quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Carlos Eduardo Novaes (O sonho do feijão)

Dona Abgail sentou-se na cama, sobressaltada, acordou o marido e disse-lhe que havia sonhado que iria faltar feijão.

Não era a primeira vez que esta cena ocorria. Dona Abgail consciente de seus afazeres de dona-de-casa vivia constantemente  atormentada por pesadelos desse gênero. E de outros gêneros, quase todos alimentícios. Ainda bêbado de sono o marido esticou o braço e apanhou a carteira sobre a mesinha de cabeceira: ”Quanto é que você quer?”

A mulher pensou um pouco e pediu o suficiente para comprar  15 quilos, ”depois se a situação se agravar você me dá para comprar mais 15.”

Levantou-se rápida, mudou de roupa e ligou para sua amiga, dona Etelvina que era uma espécie de líder das donas-de-casa de Irajá.

- Alô, Etelvina? Eu estou com o pressentimento de que vai faltar feijão.

- Feijão também?  Então deixa eu avisar rápido as outras.

Em menos de cinco minutos a notícia se espalhou por toda a cidade. As donas-de-casa possuem uma misteriosa  rede de comunicação por onde os boatos se propagam com a rapidez de um Boeing-747. É só alguém dizer que vai faltar, por exemplo, azeite, no Leblon, que em três minutos  já se forma uma fila no Méier.

Ao sair para comprar o feijão, dona Abgail atrasou-se um pouco para deixar seus quatro filhos na escola. Quando  parou na porta do supermercado viu uma fila enorme que se estendia por mais de 80 metros. Perguntou a uma das enfileiradas:

- Que fila é essa?

- É a do feijão.

Perfilou-se arrependida por ter revelado o seu sonho. Se não tivesse espalhado a notícia poderia fazer sua compra  tranquilamente pois ninguém saberia que o feijão ia faltar. Depois, dona Abgail começou a encontrar outras amigas, estabeleceu-se um animado bate-papo e acabou achando que aquela fila estava ótima. Era uma das melhores que já frequentara.

Existem algumas donas-de-casa que têm uma atração toda especial por fila. Para muitas há qualquer coisa de heroico numa fila: a espera, a paciência e o que é mais importante, a entrada triunfal em casa sobraçando o tão disputado produto. Esta é a realização suprema da dona-de-casa, daí elas não permitirem que suas empregadas as substituam nas filas.

Quando chegou a sua hora de comprar, dona Abgail percebeu que as prateleiras já estavam vazias. Voltou-se para dona Etelvina ao seu lado e comentou: ”eu não disse que iria faltar feijão?”

Ao sair notaram que já havia mais três filas formadas:

- Essa fila é de quê?

- De pasta de dentes.

- E essa?

- Essa é de papel higiênico.

- E essa? É pra quê?

- Pra nada.   É pra quem não tem o que fazer.

Dona Abgail que já não arranjara o feijão pensou que deveria levar alguma outra coisa. Entrou na fila do papel higiênico e convidou dona Etelvina para acompanhá-la, ”assim a gente aproveita e conversa um pouco.” Dona Abgail comprou 30 rolos de papel higiênico e voltou para casa.

Deu de cara com o marido que assustou-se ao vê-la chegar assim carregada e não resistiu em perguntar:

- Tem alguém desarranjado aqui em casa?

Com um apartamento pequeno, dona Abgail ficou sem saber onde colocar aqueles 30 rolos. Resolveu recorrer à sua vizinha dona Olga, companheira de mais de 10 anos de fila:

- Olga, será que eu posso deixar uns 10 rolinhos de papel higiênico em sua casa?

- Pode. Mas por quê?

- Porque como vai faltar eu resolvi estocá-lo.

- Vai faltar?  Não me diga.  E você não me avisou nada?

Dona Olga se arrumou rapidamente e correu ao supermercado. Já tinha oito filas, sendo que três delas só de papel higiênico. Para provar sua organização, as donas-de-casa fizeram uma fila para papel branco. Outra para papel rosa e outra para o azul. Dona Olga entrou na fila do azul que combinava com os azulejos de seu banheiro. Comprou 20 rolos (dona Olga era viúva e não tinha as mesmas condições econômicas de dona Abgail, que podia comprar rolos), cumprimentou algumas conhecidas de fila e perguntou:

- Alguém aí sabe o que vai faltar amanhã?

- Não sei - disse uma senhora que parecia ser a coordenadora da fila - mas parece que vai faltar azeitona.

- Verde ou preta?

- Ainda não decidimos.

- Se for verde você me telefona que eu venho.

A coordenadora informou também a dona Olga que provavelmente faltaria arroz. Dona Olga retornou à sua casa e tratou de avisar a dona Abgail que faltaria arroz.

- Oba! - gritou dona Abgail - Essa fila é das boas.

E correu ao quarto para botar o despertador para as cinco horas.

Dia seguinte levantou-se, fez o café do marido e saiu. A fila ainda estava pequena. Entrou e, caminhando lentamente, foi esbarrar no balcão de enlatados: ”Ué, mas eu vim para a fila do arroz.”

- Mas o arroz não vai faltar, - disse-lhe um empregado - não aqui.  Parece que está faltando em Bangu.

- E o senhor sabe se tem fila por lá?

- Olha, até as seis horas a fila dava a volta no quarteirão.

Dona Abgail não pensou duas vezes. Pegou um táxi e foi para Bangu. Realmente a fila estava gigantesca. Saltou  e indagou: ”Essa é a fila do arroz?”

- Não, é do óleo de soja.

- Mas como do óleo de soja? Não tem óleo de soja.

- Eu sei, - respondeu uma enfileirada - mas quando  chegar nós já estamos na fila.

A fila foi andando, andando e quando dona Abgail encostou no balcão o óleo de soja ainda não havia chegado. Aí dona Abgail não teve outra alternativa, pensou um pouco e comprou mais 30 rolos de papel higiênico.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. A Travessia da Via Crucis. Publicado em 1975.

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