criança bobinha. Deixar as histórias de Papai Noel para as criancinhas ingênuas. Já não se era mais, afinal, qualquer criança. Triste. Triste? Que era aquilo? Vergonha? Orgulho de ter crescido? Que mistura doida de sentimentos...

Vai-se ficando para trás mais uma história mal explicada, mal resolvida que o tempo cuida de ajeitar.

Pelo menos Menino Jesus era de verdade, o presépio continuava, com os mesmos encantos, os cânticos do Coral, as músicas de rádio... a casa e a cidade enfeitadas e ainda a magia se via no ar pelo bom menino.

O tempo passou, passou. E veio o agora. E o agora é o tempo da verdade de tudo. Tempo que não para... verdade que se vai maturando...

Passados já muitos anos, finalmente, alguma coisa se aprende. Finalmente. Idade da razão... Mais-que-razão.

Transformam-se, nascem, morrem formas, meios, crenças... E... Viva!!! Vai nascer o Salvador! Papai Noel vai chegar, trazer presentes, espalham-se luzes em cada casa, no quintal, entre família e amigos que se tem em todo lugar por onde se possa! Passeios pelas ruas, cidades, gente bonita, quanta luz! Enche-se de música, de presentes e de vida por onde mais se vá!

Brincar, cantar, comportar-se bonitinho, é tempo de Natal!

Muito brilho, muita fé, muita alegria...nasceu o Menino Jesus! Papai Noel chegou! Escondido...mas deixou recadinho...

Nada mudou! Nem ninguém.

Fonte:
Texto compartilhado pela autora.

Baú de Trovas XXXIX


Felicidade é somente
uma visita apressada,
que aparece de repente
e parte sem dizer nada...
Aparício Fernandes
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Eu amo as minhas lembranças,
minhas saudades e dores,
assim, como amo as crianças,
os passarinhos e as flores.
Auta de Souza
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Noite Santa! A vida ensina
grande lição de humildade:
- Numa gruta, pequenina,
nasceu a Luz da Verdade!
Carolina Ramos
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Tudo se gasta e se afeia,
tudo desmaia e se apaga,
como um nome sobre a areia,
quando cresce e corre a vaga.
Casimiro de Abreu
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Na hora em que a terra dorme,
enrolada em frios véus,
eu ouço uma reza enorme
enchendo o abismo dos céus.
Castro Alves
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Do cais aceno ao vazio.
enquanto o remorso chora...
Castigo é alguém no navio
levando o perdão embora...
Darly O. Barros
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Saudade triste, contida,
do passado ainda presente…
O tempo rindo da vida
e a vida rindo da gente!
Dercy Alonso
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Se foi amor... eu não sei.
Sei que, após muitos fracassos,
quando, afinal, regressei
abrimos, juntos, os braços!
Dívenei Boseli
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Vós prometestes, senhora,
voltar um dia; porém,
esperei e, até agora,
inda não veio ninguém...
Emiliano Perneta
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Amizade é privilégio
dos corações bem formados,
Não se aprende no colégio
não se compra nos mercados.
Enéas de Castro
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Findo o amor, espero, Alice,
que me possas perdoar
— o que pensei, mas não disse,
— o que disse sem pensar!
Ferreira Gullar
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Teu nome, em dias felizes,
confiei a um lírio, no chão.
E hoje o lírio dá raízes
em forma de coração!
Humberto de Campos
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Numa despedida amarga,
tenho sempre esta certeza:
o tempo alivia a carga,
mas não carrega a tristeza!
Istela Marina Gotelipe Lima
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A lareira crepitante...
Em vigília... Só nós dois...
Um bom vinho inebriante,..
Quanto delírio depois!...
Ivone Taglialegna Prado
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Se na alma tens a poesia
e esperança no porvir,
partilha tua alegria
e ajuda o mundo a sorrir.
Ivo S. Castro
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Que importa o frio que faça?
Nem compro roupas de arminho...
Tenho agasalho de graça
no calor do teu carinho,
Larissa Loretti
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Minha carta, sonho antigo,
de uma ventura esperada,
puseste, carteiro amigo,
em caixa postal errada!
Lavínio Gomes de Almeida
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Enquanto as trevas se abatem
sobre a noite sem luar,
corações fortes combatem
quem a luz quer lhes roubar.
Luiz Damo
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Você se foi desta vida
e já nem sei o que faço,
sua falta é tão sentida
que soluçando me abraço…
Lygia Ambroggi
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Sou bem nascido. Menino,
fui, como os demais, feliz.
Depois veio o mau destino
e fez de mim o que quis.
Manuel Bandeira
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Solitária… em meu desterro,
sei que de amor nada sei…
E… se te amar foi um erro,
no erro mais certo… eu te amei!
Maria Lua
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0 perdão é sem valia
se não sai do coração:
Luz do sol ao meio-dia
que nem sombra faz no chão.
Marta Maria de O. Paes de Barros
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Tua imagem refletida
no espelho de nosso quarto
mostra a saudade sentida,
que só contigo eu reparto,
Olga Maria Dias Ferreira
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Da música inspiradora
Das “redondilhas maiores”,
faço a trova redentora,
que faz pessoas melhores.
Olivaldo Júnior
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Fui de castelo em castelo,
passei do sonho à magia.
Da viagem, fiz um elo
e do elo fiz poesia.
Paulo Walbach Prestes
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O amor mais puro e mais lindo,
carregado de esperança,
é o da criança sorrindo
brincando como criança!
Professor Garcia
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Grata sou, profundamente,
por ter na vida encontrado
o mais caro dos presentes:
– Bons amigos a meu lado!
Sinclair Pozza Casemiro
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Na vida vivo tentando,
tornar meu mundo risonho,
pois a tristeza vem quando,
existe ausência de um sonho.
Vanda Alves da Silva
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Raio de sol toca um galho,
molda paleta em mil cores...
e com gotinhas de orvalho
pincela arco-íris nas flores!
Vanda Fagundes Queiroz
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Os livros na prateleira
juntam pó e muito saber,
são as traças da carreira
que nos podem mal fazer.
Vasco Taborda Ribas

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 40 –

O bosco tem estado com esse jeito dos tristes - sombrio, silencioso, quase um ausente. As folhas no chão e a umidade do inverno fazem da florestinha uma casa de deserdados. Os pássaros, as formiguinhas, beija-flores, parecem ter abandonado o recanto verde. No entanto, o pulmãozinho do bairro segue respirando. Respirando fundo!

Mas (conjunção legal, faz contrapontos) basta que surja uma manhã de sol em meio à neblina, para que logo a gente passe a ouvir trinados na galharia parecendo vozes sonantes, e a casa da quirerinha vira uma festa, mesmo em tempo de pandemia.

São nuances e contrastes que a natureza proporciona constantemente e nos mostra que somos envoltos em dualidades muitas vezes não percebidas. Das tardes cálidas janeiras, o calendário nos transporta para manhãs de inverno alcandoradas de poesia. Refrigérios para a alma !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Flor de obsessão)

DA JANELA do no meu loft, no décimo andar, a ebulição que escancara os aposentos da moça, que mora na torre frontispicial colada ao meu prédio, um pavimento abaixo, parece ser maior do que aparenta. Talvez em face da distância mínima que nos separa. Um vão quase contíguo. Dona de uma juventude próspera, a moradora chegada recentemente é de deixar qualquer marmanjo à beira de um ataque de nervos. E é assim que me encontro agora. Fora de mim, apatetado, boquiaberto, desde o instante em que a vi transitando através do postigo da sua quitinete em trajes menores.

Meus olhos, esbugalhados e levados pelas tonturas da imaginação, me ajudam a viajar bem longe da terra. Loucura? Sim, pura loucura! Nada mais que isso. Quando ela não está, a sua ausência é sentida em toda parte, nos mínimos detalhes, notadamente dentro de meu coração batendo em desabalados descompassos. Fico me perguntando, como uma estranha com a qual nunca tive nenhum contato, nem troquei sequer um olá, um bom dia, pode fazer tanta diferença ou melhor, como a sua deserção se redundou esquisitamente forte e pujante quando não se afigura por perto?

Desde o dia em que a vi, pela primeira vez, coisa de três semanas, venho me sentindo tomado por uma sensação diferente. Algo ilógico e delirante que mexeu com a minha estrutura, e a faz fraquejar, desde a sua base. Na verdade, invadiu a minha cabeça, a ponto de deixar o meu espírito em franco estado de abnormidade*. Descobri para minha desventura que uma infinidade de pequenos lugares inacessíveis passou a habitar o meu “eu” interior, e que somente os vejo preenchidos, quando ela chega da rua, por volta das oito da noite e inunda meus devaneios e desconfortos com a sua estada marcante e inimitável.

Nessa hora, engano meus propósitos, provoco espasmos, tapeteando a insensatez diante da felicidade que ela irradia. É a partir daí, na ânsia desinquieta da minha carne fraca, que o meu autocontrole sossegado se desmancha num avesso contraditório e se desfaz apressado. Ao vê-la se livrar dos sapatos de saltos (num minuto atrás eles quebravam o tranquilo do corredor), todo meu âmago se atiça em clima de festa. A princesa entra, atira os pisantes e as meias num canto e vai direto para o banheiro. Acende a luz. Puxa a descarga.

Reaparece, matizada, agora, por uma claridade que não se apaga. No quarto, ao lado da King Size espaçosa, torna luminosa uma lâmpada fraca de um abajur e, então, se despe. Matreira, de regresso ao banheiro, traja apenas calcinha e sutiã. Ao vê-la assim, quase sem nada, deliciosa e exposta, calo meus afogueamentos. Abafo meus ímpetos. Ou pelo menos tento.

Não houvesse o vão do fosso existente entre o meu apê e o dela (embora as residências se posicionem quase uma dentro da outra), me atiraria de cabeça, num voo cego e aterrissaria no chão de sua varanda, despedaçado, esfacelado, todavia feliz e realizado por estar ao seu lado. Um Ícaro dos tempos modernos que não aprendeu a usar as escadas e os elevadores.

Enquanto ela se banha, os traços de suas expressões, em meio à água e a espuma, flutuam na minha imaginação. Ao tempo em que passam como um filme, andejo em quimeras levado não só pela intimidade que se estreita, igualmente, por uma orexia* descomedida em devorar, com sofreguidão, cada centímetro da sua venustidade* assediado por uma pretensão candente, e pior, atacado pelas vilanias de todos os pecados aflorando meus nervos em frangalhos.

Enfim, quando ela se devolve ao quarto e atravessa a minha visão, agora nua, a toalha presa aos cabelos, propositalmente a graciosa estanca por breves segundos, diante da abertura do alpendre. Eu, enfeitiçado,  enlouqueço. Torno a sair do meu raio físico. Vou, à mil, ao topo do mundo, e volto saltitante, os nervos pandarecados, querendo escapulir por todos os poros da epiderme.

Meu Deus! Tenho plena consciência de que essas originalidades infantis da minha parte, estão se transformando, pouco a pouco, em anomalias. Entre um anélito* e outro, me pilho tolhido por estranhas sensações de loucura, onde afogos e suplícios cheios de constelações brilham incandescentes diante de meu rosto espicaçado.

Não evito a tortura de me imaginar posicionado com ela, sobre os lençóis, passeando pelos desvãos dos seus recantos perfeitos, devagar e também apressado. De repente, ela se entrega todinha para mim, se acantoa num frêmito de entrega total. Enrodilhada as pernas ao redor de minha cintura, eu a beijo com ternura e carinho.

Divido os minutos que o relógio transforma em comenos eternos. Estamos por fim, ofegantes, os suores embevecidos em uma quentura abrasante, tentando encontrar um ritmo constante no meio de nossos movimentos desvairados. Nessa demência, enquanto confesso impulsos urgentes e desatinos extravagantes, uma sensação de paz toma conta da minha vontade, e me faz sair do real.

Apesar de toda essa magia, no final, tudo não passa de uma versão fantasiosa criada pela neurastenia que se forma em mim e, então, me flagro solitário, vencido, aniquilado, atrelado a um inferno inóspito.

Deprimido, humilhado, esfacelado, os bofes gangrenados a saltar pela boca, as vistas mortas, sem vida, sem cor, envoltas em nuvens que se esgarçam, me petrifico, rés ao chão... meu aspecto, no geral, é o de um desenterrado. Apesar de tudo isso, sigo em frente. Oculto nos bastidores, na coxia que acessa meu palco de sonhos irrefreados, envolto pela cortina, sutilmente eu controlo seus horários. Na retorta de acuradas observações, analiso seus movimentos. Idas e vindas, chegadas e saídas. Sou o Sherlock Holmes diante não de um estudo em vermelho, porém, de uma relação literalmente apedeuta.

Por conta dessa sofomania* incurável, sei dizer com precisão britânica a que horas ela se levanta. O instante em que toma o chuveiro matinal, bem quando se veste e se embeleza para sair para o trabalho. O barulho das vasilhas de café na cozinha, deixa no ar um cheiro forte, misturado a um odor mais robusto e vigoroso: o de sua feminilidade acima de qualquer suspeita. Estou de plantão, sempre, a visão enxuta grudada na sua realeza seguida de um apetite enorme de envolvê-la no meu estado doente-ebulitivo.

Dessa forma inverossímil, bem sei, ela vem me desgastando. Aos poucos, me consumindo. Sem nada seguro para me agarrar, procuro reescrever uma estratégia. Em paralelo, busco me recarregar desopressando os queixumes que me envolvem na doce miragem da sua silhueta ímpar. As convulsões perdidas, contudo, persistem seguir no vácuo, à procura de não sei o quê. Os amigos que me visitam dizem que emagreci. É fato? Sim é real!

A minha transformação para um quadro cadavérico cada vez mais se deprime e se acentua. Por certo o meu desleixo comigo mesmo está patente e cada vez mais acessível. Quase não me alimento. Estou deveras fraco. Me sinto desmantelado, fora do normal, abatido, cansado, deprimido. Novamente vem a noite. As oito em ponto, ela restaura os meus medos, quebra o silêncio sisudo do meu santo sepulcro, e reembolsa as minhas exprobrações, reativa as minhas tantas rebordosas e quantas outras descomposturas.

Uma transformação visceral emana das espiadelas via "voyeurismo" as quais me entrego. Novamente o espetáculo recomeça e se amiúda. Espectador de um dramalhão infindo, acalmo, tranquilizo, pressuroso. Meu cansaço depreciativo deve se juntar a dezenas de tresloucados (ao lado) e acima do meu andar, imersos numa plateia igualmente vastíssima. Assim como eu, inquilinos de outras unidades sofrem do mesmo mal desse amor doido e mentecapto, néscio e disturbado.

Pela fenda entreaberta do náilon do cortinado, eu sigo quieto, calado, espiando. Espreito longamente. Demoradamente, sorvendo cada detalhe. Ela liga a tevê. Não perde a novela das nove horas. Todo santo dia... todo santo dia é sempre uma reprise. A combinação prodigiosa de sua presença (aliada a tantos outros movimentos, toques imperceptíveis, celular a todo vapor, torneira se abrindo, o ruído produzido pela porta do guarda roupas, lembra uma gata no cio, o som do micro-ondas, da lavadora e secadora de loucas, da máquina de lavar roupas).

Meu Deus do Céu! Tudo concorre desordenado para uma repetição que se renova sem cair na rotina enervante da mesmice. É no enjoo do monótono que surge algo alcandorado*  permitindo que portas aldravadas se escancarem para prazeres ainda não experimentados. Concluo, sem mais delongas, ela, a minha vizinha espalhafatosa  é, sem dúvida alguma, o meridiano ideal que atravessa meu peito e atinge meu ponto mais frágil. A matriz que me renova a manhã para um porvir de florestas e corais tecidos no sobrevoo de uma Esperança longínqua que a bem da realidade, apesar dos pesares, sei, de antemão, nunca chegará ser minha.
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*Vocabulário (Dicionário Eletrônico Houaiss)
Abnormidade = anormalidade.
Alcandorado =situado em ponto alto, elevado.
Anélito = grande aspiração, desejo ardente.
Orexia = desejo, apetite.
Sofomania =confiança exagerada e extravagante na própria sabedoria.
Venustidade = atributo do que é venusto, de grande beleza, graça, elegância; formosura.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 9

 

A. A. de Assis (Ser com os outros)

Viver é uma graça, con-viver é graça imensamente maior. “Não é bom que o homem esteja só”, ensinou o Criador na inauguração do paraíso. “No man is an island” (nenhum homem é uma ilha), adicionou o poeta John Donne. Ser com os outros. Porque sem os outros não somos.

Em tudo e para tudo somos interdependentes. Sirva de exemplo isto que estou fazendo agora, dez horas da noite. Esta crônica não tem um autor, tem coautores. Senão vejamos: se escrevo, é porque aprendi a escrever com alguém, desde minha primeira professora até cada uma das pessoas que, de algum modo, me ajudaram a conhecer as letras, formar palavras, frases, organizar ideias.

É também porque alguém inventou a máquina de escrever, depois alguém criou o computador. Alguém me ensinou a datilografar, digitar, colocar o escrito no papel ou na tela.

Até chegar a você, meu texto passará por não sei quantas ferramentas postas à minha disposição por não sei quantos profissionais. Se pela internet, chegará mais rapidamente. Se pelo jornal, passará pelo editor, pelo paginador, pelo impressor, pelo correio, pela banca de revistas, pelo entregador, e só terá razão de ser se você completar a operação como leitor.

Uma lâmpada (sem a qual eu agora estaria no escuro) ilumina a sala onde me encontro escrevendo. Do inventor da lâmpada a todos os que a fizeram chegar até aqui, muita gente trabalhou em meu benefício.

E ainda há os que construíram a hidrelétrica de onde vem a energia, e todos os que, neste instante, realizam algum serviço a fim de garantir a presença da luz neste ambiente. Não posso imaginar quantos estão me ajudando.

As próprias energias do meu corpo são devidas a não sei quantas pessoas. O pão, o leite, o feijão, o frango, a salada, o arroz, as frutas, tudo o que comi e bebi hoje foi produto do trabalho de gente que nem conheço. E acrescentem-se os que fabricaram os remedinhos indispensáveis a pessoas da minha idade. Sem isso eu não poderia estar escrevendo.

Alguém fez também esta cadeira em que estou sentado, a mesa em que estou trabalhando, a roupa que estou vestindo, os óculos que me facilitam a visão, os chinelos que me protegem os pés, o copo em que acabo de beber a água que alguém fez chegar à minha casa. Isso sem falar de todas as gentilezas que recebo de minha família em todas as horas.

Viver é uma graça, con-viver é graça imensamente maior. Eu não sou. Você não é. Nós somos. Todos nós somos, cada um ajudando cada outro a realizar seu papel na história. Deus quer assim, para que vivamos fraternalmente.

Quantas pessoas nos deram as mãos para que chegássemos a esta altura da vida em condição de continuar fazendo algo de útil pelo bem da humanidade?
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 09-12-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita: Narrador e foco narrativo)

Muitas vezes confundimos os conceitos de narrador e foco narrativo (ou ponto de vista).

O narrador é quem conta a história, podendo ser, grosso modo, em primeira pessoa (narrador definido) ou em terceira (indefinido). Já o foco narrativo é em quem a narração está centrada.

Um texto costuma ter um único narrador, com mudança de capítulo quando há troca. Já o foco narrativo pode variar de uma cena para outra, e é possível inclusive que haja mais de um foco narrativo na mesma cena (imagine uma briga de casal, por exemplo).

Quando o narrador do texto é em primeira pessoa protagonista, narrador e ponto de vista se confundem, pois na maior parte da história o ponto de vista será o do narrador.

Já quando o narrador é coadjuvante, como em Sherlock Holmes, o ponto de vista varia e o autor precisa ter tanto cuidado quanto nos casos de narrador em terceira pessoa.

No caso do narrador em terceira pessoa é quando a diferença entre os dois conceitos fica mais clara. Imagine que em um filme o narrador seja a câmera, ela (ou quem está filmando) é que conta a história. Mas quem a câmera acompanha? Esse é o ponto de vista.

Confira um exemplo curioso, o curta-metragem Feast (https://www.youtube.com/watch?v=xS4Bq37EtGI), em que a história de um casal é contada a partir do ponto de vista de um cachorro.

Note que o narrador não é o cachorro. O narrador, pensando em conceitos de escrita, é em terceira pessoa. Mas toda a narração é do ponto de vista do cachorro, então tudo o que o espectador irá ver é o que o cachorro está vendo (não sabemos, por exemplo, o motivo da briga do casal ou como se conheceram).

Vale lembrar aqui o conceito de onisciência do narrador. Quando o narrador sabe o que determinado personagem sente ou pensa ou lembra, é porque o foco narrativo está nele. Daí a importância de preferirmos narradores oniscientes seletivos a oniscientes.

Por fim, cuide para não usar focos narrativos demais em uma cena, sob o risco de deixá-la confusa. E procure mudar de parágrafo a cada vez que mudar o foco narrativo, a não ser que haja uma alternância proposital e funcional dentro da cena (como no exemplo da briga de casal).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 23: Padre Celso de Carvalho

 

Benedita Azevedo (A outra margem do rio)

Cresci às margens do rio e nele encontrei um amigo, um companheiro de todas as horas. Tudo ali girava em torno de suas águas vivificadoras. Elas alimentavam todos os seres: animais, vegetais, minerais e à minha imaginação, desde cedo, ilimitada, obra do criador.

Logo ao nascer do sol, a neblina que se estendia por todo seu leito, em meu campo visual, da minha casa à curva distante do rio acima, me envolvia e tornava-me parte daquele mundo de sonho infantil. À medida que o sol se erguia e as águas do rio emergiam daquele mundo leitoso, em suave deslizar, em crespas correntezas, com remansos aqui e acolá, eu também ia acordando para o dia e para a vida.

As tarefas diárias começavam ali, às margens do meu rio. Sempre acompanhada de algum adulto, eu nadava, primeiro com as mãos apoiadas ao fundo, perto da margem esquerda, onde morávamos. De uma hora para outra me soltei e fui além, sob o olhar cuidadoso de quem me acompanhava. Recebi orientação de que, aquela beleza superficial do rio, poderia tornar-se perigosa, caso nos aventurássemos sozinhos, sem conhecer os segredos de suas entranhas, e, assim como podia alimentar toda a cadeia da vida, também poderia matar.

Tomando consciência, à medida que crescia, procurava conhecer melhor os segredos das águas e como navegá-las com segurança. A cada dia, vibrava com os avanços conquistados. Não satisfeita em conhecer os segredos e tomar intimidade com meu rio, resolvi atravessá-lo.

Do lado esquerdo, onde morávamos saí, e, à medida que eu avançava, as águas iam se aprofundando. Olhei para traz, percebi que estava a um quarto da distância total de uma margem a outra. Parei já com água ao pescoço. Prosseguia ou voltava? Minha curiosidade era maior. A correnteza tornara-se forte, precisei muito esforço para não me deixar levar. Sabia que a partir daquele ponto precisaria nadar com meus próprios braços e pernas.

Respirei fundo, e me pus em movimento. A correnteza era muito forte e tive medo de não conseguir. Estava a meio rio. Olhei a margem oposta à que morava e achei muito distante de onde estava. Perscrutei um ponto bem abaixo, em relação à margem esquerda, de onde saí. Não me parecia ter nenhum obstáculo. Já estava cansada. Resolvi boiar e nadar tipo cachorrinho, sem me debater contra a correnteza. Consegui respirar e me acalmar. Cheguei à outra margem, bem distante do local onde planejara. Saí da água, sentei-me sobre a tabatinga e ainda ofegante, olhei a minha margem do rio.

As casas entre as árvores desapareceram, inclusive a nossa, ficando à mostra somente parte do telhado. Parecia-me, agora, desnuda, com vários pontos de erosão em meio às plantações dos ribeirinhos. Dali, eles tiravam o sustento, hora plantando, ora pescando. Viviam daquela rotina e os filhos seguiam-lhes os passos. Provavelmente, poucos conheciam o outro lado.

Levantei e andei rio acima, a realidade circundante era totalmente diferente daquela que imaginava, vistas através da neblina matinal e o fogaréu do por do sol em cada outono. O sol brilhando na tabatinga, a areia branquinha num triângulo formado pela foz de um riacho cheio de peixes que desaguava no rio, em suave marulhar. Senti um arrepio ao contato da água fresquinha, nas pernas, ao atravessá-lo. Mais à frente, as mangueiras que me pareciam mata fechada, à visão da outra margem, agrupavam-se deixando os raios do sol alcançar o chão repleto de frutas maduras e cheirosas. Colhi uma e fui degustando enquanto caminhava rio acima. A certa altura, percebi que a diferença de um lado e outro era muito acentuada. Apurei minha atenção e vi detalhes que não conhecia do meu lado do rio. A esguia palmeira por trás do telhado alongava-se rumo ao céu azul e o sol matinal, ali próximo, brilhava em reflexos multicores distribuindo a energia que me dera condições de ali está, do outro lado do rio, em deslumbrada admiração.

Perambulei um bom tempo em variadas direções. Descobri tanta coisa que ainda não conhecia e, principalmente, a beleza e energia do sol matinal, vista de frente, do outro lado do rio.

Aprendi que nem sempre as coisas são como parecem. Que precisamos enfrentar a correnteza, mas, não nos deixar levar por ela. Nadando sempre em frente calcular os perigos, boiar e sem cansaço ou medos, seguir até a outra margem, aprendendo a transitar de um lado a outro com segurança.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 7

AFETOS  INOCENTES


Não preciso te mostrar... tão amorosa...
Para quem fique infeliz com a alegria
Luminosa que celebra a fantasia
De quem sabe cultivar botões de rosa.

Nosso muro de amor guarda um jardim...
Beija-flores já nos bastam... polinizam
Nossas cores indeléveis que harmonizam
Esse amor que mora em ti e habita em mim.

Já não somos como dois  adolescentes,
Mas a nossa  sublime felicidade
Sempre brota com a pureza das sementes

Que eclodem frágeis, porém resistentes
E mesmo ante a dor de uma adversidade,
Nossos sonhos são afetos inocentes.
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A MAGIA DA PRESENÇA

A nossa triste solidão mais egoísta
tira da lista os amigos mais fiéis...
É sempre assim que a gente perde o que conquista,
pois nossa lista passa a ter poucos viés.

São tão cruéis as solidões propositais,
Tiram a paz de quem escolhe o abandono
e ter um pouco só de amor nunca é demais,
porque a dor é que nos faz perder o sono.

Por mais que a voz chegue gritante ou digitada,
nunca diz nada, comparada à  companhia,
porque a magia da presença inusitada

é iluminada  pelas cores fraternais
que são capazes de enfeitar de fantasia,
essa alegria que nos torna tão... iguais.
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APENAS ISSO...

Mais que nunca, somos seres tão pequenos
Ante tudo que é  divino que Deus faça...
Todos buscam, do Senhor, alguma graça,
Preocupando-se  com  bens fúteis, terrenos.

Só vaidade - alguma vezes necessária
À  tristeza ante a cara no espelho...
Xô, Narciso ! Grita alguém... mas o conselho
É repleto de uma inveja tão... hilária...

Precisamos de amparo... apenas isso!
...que é  tão fácil... basta somente  um abraço
Ou palavra...um olhar afetuoso,

Ou carinho que  se dê... sem compromisso
Com  emoção, quando o amor tornou-se escasso,
num silêncio que ainda grita... de teimoso.
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DOM QUIXOTE DE MIM MESMO

Dom Quixote de mim mesmo, cruzo a  estrada,
Sancho Pança não é mais meu escudeiro
Percebeu, na minha saga tresloucada,
Que um moinho não agride um cavaleiro,

Sou poeta, minha pena é minha lança,
Minha espada, meu escudo e armadura,
Sigo o sonho e onde minha vista alcança,
O amor move a esperança... com ternura.

Meu enredo é  muito  simples: sou herói
De mim mesmo, busco ser original
E até quando uma dor qualquer me dói,

Faço dela uma nova alegoria,
Onde ponho o meu sonho ideal
E transformo  um Dom Quixote... em poesia.
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MIOPIA DE POETA

Um poeta enxerga a vida como a Lua,
Olha os homens, quando a noite é mais escura...
A ternura de um olhar na face nua
Faz brilhar o outro olhar que se procura.

A nenhuma criatura interessa
Pôr as peças na engrenagem da razão,
Porque, quando um coração não se confessa,
Ele mostra o quanto é livre a emoção.

Um poeta tem miopia, quando sonha,
E é no verso, mais lírico que ele componha,
Que repousam os olhos de um sonhador

Entretanto, se ele enxerga a fantasia,
Seu sonhar brinca de amar com a poesia
E extasia a sensação do próprio amor.

Milton S. Souza (Jesus Noel)

Jesus Cristo resolveu dar uma chegadinha na terra para ver de perto como estavam comemorando a data do seu nascimento. Com aquela mesma roupa simples que ele caminhava nas margens dos mares da Galiléia, apareceu numa cidade grande exatamente naquele dia que antecedia o Natal. Seus olhos claros, acostumados a refletir todos os tipos de luzes, chegaram a ficar doendo com a intensidade das iluminações natalinas. Mas ele logo se acostumou. E resolveu dar uma caminhada para saber como as famílias estavam se preparando para a festa.

Arrastando as suas sandálias pelas ruas, Jesus bateu em várias casas. Mas logo que os moradores divisavam o seu rosto barbudo e avistavam as suas roupas simples, nem esperavam que ele falasse: já iam dizendo que não tinha nada para dar de esmola e mandando que ele viesse outro dia. Jesus nem conseguia passar as cercas de grades. Ninguém abria o portão. Em algumas casas, ele teve mais sorte: trouxeram um prato de comida e estenderam para ele através da cerca de ferro. Alguns até desejaram feliz Natal, mas sem se aproximar muito. Jesus caminhou pelas ruas, sem nada conseguir, até perto da meia-noite. Foi então que aconteceu um milagre que abriu todas as portas para o Filho de Deus...

Nem parecia milagre: Jesus estava caminhando numa calçada quando um homem, nervoso, perguntou se ele não queria ganhar alguns trocados sem trabalhar muito. O homem disse que não aparecera o Papai Noel que ele havia contratado para entregar os brinquedos dos seus filhos. E pediu para Jesus vestir a roupa de Papai Noel e fazer a entrega. Ele pagaria. Jesus aceitou. Vestiu a máscara e a roupa vermelha e, milagre dos milagres, conseguiu entrar em uma luxuosa casa.

Depois de entregar os presentes, mesmo não tendo muita prática na profissão, Jesus foi saindo da casa, juntamente com o homem, que tentava pagar pelo trabalho. Jesus, ainda fantasiado, disse que não precisava de dinheiro. O homem, então, fez a seguinte proposta: “Quem sabe tu ficas com esta roupa de Papai Noel. É bem novinha e tu pode vender e fazer algum dinheiro com ela”. Jesus aceitou. E, sem tirar a fantasia, voltou a caminhar pelas ruas. Os foguetes de Natal já estavam começando a explodir...

Pois foi exatamente a roupa vermelha e a máscara que abriram novas portas para Jesus. Muitos diziam “Entre, Papai Noel”, “Venha jantar conosco, Papai Noel”. E Jesus recebeu centenas de abraços e votos de feliz Natal. Sem entender bem o que estava acontecendo, Jesus foi saindo de fininho. Logo que sentiu que ninguém estava olhando, tirou a roupa de Papai Noel e voltou a caminhar pelas ruas, agora sem ser notado por ninguém. Enquanto voltava para o seu céu, onde as estrelas cintilavam alegres para aplaudir a sua chegada, Jesus tomou uma decisão: “Acho que vou começar a festejar o meu nascimento em outra data. No Natal não dá mais. Todo mundo festeja somente o nascimento deste tal de Noel, que eu nem lembro direito quem é...”.