sábado, 4 de dezembro de 2021

Mia Couto (Bartolominha e o pelicano)

Vivia em ilha com muito vento, onde mais ninguém havia. Chamava se Bartolominha, era minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu, exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. Mesmo sem salário durante consecutivos anos, ele se manteve em fiel atividade. Esqueceram-se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o dinheiro brilha e a gente apodrece. Impassível, sem se queixar, o avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, nessa missão de iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum desfaleceu de encontro à rebentação.

De pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe iluminar o peito. A notícia chegou nos anos depois quando um ocasional barco passou por nossa cidade.

A família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha. A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante solidão. Acompanhei os restantes nessa missão de recuperar nossa idosa parente. Quem muito chorava era minha mãe, sua dileta filha. Durante a viagem de barco ela se inconsolava: quem sabe a avó, entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a enterrasse?

Desembarcamos com o peito enrodilhado, olhando com medo os recantos do sítio. Suspiramos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua capulana*, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falamos em sair dali, ela se contrafez. Minai, viéramos buscá-la? Pois que fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão desprovido de gente. Meu tio falou que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com alma entalada na garganta.

Bartolominha respondeu, sem palavras, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhamos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:

— Quem lhe arranja sustento?

Nos mostrou, então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se alimentar.

—Tenho que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para eu não deixar emagrecer este farol.

Regressamos sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento remoendo-me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.

E voltei a visitar a ilha. Demorei-me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.

—Só quero viajar quando for completamente cega.

Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:

—É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.

Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria um barco amarrado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.

Nessa noite, jantamos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida. Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o pelicano. Deitava-se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama. Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão. Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.

— Uma dessas tardes vou com ele, por esse mundo a fora.

Deitei-me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um teto. Deixei-me adormecer, mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê desse meu impulso ao erguer-me da esteira. Era como se eu fosse guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a sepultura não tinha profundidade nenhuma. Quando me debrucei sobre os restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de pássaro. E um muito volumoso bico.

O meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao patamar do farol ainda toquei uma pena branca, esvoadiça. Fiquei na varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz intermitência do farol. Desde essa noite sou eu o faroleiro da ilha do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves.
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* Capulana é o nome que se dá, no Moçambique, a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas mulheres para cingir o corpo, e por vezes a cabeça, fazendo também de saia, podendo ainda cobrir o tronco, o seu uso também vai muito além da moda: o tecido é usado pelas mulheres para carregar os seus filhos nas costas, para carregar trouxas, para inúmeras funções, como toalha, cortina, pano de mesa, etc (wikipedia)
Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

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