terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Fernando Pessoa (Diário de Bernardo Soares) "3”

7.

Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se os mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.

Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio-dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstancialmente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, todos os bons rapazes, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mal que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.

Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse este traje da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria — porque a outra me haveria de chegar? De que outro traje me vestiria — porque de outro me haveria de vestir?

Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para outros invisível. Para mim chama-se realmente Vasques, e é um homem sadio, agradável, de vez em quando brusco mas sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com uma justiça que falta a muitos grandes gênios e a muitas maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros será a vaidade, a ânsia de maior riqueza, a glória, a imortalidade… Prefiro o Vasques homem, meu patrão, que é mais tratável nas horas difíceis do que todos os patrões abstratos do mundo.

Considerando que eu ganhava pouco, disse-me outro dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negócios com todo o Estado: “você é explorado, Soares”. Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível.

Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.

E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa alheia, escritório amplo da Rua dos Douradores. Achego-me à minha secretária como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar — ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

8.
O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupação desconhecida em que não fala bem a alguém. Sim, mas por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?

O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a saudade que sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram gênios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anônima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida cotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triunfos que não haveriam de ser meus.

O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo — estatura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável — chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio, mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão.

Será, talvez, porque não tenho próximo de mim a figura de mais destaque do que o patrão Vasques que, muitas vezes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio ou quase creio que algures, em uma vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.

9.
Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.

E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.

10.
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende.

Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.
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Continua…

Fonte:
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. Disponível em Domínio Público.

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