Mostrando postagens com marcador peça teatral. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador peça teatral. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Carlos Leite Ribeiro (Aquela Boneca)


(Peça teatral dramática)

Elenco:
- Fernando, 50 anos. Frequentador do café "Ti Pedro" e seu grande amigo ...
- Pedro, 65 anos. A quem o povo chamava carinhosamente, "Ti Pedro" ...
- Joana, 60 anos. A mãe de Américo ...
- Maria do Carmo, 45 anos. Foi ela quem criou a Eunice ...
- Américo, 42 anos. Para que Eunice tivesse oportunidade de ser operada quando era ainda criança e, depois para lhe pagar os estudos, entrou numa de contrabando, e foi preso. Depois, imigrou para o estrangeiro …
- Eunice, 22 anos. Durante muitos anos apreciou e desejou "aquela boneca", nunca pensando que anos mais tarde seria sua ...
____________________________ 

Em todas as pequenas localidades, existe sempre um local, onde se sabe e se discute a vida dos seus habitantes. No local onde se vai desenrolar a nossa história, esse local de encontro era o café do "Ti Pedro". Uma pequena loja com pintura e mobiliário já muito antigo.

Atrás do velho balcão, o seu proprietário, já septuagenário, a quem o povo, respeitosamente e carinhosamente, chamava "Ti Pedro".

Nas poucas prateleiras de vidro que se encontravam por detrás do balcão, na prateleira central e em destaque, encontrava-se uma linda boneca, metida numa caixa de celofane.

Aquela boneca tinha uma história ...

Estávamos em princípios de Junho, quando os dias começam a aquecer. Neste momento entra no café, o Fernando, grande amigo do "Ti Pedro" ...

Fernando: - Boa tarde, Pedro. Os jornais já chegaram ?

Ti Pedro: - Ainda não chegaram, Fernando. O Expresso, como habitualmente, está atrasado. Olha lá, amigo, bebes o costume ?

Fernando: -  Não, hoje apetece-me... nem sei o quê...

Ti Pedro: - Olha, "nem sei o quê", é uma bebida que não tenho cá !

Fernando: - Vejo que hoje estás muito espirituoso. Aproveitando essa tua boa disposição, mais uma vez te peço que me contes a história dessa boneca, que há tantos anos se encontra aí atrás desse balcão.

Ti Pedro: - Qual boneca ?! ... ah, a boneca! Pois está aqui há mais de dezesseis anos, mas por estes dias deve sair daqui.

Fernando: - Nem quero acreditar que vais dar essa boneca ...

Ti Pedro: - Estás completamente enganado, pois eu vou dar esta boneca e com grande prazer e à pessoa certa!

Fernando: - Pedro, tu cada vez estás a ficar mais misterioso. O que se passa contigo, homem? Vá lá, desembucha e diz-me que mistério tem essa boneca?

Ti Pedro: - Podes crer que não tem mistério nenhum. Nenhum mistério...

Fernando: - Então, se não tem qualquer mistério, sê amigo e conta-me a história dessa boneca. 

Ti Pedro: - Amanhã ou por estes dias, conto-te.

(Entra em cena nova personagem)

Joana: - Boa tarde, "Ti Pedro" e Sr. Fernando. Olhe, troque-me esta garrafa vazia por uma cheia de vinho tinto. Se possível, pode ser fresquinho.

Ti Pedro: - Olha a tia Joana! Então, tem tido notícias do seu filho Américo?

Joana: - Tenho, tenho. Ele continua lá pelos "estrangeiros". É a vida dele, sabe?

Fernando: - Vocês desculpem-me de me meter na vossa conversa. Se não me engano, o seu Américo, desde que imigrou para o estrangeiro, nunca mais veio a Portugal, pois não?   

Joana: - O meu filho é um homem de vergonha e, assim que saiu da prisão, foi logo para o estrangeiro, e nunca mais cá voltou.

Fernando: - Que pena! um rapaz tão trabalhador e tão honesto... custa a compreender como é que se meteu naquela embrulhada do contrabando.

Joana: - Nem eu compreendo, Sr. Fernando, pois, o meu Américo sempre foi o que se pode chamar "uma joia de pessoa" e um filho exemplar. Agora é um inválido

Fernando: - O quê? Um inválido?! ... ora diga-me lá o que se passa, tia Joana!

Joana: - Não se passa nada... nada, nada. "Ti Pedro", dê-me a garrafa, pois estou com muita pressa...

Ti Pedro: - É muito curioso. A tia Joana, habitualmente, não vinha aqui comprar vinho, mas, há  uns tempos para cá, vem todos os dias comprar uma garrafa...

Joana: - Sim, sim uma garrafa. Sabe, é para, para temperar a comida ... ganhei agora o hábito de temperar todos as comidas...fazer "vinho d`alhos”... compreende, não compreende ?

Ti Pedro: - Francamente, não compreendo mesmo nada. Mas enfim ...

Joana: - Bem, agora que já estou aviada, tenho que me ir embora.

Ti Pedro: -  Tia Joana, fique mais um pouco, por favor. Disse-nos há pouco que o Américo estava inválido?

Joana: - Mas eu disse isso ?

Ti Pedro: - Pois disse...

Joana: - Então, foi sem querer !

Ti Pedro: - Eu logo compreendi que tinha sido sem querer. Tia Joana, diga-me: o Américo está cá?

Joana: - Ai que chatice... deixe-me ir embora, "Ti Pedro"!

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo está cá?

Joana: - Por favor deixem-me ir embora! Deixem-me, deixem-me. E deixem-no a ele, ao meu pobre filho, pois ele, coitadinho, está inválido!

Fernando: - Tia Joana, o que se passa, ou melhor, o que se passou com o Américo?... Nós somos amigos dele e por isso, temos o direito de saber, para assim o podermos ajudar.

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo sofreu algum acidente?

Joana: - Meu Deus, que infeliz que eu sou... o meu pobre filho sofreu um acidente com a máquina que trabalhava e, ficou sem um braço. Aquele infeliz nunca teve sorte na vida!

Fernando: - Lamento muito. Coitado do Américo!

Ti Pedro: - Mas diga-me lá, tia Joana, o Américo está cá ou não?

Joana: - Está cá, está. Mas tem vergonha de sair de casa. O espectro da prisão persegue-o, e agora pior ainda, pois não tem um braço. Que infeliz é o meu Américo!

Fernando: - Lamento muito, mas mesmo muito. Mas, tia Joana, por favor, acalme-se.

Ti Pedro: - Mas ainda bem que o Américo está cá, pois eu preciso muito de falar com ele.

Joana: - Quem me dera que o meu filho saísse de casa, que convivesse com os amigos. Que saísse daquele quarto escuro, em que voluntariamente se encerrou. Talvez daqui a algum tempo perca os complexos que hoje tem, e então comece a sair. Oxalá que comece novamente a viver a conviver!

Ti Pedro: - Tia Joana, eu hoje sem falta, tenho de falar ao Américo!

Joana: - Falar para quê, "Ti Pedro" ?!... Por acaso, o meu filho ficou a dever-lhe alguma coisa? Se é isso, diga-me por favor, pois eu, apesar de ser muito pobre, com certeza que lhe pagarei.

Ti Pedro: - O Américo não me deve nada, e que eu saiba, não deve nada a ninguém. Mas eu preciso de falar com ele, sobre um assunto pessoal, de interesse comum. Tia Joana, pode crer que é um assunto que interessa a ambos...

Joana: - Se por acaso o meu filho vem a saber que eu contei a alguém que ele está cá, vai ficar muito zangado comigo! E eu não quero que ele fique desiludido comigo, que sou a sua mãe! O Américo tem sofrido muito, muito, e só eu, com o coração de mãe, o posso compreender.
Desculpe-me, "Ti Pedro", mas eu não lhe posso dar o seu recado!

Fernando: - A tia Joana pode-lhe dizer que eu, um dia destes, passei perto de sua casa e que o ouvi falar. Logo fiquei muito desconfiado, e que hoje, por acaso, a encontrei no café e lhe falei no caso. E a tia Joana, sem querer caiu na armadilha que eu lhe montei, para saber se ele tinha ou não regressado a Portugal. Valeu? ...

Joana: - Não sei, Sr. Fernando... Se o meu filho vai aceitar essa desculpa, pois, como é natural, anda muito desconfiado.

Fernando: - Resulta, sim, tia Joana! vai ver que vai resultar. Para mais, o rapaz não pode passar o resto da vida escondido. Lá por ter estado preso por causa de contrabando, e depois, ter ficado sem um braço, quando trabalhava no estrangeiro, não é razão para ele se esconder.

Ti Pedro: - Olha, Fernando. Mudando de assunto, tenho a sensação que vêm aí os jornais.

Fernando: - Tens toda a razão, pois também a mim me parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso ...

Joana: - E eu vou indo para casa. Mas antes, peço-vos que não digam a ninguém que o meu filho Américo, está cá.

Ti Pedro: - Fique descansada, tia Joana!

Fernando: - Tia Joana, peço-lhe que não se esqueça de fazer o que eu lhe disse, está bem?

Ti Pedro: - Assim como também não se esqueça, que eu hoje, sem falta, preciso de falar com o Américo!

Fernando: - Olha que nos enganámos, Pedro. Ainda não é desta vez que chegam os jornais. O barulho que estávamos a ouvir, era de um expresso de excursão, mas...

(Nova personagem entra em cena)

Maria do Carmo: - Boa tardes, "Ti Pedro" e Sr. Fernando! O tempo está a aquecer. O que também não admira, pois já estamos perto do Verão.

Ti Pedro: - Olá, garotona!

Fernando: - Aqui a nossa querida Maria do Carmo, cada vez está mais bonita!

Maria do Carmo: - Ora, ora. O Sr. Fernando está sempre a brincar comigo. Estou a ver que hoje, o expresso, está muito atrasado, não está?

Ti Pedro: - Tens toda a razão, Maria do Carmo.

Fernando: - E os jornais hoje nunca mais chegam!

Ti Pedro: - A tua, ou melhor, a nossa menina, a Eunice, deve chegar ainda hoje, não é verdade, Maria do Carmo?

Maria do Carmo: - Conto que ela venha na próxima carreira, pois já deve ter terminado os exames finais.

Ti Pedro: - Que cabecinha d` ouro que ela tem! Por isso é que ela tem sido uma magnífica estudante e que nunca chumbou nenhum ano!

Fernando: - E só de pensar que ela, por causa daquela doença nos ossos, passou aqueles anos todos num sanatório. Mas, felizmente que hoje, quase não se nota que ela coxeia um pouco.

Maria do Carmo: -  Teve a sorte de ter encontrado um grande cirurgião, além de ter também tido a sorte de uma pessoa desconhecida, que lhe pagou todas as despesas da operação, e também os estudos. Mas Graças a Deus, a esta hora já deve estar licenciada!

Fernando: - Sempre gostava de saber quem foi esse desconhecido que lhe pagou tudo ?

Maria do Carmo: - Eu também não sei e gostava de saber, mas nunca cheguei a descobrir. E parece-me que nem aqui o "Ti Pedro", embora todo o dinheiro que essa pessoa desconhecida mandou para a Eunice, lhe tivesse passado pelas suas mãos. Ou será que o "Ti Pedro" sabe quem é, e não nos quer dizer ...?!

Ti Pedro: - Eu já vos tenho dito muitas vezes que não sei quem é. Por favor não me venham agora com essas conversas, porque eu já vos tenho dito que também não sei quem é essa pessoa; o que também pouco interessa...

Fernando: - Tenho-me questionado se seria algum dos muitos amantes que a mãe teve?

Ti Pedro: - Não, não é esse o caso.

Maria do Carmo: - Também não me parece que seja, pois esses, só a exploraram. Por isso é que a desgraçadinha morreu na pior das misérias!

Tio Pedro: - Já o pai tinha morrido, tragicamente, na chamada Guerra do Ultramar. Se não fosse o tal misterioso benfeitor, o que teria sido da nossa Eunice?

Fernando: - Aqui p`ra nós, vocês não desconfiam mesmo quem possa ser essa misteriosa personagem?

Ti Pedro: - Eu já vos disse que não desconfio de nada nem de ninguém!

Maria do Carmo: - Eu lá desconfiar, desconfio. Mas é assunto só para eu comentar com os meus botões.

Fernando: - Por acaso será que este mistério esteja dentro daquela boneca, que o "Ti Pedro" tem ali naquela prateleira, há tantos anos?

Ti Pedro: - Francamente, por muita vontade que tenha, não vos estou a compreender. Aquela boneca não tem qualquer mistério. Vocês hoje é que se voltaram p`ra aí...

Fernando: - Mas o certo é que tu já me disseste que hoje, aquela boneca, ia sair dali para sempre. Não foi? 

Ti Pedro: - E daí, homem? Em minha casa não poderei dizer o que muito bem queira?

Fernando: - Não é por nada, Pedro, e por favor, não te irrites. Para mais, daqui a pouco deve chegar a Eunice, já com o "canudo" e com o título acadêmico de "doutora".

Ti Pedro: - Cá p`ra mim, tu continuas a tentar esconder alguma coisa ... cada vez te compreendo menos, Fernando!

Maria do Carmo: - Escutem, escutem. Parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso. Vocês, por acaso, não ouvem?

Ti Pedro: - Sim, sim. Também parece que estou a ouvir o motor, do outro lado do vale. Fernando, os teus jornais já devem de estar a chegar...

Fernando: - Como sempre, anseio que eles cheguem, para saber o que vai por esse mundo. Mas, não sei o que sinto, ou melhor, pressinto. Parece-me que hoje vai acontecer qualquer coisa de muito especial

(neste momento entra em cena outra personagem)

Américo: - Boa tarde a todos. A minha mãe disse-me que o "Ti Pedro" me queria dizer qualquer coisa.

Ti Pedro: - Olha, mas és tu, és tu, o Américo, o filho da tia Joana?!

Fernando: - Olha, o Américo! Que saudades já tinha de ti!

Américo: - Sim, vocês não se enganam, meus amigos. Sou eu, o Américo, ex-presidiário e maneta permanente!

Ti Pedro: - Tu, meu rapaz! Que alegria me dás!

Américo: - Alegria... ou piedade ?!

Ti Pedro: - Qual piedade, qual carapuça! Tu, com ou sem um braço, és e serás sempre o mesmo: um grande homem!

Fernando: - Atenção que o expresso, cada vez está a aproximar-se mais.

Ti Pedro: - Américo, por acaso sabes que é que está a chegar no expresso?

Américo: - Como é que eu posso saber, se há tantos anos estou afastado desta terra?

Ti Pedro: - Tens toda a razão Américo, mas eu vou-te dizer: deve vir lá a Eunice, a nossa querida Eunice!

Américo: - De verdade ?!... Então, vou-me já embora, "Ti Pedro".

Ti Pedro: - Não. Tu Não te podes ir já embora, pois ainda não falei contigo!

Américo: - "Ti Pedro", deixe-me ir embora!

Ti Pedro: - Espera um pouco mais, Américo. Olha p`ra aqui: a boneca que há muitos anos deste à Eunice, ainda está aqui. Tu, antes de ires para a prisão, encarregaste-me de ser o seu "fiel" depositário. Pois bem, a Eunice ...

Maria do Carmo: - A nossa menina, a nossa Eunice, finalmente, chegou!

Ti Pedro: - O que vocês querem dizer, é que a nossa querida doutora Eunice, chegou !

(entra em cena outra personagem: a Eunice ...)

Eunice: - Olá!!! Mal estou a chegar e já me estão a ofender. Eu sempre fui e continuarei a ser a Eunice, a vossa menina!

Ti Pedro: - Mas tu agora, tens um curso superior, Eunice!

Eunice: - O que eu tenho é uma valorização pessoal, que muitos podiam ter, se tivessem a sorte de encontrar um benfeitor como eu tive. Mas, com esta barafunda toda, nem sequer ainda os cumprimentei: Boas tardes a todos!... Cheguei, sou a Eunice, aquela menina que vocês bem conhecem desde pequenina !

Ti Pedro: - Senta-te aqui, ao pé do Sr. Américo.

Eunice: - Com todo o prazer. Já há muito tempo que não tinha o prazer de o ver. O Sr. Américo, dá-me licença que eu lhe dê um beijo na sua face?

Américo: - Um beijo?! Um beijo a mim?!

Eunice: - Porque não, Sr. Américo?! Olhe que eu não tenho nenhuma doença contagiosa!

Américo: - Não é isso. È que eu, é que eu ... já estive preso e, além disso, não tenho um braço.

Eunice: - E o que é que isso importa?!... se esteve preso, pagou uma dívida que teve com a Sociedade; se teve um acidente, do qual perdeu um braço, é uma situação que pode acontecer a qualquer pessoa.

Américo: - E também já tenho os cabelos grisalhos.

Eunice: - Ora. Ora. A isso, chama-se vaidade masculina. Vejam lá por ter uns cabelitos brancos, já se considera velho! O Sr. Américo ainda é um belo homem!

Ti Pedro: - Peço desculpa, mas tenho de interromper a vossa agradável conversa, pois, há mais de dezesseis anos que ando como embuchado. Américo, está aqui a boneca que tu, naquele dia em que foste preso, deixaste aqui para quando a Eunice acabasse o curso, a entregar-lhe. Pois bem, entrega-a tu. Eu, estou velho, cansado, mas muito feliz por ter cumprido esta missão.

Eunice: - Esta boneca é para mim?!... E foi o Sr. Américo que me ofereceu?! ... Muito obrigado. Como sabem, eu sempre adorei esta boneca. O "Ti Pedro" deve-se lembrar bem que, quando era pequena, ficava longos minutos a admirá-la. Mas o "Ti Pedro" nunca me disse que a  boneca era para mim!

Ti Pedro: - E também nunca te disse que o teu benfeitor, era o Sr. Américo!

Eunice: - O Sr. Américo?!!! ... Mas, mas porquê?

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", peço-lhe que não fale mais neste assunto.

Eunice: - Desculpe, Sr. Américo, mas eu quero saber tudo - tudo, percebem? Eu tenho o direito de saber, por favor, digam-me!

Ti Pedro: -  É um conto muito longo. Mas eu vou tentar ser o mais sucinto possível, pois encontro-me muito cansado, muito doente. Este meu coração...

Américo: - "Ti Pedro", por favor, não se canse mais, pois não merece a pena estar a falar mais neste assunto.

Ti Pedro: - Merece, merece meu rapaz. Para mais, eu tenho de terminar este trabalho que me deste há dezesseis anos. Eunice, vem cá. O Sr. Américo sempre gostou muito da tua mãe (da tua pobre mãe, que tão cedo nos deixou), mesmo antes de ela ter casado com o teu infeliz pai, que lá ficou naquela maldita Guerra Colonial...

Fernando: - Pedro, tu não estás bem, pois não. Deixa-me pôr esta almofada nas tuas costas.

Ti Pedro: -  Põe lá essa almofada. Assim, estou muito melhor  -  obrigado,  Fernando. Mas como ia a contar, tu eras muito pequenina e já há muito que estavas internada num sanatório, para os lados de Lisboa. Precisavas, urgentemente, de seres operada...

Fernando: - Tu não estás a sentir-te muito bem, pois não, Pedro?... Estás cada vez a ficares mais pálido...

Ti Pedro: - Estou a sentir-me muito cansado... ai, este meu coração... mas vamos ao que interessa. Tu precisavas de ser operada por um grande especialista, mas não havia dinheiro. Foi, para conseguir essa importância, que o Américo se meteu nessa do contrabando, acabando por ser preso. Mas, mesmo assim, conseguiu o dinheiro necessário para a tua operação ...

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", não continue.

Ti Pedro: - Já falta pouco, podes crer... Depois de sair da prisão, o Américo, por vergonha e por necessidade de ganhar dinheiro para os teus estudos, emigrou para o estrangeiro...

Eunice: - Eu, estou tão confusa, tão surpreendida... tão agradecida, que não consigo encontrar palavras adequadas para me exprimir!

Ti Pedro: - Dentro da boneca, encontra-se um papel, que eu quero que o leiam... depois de eu morrer...

Américo: - O "Ti Pedro" está tão pálido...

Eunice: - Atenção !!!... O "Ti Pedro" está a cair!... Por favor, chamem já uma ambulância. Depressa, depressa...

Ti Pedro: - Não se incomodem... Já não merece a pena, meus filhos... ai, este meu coração... Olha lá, Américo...

Eunice: - Um médico por favor, por favor...                                         
Ti Pedro: - A minha missão... está cumprida... parto em paz...

* * * * * * * * * 
Eunice: - Morreu, morreu o "Ti Pedro" - que bondoso velhinho!

Américo: - Eu, um ex-presidiário e um inválido, é que devia ter morrido!

Fernando: - Tu, Américo, ainda não cumpriste a tua missão cá na Terra. Hoje, morreu um grande homem, o "Ti Pedro". Amanhã morrerá outro ...

Américo: - Para o "Ti Pedro", acabou-se tudo!

Maria do Carmo: - Se há funerais bonitos, este foi um deles.

Eunice: - Tanta gente o acompanhou até à sua última morada... ele bem o mereceu, pois sempre foi muito educado e bondoso para toda a gente.

Maria do Carmo: - Descansa em paz, "Ti Pedro"!

Américo: -  E nós vamos embora, pois nada mais fazemos aqui.

Maria do Carmo: - Nenhum familiar dele o veio acompanhar.

Fernando: - Ele, também nunca nos falou que tinha família.

Maria do Carmo: - Então, não deve ter descendentes... 

Eunice: - Pois não. E sendo assim, é uma pena aquele café ficar encerrado. Por falar em café, tenho que lá passar para ir buscar a minha boneca.

Fernando: - E dentro da boneca, como o "Ti Pedro" nos disse, deve de estar um papel com alguma mensagem. Por curiosidade, gostava de saber o conteúdo dessa mensagem.

Eunice: - Então, podemos ir agora todos ao café.

Maria do Carmo: - E até nos calha em caminho.

Américo: - E assim podemos a ficar a saber a última vontade do "Ti Pedro".
* * * * * * * * * 

Eunice: -  Quem havia de dizer que esta boneca um dia seria minha! Madrinha, estou tão impressionada...

Maria do Carmo: - A boneca é muito linda, mas, sobretudo representa um gesto muito bonito de um verdadeiro altruísta, ou seja, o Américo.

Américo: - Por favor, não falem mais em mim. Ainda me obrigam a eu ir-me embora.

Fernando: - Oh Américo, modéstia em demasia, é um grande defeito que deve ser corrigido. Para mais, tu és tão brioso!

Maria do Carmo: -  O Fernando tem toda a razão. O Américo não pode ser tão modesto, pois é um homem que tem muito valor.                                                                                              
Fernando: - Com esta conversa toda, já estou a ficar ansioso por saber qual o teor da mensagem que o "Ti Pedro" deixou dentro dessa boneca.

Eunice: - Tenha calma, Sr. Fernando, pois já vamos ver.

Américo: - A caixa de celofane está deslocada na parte de trás.

Eunice: - Tem razão, e é por esse lado que eu vou tirar a boneca do celofane ... Olhem, cá o papel. O Sr. Américo quer lê-lo? 

Américo: - Eu mal sei ler. Lê tu, Eunice.

Eunice: - Então tomem muita atenção: "A 2 de Janeiro de mil novecentos e tal, no cartório da cidade, fiz o meu testamento, considerando meu herdeiro universal, Américo Araújo. Depois de eu morrer, entreguem esta mensagem ao Américo Araújo, pois, a partir dessa data, este café passa a ser dele ...".

Américo: - Não compreendo... Porque seria que o "Ti Pedro" me fez seu herdeiro universal?!... Mas eu não posso aceitar, para mais, sou um inválido ...

Fernando: - O "Ti Pedro" fez-te seu herdeiro universal, porque te apreciava muito. Agora, meu rapaz, é preciso teres brio, pois capacidade tens tu. E este café não pode fechar...

Eunice: - O Sr. Américo, só é um inválido se quiser. Mas eu, ou melhor, todos nós temos confiança em si, pois temos a certeza que irá reagir. Madrinha, vamos fazer a limpeza ao café? 

Maria do Carmo: -  É p`ra já. O "Ti Pedro", tinha os utensílios de limpeza e os detergentes todos bem arrumadinhos, naquela dispensa. Vou já buscá-los.

Fernando: - E eu também vou ajudar... a limpar o pó, claro!
Américo: - Ai! Aonde eu estou metido!... Um inválido como eu, e além disso, não percebo mesmo nada deste negócio, pois eu sempre trabalhei na indústria metalúrgica.

Maria do Carmo: - Olha Américo, escusas de estar p`ra aí com essas lamúrias, pois ninguém te está a ouvir. Vamos mas é ao trabalho!

Fernando: - Se nós te não conhecessemos tão bem, diríamos que estavas a fugir ao trabalho, e que não querias fazer nada, alegando que estavas inválido!

(Outra personagem entra em cena : Uma Voz mais outra Voz)

Voz: - Boa tarde. Vendo refrigerantes, águas e cervejas - o que é que precisa para a próxima semana ?

Américo: - O senhor é o distribuidor ?
Voz: - Sou o empregado do distribuidor.

Américo: - Então, para a próxima semana pode trazer: três grades de sumos, duas de águas e quatro de cervejas.

Voz: - Muito bem. Então, até p`ra a semana, e obrigado.

2ª Voz: - Vizinho, pode aviar-me um sumo de maçã, sem borbulhas?

Américo: - Pois posso, pois não estou aqui para outra coisa. Olha, queres um copo?

2ª Voz: - Pode ser e, também quero daqueles chocolates.

Américo: - Este aqui?

2ª Voz: - O que está ao lado desse. Está aqui o dinheiro e trocadinho.

3ª Voz: - Um maço de cigarros e uma bica curta. Já chegaram os jornais?

Américo: - Ainda não chegaram, mas o expresso não deve tardar aí. Queres que te guarde algum?

3ª Voz: - Eu espero pelo expresso.

2ª Voz: - Vizinho, o chocolate tem um prêmio.

Fernando: - Chiuu, cheguem aqui. Estão a ver o que eu estou a ver?

Maria do Carmo: - Isto aqui p`ra nós que ninguém nos está a ouvir: o Américo tem muito jeito para o negócio. Até parece que passou toda a sua vida atrás de um balcão.

Eunice: - E sobretudo, muita força de vontade. È um homem brioso. Reparem como ele, apesar de não ter um braço, consegue tirar tão bem as tampas das garrafas!

Fernando: - Temos o homem. O café "Ti Pedro" vai continuar...

Américo: - E vocês aí só falam, falam e não trabalham. Daqui a pouco os clientes começam a reclamar, pois há muito pó no ar!!!

FIM

Peça teatral dramática de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal

Fonte:

terça-feira, 27 de maio de 2014

Gerson Cesar Souza (Peça Teatral: A Floresta da Tristeza sem Fim)

ATO 1:

(Caco e Magú jogando futebol. Leleco entra e quer jogar também).

LELECO - Mano, deixa eu jogar também?

CACO - Não, não, tu é muito ruim.

LELECO - Ah, mano deixa...

MAGÚ - Não, da outra vez tu quebrou o vidro da casa da véia chata ali do lado, e ela ficou brigando com a gente. (Imita a véia)

LELECO - Ah, só um chute vai.

CACO - Tá, espera a gente jogar e depois tu joga. São só 150 chutes prá cada um.

LELECO - Tá

(Leleco faz que vai esperar, mas na hora que Caco vai chutar ele chuta e a bola vai para o pátio da vizinha)

MAGÚ - Bá, foi lá pro pátio da véia!

CACO - Eu te falei Leleco, agora tu vai buscar.

(Leleco indeciso começa a falar. Enquanto fala a vizinha aparece atrás dele com a bola na mão).

LELECO - Ah, eu vou. Eu não tenho medo, não sou covarde como vocês. Não vou ter medo daquela véia chata e coroca.

VIZINHA - Quem é véia chata e coroca?

LELECO - Aquela que mora ali ó!

(Se vira, vê a véia e leva um susto).

LELECO - Oi vizinha; trouxe a bola, que bom. Toma a bola mano e cuidem prá não incomodar a vizinha.

VIZINHA - Escuta aqui seu pivetinho, fecha essa matraca. E vocês, parem de ficar jogando essa bola pro meu pátio, pois se eu pegar ela  novamente, vou picar tanto essa bola que açougueiro vai querer vender como guisado.

MAGÚ - Desculpa vizinha, mas nosso irmão é um pouco mal educado. Eu já não te falei Leleco prá não chamar a véia de vizinha?

VIZINHA - O que tu disse?

MAGÚ - Quer dizer, não chamar a vizinha de véia.

CACO - Dona, isso não vai acontecer mais. Eu vou guardar essa bola e ninguém mais vai jogar.

VIZINHA - É bom mesmo, porque se quebrar o meu vidro outra vez eu esmago vocês.

(Velha sai. Assim que ela vai embora Caco larga a bola no chão)

CACO - Tá liberado pessoal, vamos jogar.

LELECO - Oba, eu chuto, é minha vez...

MAGÚ - Tu não, tu quase estragou o nosso jogo.

CACO - É, tu não joga mais.

LELECO - Ah, vocês vão vê! Então eu vou pegar a minha funda e vou caçar passarinho lá na Floresta.

MAGÚ - Tu é louco? Essa é a Floresta da Tristeza sem Fim. Tem fantasma!

CACO - Dizem que tem uma bruxa também. Ela pega as crianças e transforma em sapos.

MAGÚ - E essa bruxa tem três monstros que ajudam ela.

LELECO - Eu não tenho medo de bruxa nem de fantasma. Se eles vierem eu pego minha funda e ó... Tchau prá vocês.

MAGÚ - É louco!

CACO - A bruxa vai pegar ele...

ATO 2:

(Leleco entra na Floresta. Caco e Magú saem de cena. Leleco procura passarinhos, dá tiros com a funda e conversa com a plateia ).

LELECO - Ah, o Caco e o Magú disseram que tinha fantasma aqui, mas não tem nada. Bom eu vou dormir um pouco, se aparecer um fantasma vocês avisam, tá?

(Quando Leleco dorme, entra em cena a Fantasminha Rafaela, plantando flores. A plateia grita para avisar. Rafaela vai até Leleco com curiosidade. Leleco acorda e Rafaela esconde-se atrás das árvores).

LELECO - Porque vocês estão gritando? Não tem fantasma nenhum aqui.

(Vai atrás das árvores, procura e vai dormir de novo)

LELECO - Eu vou dormir de novo. Qualquer coisa vocês gritam.

(Rafaela vai até ele novamente).

LELECO - Vocês estão gritando de novo, não tem fantasma aqui. Atrás de mim não tem nada.

(Vira e leva um susto. Pega a funda.)

LELECO - Ah meu Deus, sai prá lá coisa ruim...

RAFAELA - Calma, calma.

LELECO - Quem é você?

RAFAELA - Eu sou a Fantasminha Rafaela.

LELECO - Os fantasmas são do mal! Sai!

(Rafaela senta e começa a chorar)

RAFAELA - Eu não sou do mal, sou do bem! Ninguém gosta de mim, todo mundo foge de mim.

(Leleco tenta fugir, árvores fecham o caminho)

ÁRVORE1 - Menino mau!

ÁRVORE2 - Você fez a Rafaela chorar.

LELECO - Vocês falam? Eu vou fugir!

ÁRVORE1 - Na na não. Volte lá e peça desculpas!

LELECO - Mas ela é um fantasma...

ÁRVORE2 - Vá lá agora!

LELECO - Mas eu tenho medo...

ÁRVORE1 - Se você não for lá nós vamos fazer soprar um vento forte, que vai levar você para muito longe daqui.

ÁRVORE2 - Você nunca mais vai voltar.

LELECO - Tá bom, eu vou!

(Leleco vai até Rafaela. Quando toca nela, ela chora mais ainda, e ele se assusta. Rafaela fala chorando e ele não entende. Leleco acalma ela)

RAFAELA - Eu sou boazinha, mas ninguém quer ser meu amigo... Todo mundo tem medo de mim.

LELECO - Mas eu pensei que os fantasmas fossem maus.

RAFAELA - Mau é você que fica com essa funda matando os passarinhos. E eu não era um fantasma! Eu era uma menina normal, e cuidava dessa floresta. Plantava flores, dava comida pros bichinhos. Aí, a Bruxa Magnólia me pegou e me jogou um feitiço. Eu virei uma fantasma e esta floresta virou a Floresta da Tristeza sem Fim.

LELECO - Puxa! que bruxa malvada. E não tem como acabar com esse feitiço?

RAFAELA - A única maneira é pegar a varinha mágica da Bruxa e quebrar. Mas ninguém consegue chegar perto dela.

LELECO - Deixa comigo Rafaela. Vou pegar essa varinha e acabar com o feitiço)

(Risadas da Bruxa)

RAFAELA - É a Bruxa Magnólia, ela vem vindo... Vamos nos esconder!

LELECO - Não, eu vou enfrentar ela. Dou um soco assim, outro assim...

RAFAELA - Mas ela tem três monstros que ajudam ela, e adora transformar as crianças em sapos, e depois arrancar as pernas prá fazer feitiços.

LELECO - Pensando bem, vamos nos esconder.

ATO 3:

(Rafaela e Leleco escondem-se. Entra a bruxa com os três ajudantes).

BRUXA MAGNÓLIA - Eu estou sentindo cheiro de crianças. Tem crianças aqui! Trac, Trec e Troc, procurem!

(Monstros procuram e não acham.).

BRUXA MAGNÓLIA - Olhem essas flores! Aquela Fantasminha idiota andou plantando flores na minha floresta outra vez. Eu acabo com a Rafaela.

(Enquanto a Bruxa fala, gesticula e derruba Trac)

BRUXA MAGNÓLIA - Arranquem essa flores e depois venham me ajudar a procurar a Rafaela!

(Bruxa sai, Monstros – sempre em fila – vão arrancando as flores, e entregando um para o outro. O último monstro vai replantando as flores. Quando acabam:).

MONSTRO1 - Serviço completo.

MONSTRO2 - É, serviço completo.

MONSTRO3 - Completíssimo!

(Olhar para trás.)

MONSTRO1 - Seu idiota, é prá arrancar as flores, e não para plantar. (Arrancam de novo e saem)

(Rafaela e Leleco saem do cenário, depois dos monstros. Magú e Caco voltam a jogar bola)

MAGÚ - Acho que o Leleco está na floresta agora e não vai nos incomodar.

CACO - É, vamos aproveitar e jogar...

(Jogam um pouco até quebrarem a janela da vizinha)

CACO - Iiih, Magú, a velha vai nos pegar...

(A vizinha grita de fora do cenário)

VIZINHA - Quebram a minha janela, eu vou matar vocês!!!

MAGÚ - E agora???

CACO - Vamos nos esconder na floresta!

MAGÚ - Mas na floresta tem a bruxa!

(Ficam na indecisão e decidem pela floresta)

ATO 4

(Meninos na floresta)

MAGÚ - Que floresta horrível. Agora é sei porque chamam de Floresta da Tristeza sem fim. Chega a dar medo...

CACO - É, dizem que a bruxa é má e transforma as crianças em sapos.

MAGÚ - É, e os monstros que ajudam ela são terríveis...

(Monstros entram e escondem-se atrás das árvores. O monstro Trac se disfarça de árvore)

MAGÚ - Ah, que árvore mais feia....

(Trac começa a rir e outros monstros cutucam ele)

CACO - Parece um monstro!

MAGÚ - Vamos Caco, vamos achar o Leleco e dar o fora desta floresta.

(Sai um atrás do outro. Monstros saem das árvores e pegam Caco. Outro monstro segue atrás do Magú. Bruxa dá uma risada)

MAGÚ - Ouviu é a Bruxa.... Dá a mão, Caco, porque senão ela nos pega...

(Magú agarra a mão do monstro).

MAGÚ - Lelecoooo! Leleeeeco, onde é que tu tá?

(Magú dá a volta puxando o monstro e chega aonde Caco está preso)

MAGÚ - É Caco, não achamos o Leleco.

(Caco tenta avisar, mas está amordaçado)

CACO - Hummmmmm.

MAGÚ - Que foi Caco, fala.

CACO - Hummmmmm.

MAGÚ - Ô Caco, como é que tu está aí e aqui atrás?

CACO - Hummmmmm.

MAGÚ - Se tu tá aí...

(Se vira e leva um susto, Monstros correm atrás e pegam. Amarram junto com Caco).

MONSTRO1 - Trac, chama a Bruxa!

(Trac sai e vai chamar a Bruxa. Troc e Trec ameaçam os meninos. Trac volta com a Bruxa).

BRUXA MAGNÓLIA - Eu sabia que haviam crianças aqui!!! Eu falei! Agora vou transformá-los em sapos e arrancar as pernas de vocês. Monstros, cuidem deles. Eu vou buscar meu livro de feitiços. Vou deixar minha varinha aqui. Não saiam de perto dela.

(Bruxa sai de cena)

ATO 5


MONSTRO1 - A bruxa ficou contente, pegamos os meninos...

MONSTRO2 - É, nós somos bons.

MONSTRO3 - É, agora ela vai transformar essas crianças em monstros feios como vocês.

MONSTRO1 - Cale essa boca, você não serve nem prá ser monstro.

MONSTRO2 - É, tu te disfarçou de árvore, quase estragou tudo!!!

MONSTRO3 - Mas...

MONSTRO1 - Sai daqui. Tu cuida da varinha e nós cuidamos dos meninos.

MONSTRO2 - É, babaca.

(Trac sai chorando até a varinha. Chegando na varinha, tem a ideia de vingança. Pode até conversar com as crianças para decidir transformar os monstros em animais. Após todas as transformações a Bruxa volta).

BRUXA MAGNÓLIA - O que é isso, o que você fez com eles? Chega! Eu quero que vocês voltem a ser monstros.

(Bruxa transforma eles em monstros novamente).

BRUXA MAGNÓLIA- Vocês três, agora, agarrem as crianças e calem a boca que eu vou procurar o feitiço no livro.

ATO 6

(Rafaela e Leleco voltam à Cena e conversam encobertos pelas árvores, próximos à plateia)

LELECO - Rafaela, a Bruxa pegou os manos...

RAFAELA - Ela vai transformar eles em sapos!

LELECO - Temos que fazer alguma coisa!!!!

RAFAELA - Mas a gente precisa pegar a varinha...

LELECO - Já sei, você vai lá prá trás da Bruxa. Eu vou chamar a atenção dela. Você pega a varinha, joga prá mim e eu quebro.

(Leleco combina com as crianças da plateia, pedindo que elas ajudem a quebrar a varinha. Enquanto a Bruxa começa a falar, Rafaela desloca-se com a árvore por trás dela.)

ATO 7

BRUXA MAGNÓLIA - Achei! Achei o feitiço! Silêncio, eu tenho dizer “Xixi xiriri xipum. Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia, transformo em sapos essas crianças!”.

(Bruxa pede ajuda das crianças para falar o xixi xiriri xipum)

BRUXA MAGNÓLIA - Tudo bem, tudo bem, vamos começar. Xixi xiriri xipum. Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia, transformo...”

MONSTRO1 - Majestade...

BRUXA MAGNÓLIA - Cale a boca. Tenho que me concentrar!!!! Xixi xiriri xipum. Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia, transformo...

MONSTRO2 - Mas Majestade...

BRUXA MAGNÓLIA - Fiquem quietos.

(Rafaela se posiciona atrás da bruxa e combina com as crianças em fazer de conta que vai ajudar)

RAFAELA - Senhora Bruxa, agora a gente vai te ajudar a dizer tudo!!!

BRUXA MAGNÓLIA - Ah, muito obrigado!!!!

RAFAELA - Xixi xiriri xipum!

BRUXA MAGNÓLIA - Xixi xiriri xipum!

RAFAELA - Pelos poderes das trevas...

BRUXA MAGNÓLIA - Pelos poderes das trevas...

RAFAELA - Eu, Bruxa Magnólia...

BRUXA MAGNÓLIA - Eu, Bruxa Magnólia...

RAFAELA - transformo em sapos...

BRUXA MAGNÓLIA - transformo em sapos...

RAFAELA - esses monstros!

BRUXA MAGNÓLIA - esses monstros!

(Monstros viram sapos)

BRUXA MAGNÓLIA - O quê? Rafaela, você me enganou. Eu vou acabar com você!!!!

(Leleco aparece, chama atenção da Bruxa cantando)

BRUXA MAGNÓLIA - Eu é que vou te transformar numa minhoca, seu pirralho!!!! Xixi xiriri xipum! Pelos poderes das trevas, eu Bruxa Magnólia transformo em minhoca...”

(Leleco atira com a funda. A varinha cai. Rafaela pega. Joga prá Leleco. Bruxa corre de um lado para o outro. Até que a Bruxa pega Leleco e ele joga a varinha para a plateia quebrar.)

LELECO - Quebrem!!!

BRUXA MAGNÓLIA - Devolvam minha varinha!

RAFAELA - Quebrem a varinha!!!

(Crianças quebram a varinha. Bruxa morre. Rafaela volta a ser criança, bem como os monstros)

LELECO - Rafaela, você voltou a ser uma menina!!!

RAFAELA- Voltei sim!!! Obrigado Leleco, vocês me salvaram!!!

MONSTRO1 - Nós também estamos livres.

(Monstros soltam os meninos)

RAFAELA - Agora minha floresta vai voltar a ser alegre, com flores, com pássaros, ninguém mais com fundas.

LELECO - Isso mesmo Rafaela. Ninguém mais vai maltratar os bichinhos e a floresta, que agora será a Floresta da Alegria sem Fim.

(Final cantando)

Fontes:
SOUZA, Gérson César. Dons Diversos.
Imagem = http://www.desvendandoteatro.com

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Bruno Seabra (O Senhor Papa-Suspiros)

Bruno Henrique de Almeida Seabra
Tatuoca (Pará), 6 de Outubro de 1837 — Salvador, 8 de Abril de 1876
–––––––––––-

Cena cômica

Personagem: O senhor papa-suspiros

Representa um homem de 45 à 50 anos, vestido burlescamente.

A ação passa-se no Rio de Janeiro

Época: atualidade (Século XIX)


O teatro apresenta uma pequena praça

À frente casas em perspectiva! À esquerda, um lampião. — É noite.

Ao levantar-se o pano a personagem entra em cena pela direita

Cena única

O senhor Papa-Suspiros,

(Indo até o lampião cantarolando fanhosamente)

Com jeito se leva o mundo,
De tudo o jeito é capaz,
O caso é ajeitar-se o jeito
Como muita gente faz.1

(Pára; tira de dentro do chapéu um grande ramo de flores, beija e o cheira com entusiasmo: vem à cena, torna a beijá-lo; e passeia vagaroso.)

(Recita; é burlesco até o fim.)

(Rindo:)

Ah-ah-ah! ah-ah-ah! Forte lembrança!
Ora a gente também tem seus amores?!

(Pára e se dirige à platéia:)

E esta! que massada! pois um homem
Não tem alma também como os senhores?

(Canta)

Amor é como defluxo
De qualquer venta se apossa
Sem dar contas ao nariz;
Seja nariz de visconde,
Ou de ministro ou de moça,
Branco, escuro ou verniz.

(Pequena pausa; depois pergunta, cantando desentoadamente:)

Sendo assim pois
Quem se livra destes dois?

(Passeando:)

Ah-ah-ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente também tem seus amores?

(Beija o ramo com entusiasmo.)

(À platéia;)

Eu me chamo o senhor Papa-Suspiros,
Que é nome de família deste cujo;
Já sonhei uma vez com o baronato,
Apesar de me verem assim tão sujo:
E moro num quartinho muito estreito,
E não pago um vintém pela morada!
Filante não sou eu! porém pergunto,
Há de um homem teimar com a namorada?

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Oh que bela invenção, que bela idéia!

(À platéia:)

Acreditem que a gente vive muito
Quando sabe viver à custa alheia.

(Passeando:)

 Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Oh que bela invenção, que bela idéia!

(À platéia:)

Eu nasci p’ra viver à custa alheia,
E vivo assim, assim meio contente;
Pois se a gente nasceu para ser pobre
É melhor ir vivendo assim a gente!

Cada qual vai vivendo como pode,
E porque foi com a gente a sorte avára
Há de a gente fazer-se de soberba,
E deixar de viver de meia-casa?!

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente tem seus amores!

(Á platéia:)

Eu como, visto e bebo à custa delas,
Que vida regalada, meus senhores!

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente tem seus amores!

(Á platéia:)

Namoro a rapariga mais galante,
Que meus olhos já viram sobre a terra;
Quando penso em casar com a rapariga,
Meu terno coração no peito (Forte) ber...ra!

(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Nasce um homem também p’ra ser marido!
Oh que dia feliz! (À platéia) quando me lembro
Tenho ânsias de ir como perdido!

(Canta)

Com jeito se leva o mundo,
De tudo o jeito é capaz,
O caso é ajeitar-se o jeito
Como muita gente faz.

(Passeando:)

Quero agora mandar fazer um fato.

(Atoleimado:)

E então fui comprar dez réis de flores;

(Mostrando o ramo para a platéia:)

O ramo é o capital... o fato os juros,
Que me hão de pagar os meus amores.

(Beija o ramo com entusiasmo:)
(Passeando:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora um homem também já compra flores?!

(À platéia:)

Pois o caso é assim, comprei-lhe flores
Faz-se um mimo de um ramo à rapariga,
Depois... a gente pede qualquer coisa...
Não tem mais que dizer, — vendeu a espiga!

Pois amor é assim, o mais é bucha,
Eu cá sigo os amores desta laia.
Para paio de amor sou muito pobre,
Ela é mais rica, seja ela — paia!

(Canta:)

Com jeito se leva o mundo
De tudo o jeito é capaz,
O caso é ajeitar-se o jeito
Como muita gente faz.

A gente é como é — diz o que pensa,
Quem não pensa o que diz — faz como a gente,
Põe-se aí a pregar sermão aos outros
E pega — vai fazendo o que não sente.

Namorar, namorar como eu namoro,
Isto sim fica bem e a todos cabe;
Não é andar aí quebrando cantos.

(Rindo burlesco:)

Suspirando de amor por quem não sabe!

(Dentro batem 10 horas.)
(Depois de contar as horas:)

Já dez horas, Jesus! Não tarda a bicha!

(À platéia:)

Ai! que tenho ciúmes dos senhores!

(Olhando com atenção para a platéia e camarotes.)

Tanta gente... e que olhos curiosos
Para a cena gentil de meus amores!

Mas senhores, desejo a sós com ela,
A minha namorada, os meus amores,
Um momento ficar, para entregar-lhe.

(Mostrando:)

Este raminho de inocentes flores.

Como podem porém nos seus juízos,
De nós — ambos fazer — idéia injusta,
Eu lhes passo a contar um episódio
Para que vejam — quanto a moça custa.

(Canta ou recita ao som da música:)

A moça que eu amo
Tem olhos de gata
A cor da mulata,
Cabelos de lã;
Seus dentes são brancos,
Seus lábios vermelhos,
Que lembram dos velhos
A calva louçã.

Só veste os vestidos
À moda da França,
Seu nome é ‘Sperança,
Negaça de amor;
‘Svelta e gorducha
Tem fina cintura,
Na boca doçura,
No hálito odor.

Dez vezes lhe tenho
Um beijo pedido,
Não é meu marido,
— Responde, — e não dá!
Se intento agarrá-la
Me foge sorrindo,
E eu fico fingindo,
Dizendo-lhe que má!

Mas, amo esta moça,
Que nega-me um beijo,
E foge, e tem pejo,
Se teimo em pedir;
A moça, que fácil
Consente o amante
Beijá-la... adiante...
Promete — cair.

Há dias, a furto,
Beijei-a na orelha,
Se fez tão vermelha
Qual brasa em fogão!
Que mal faz na orelha
Beijar minha amante?
Tornou-me — tratante,
Cachorro... vilão! (Forte)

Que mal? Pois não sabe...
Não sabe e calou-se!
A moça engasgou-se

Com o fim da oração
Fitou-me nos olhos
— Em chamas ardidos;
Os meus atrevidos
Fitei-os no chão!

**

Já vem que essa moça
‘Stá fora de moda,
Não cabe, não se engoda
Com choros de amor!
Já vêem meus senhores,
Que a moça é inocente,
Palavra da gente
É toda pudor.

**

Eu me chamo o senhor Papa-Suspiros
Porque tenho vivido deste modo,
Suspirando d’amor pela Esperança,
Criada a mais gentil do mundo todo!

(Retirando-se:)

Ah-ah-Ah! ah-ah-ah! forte lembrança!
Ora a gente também tem na esperança!

FIM

1 Note-se que, na grafia da época, século XIX, jeito e ajeita-se grafavam-se com a letra gê, com o que o autor faria uma sugestão psicológica entre “geito”, “ageita-se” e gente.

Fonte:
Portal Domínio Público

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Carlos Leite Ribeiro (Casa de Fantasmas) Parte 3, final

Comédia Teatral
 
Ouve-se um barulho de queda de um corpo e o Capitão reentra no salão…

Capitão: Pouca sorte... Pouca sorte a minha... Não encontrei as calças e...

Sargento: Não me diga que o Capitão não encontrou nenhum Fantasma!

Capitão: Infelizmente acertou. Não encontrei nenhum Fantasma, nem sequer o espectro dele.

Coronel: Se não encontrou nenhum Fantasma, então o que é que fez ao martelo de orelhas? Sim, porque eu não o estou a ver...

Capitão: Pois claro que não o está ver... Nem o poderá ver... Pois os Fantasmas roubaram-mo!

Alferes: A situação cada vez está a tornar-se mais complicada e mais perigosa. Os Fantasmas já não se limitam a atacar a cozinha, como também já roubam martelos de orelhas, isto, acreditando naquilo que o Capitão nos conta e que eu, pessoalmente, acredito.

Capitão: Mas eu quero as minhas calças, as minhas riquinhas calças novas! Não quero, e não posso, nem devo, passar a noite em cuecas. Ai, a minha reputação!

Coronel: Estou plenamente de acordo com aquilo que o Capitão diz, o que nem sempre acontece. Por isso, digamos que estou de acordo com ele, pelo menos, momentaneamente.

Sargento: Caro Capitão, conte-nos cá como é que os Fantasmas lhe tiraram o martelo de orelhas... Eles devem ser muito atrevidos, não são? Para lhe fazerem uma patifaria dessas.

Capitão: É simples. Subi as escadas que vão dar ao sótão e, quando já me encontrava lá em cima, empurraram-me e tiraram-me o martelo. Eu ainda resisti, e olhem, tenho esta mão toda esfolada...

Alferes: E com isto tudo, não conseguiu encontrar as suas riquinhas calças novas, como você diz!

Capitão: Pois é como diz, não as encontrei, não... Mas eu quero as minhas calças, as minhas riquinhas calças!... As minhas calcinhas!

Coronel: Meus caros amigos e convivas, escutem com muita atenção: esta estranha situação exige da nossa parte, uma acção activa e decidida, pois nesta casa, que por sinal é minha, estão a acontecer coisas muito estranhas. Assim, proponho que todos nós, homens valentes e destemidos, vamo-nos armar com unhas e dentes, para que possamos combater o nosso perigosíssimo e comum inimigo: os Fantasmas!

Augusta: Que horror, homem! Tu és um grande exagerado. Por favor, nem tentes matar nenhum Fantasma. Olha que eles são muito perigosos...

Coronel: Mulher! Lamento muito, mas o teu pedido não poderá ser aceite, pois, a partir deste momento, decreto aqui em casa, a Lei Marcial!

Capitão: Meu caro Coronel, decrete o que entender, mas por favor, não se esqueça que eu quero as minhas calças... As minhas riquinhas calças. Isto que fizeram comigo é uma grande indignidade!

Coronel: Meu caro Capitão, o desaparecimento das suas calças, pertencem já a um conjunto de circunstâncias. Não vamos, nem podemos, individualizar a questão!

Alferes: Muito bem, muito bem... Apoiado, apoiado... Uma grande salva de palmas ao nosso caro Coronel!

Sargento: Assim é que eu gosto de ouvir. Vamos já planear uma forte acção militar, contra todos os Fantasmas, Fantasmazinhos e seus similares!

Coronel: E assim, chegou a hora da ação, neste glorioso dia em que vamos libertar o Mundo de Fantasmas. Este bacamarte, do glorioso tempo das Invasões Francesas, carrega-se pela boca. E oxalá que o tiro não saia pela culatra... É para si, Alferes. Utilize bem esta nobre arma, nesta guerra sem quartel, contra todos os Fantasmas de todo o Mundo, e sobretudo, os cá de casa!

Alferes: Comovidamente, aceito esta nobre arma e quero agradecer a honra que me deu. Contra os Fantasmas, lutar, lutar até à morte!

Coronel: Esta pistola, das Campanhas Africanas do tempo de D. Carlos Iº, é aqui para o caro amigo e senhor Sargento. Para disparar, basta premir o gatilho. Não se esqueça de matar todos os Fantasmas possíveis e até os impossíveis!

Sargento: Caro Coronel, uma pistola nesta guerra implacável contra um inimigo tão perigoso e tão poderoso, como são os Fantasmas, será uma arma, quase insignificante. Praticamente obsoleta!

Coronel: Meu caro Sargento, faço-lhe notar que em tempo de guerra, não se olha a armas. Um bom soldado, quando é mesmo bom, nem precisa de armas, pois só a sua figura consegue atemorizar o inimigo! Esta nobre espada, ou melhor, esta gloriosa espada, será usada pelo comandante do pelotão, que neste caso serei eu. Se por acaso eu morrer nesta gloriosa missão, quero que esta espada me acompanhe na mortalha, bem junto ao meu frio e mutilado corpo!

Alferes: O que quer dizer que o Coronel, mesmo depois de morto, pensa continuar a combater os Fantasmas! É, e não me envergonho de o dizer, um verdadeiro herói do nosso tempo!

Coronel: Assim será, meu caro Alferes. Um soldado, mesmo depois de morto, deverá ainda valer por quatro... Vivos!

Capitão: E mais uma vez, os meus amigos estão a esquecer-se de mim. Eu quero as minhas calças - as minhas riquinhas calças... Isto é uma indignidade!

Coronel: Vamos já tratar de si, ou melhor, vamos dar-lhe uma arma. Caro Capitão, tome lá esta catana (grande facalhão) da Guerra Colonial. Mas tome bem atenção ao que vai fazer com ela: procure matar só Fantasmas.

Alferes: Sr. Coronel, o pelotão já está formado. Queira fazer o favor de passar revista às tropas.

Coronel: Agradeço, mas recuso tal honra, pois, em tempo de guerra, não se deve passar revista às tropas! Soldados, não se esqueçam que nós fazemos parte dos melhores soldados do Mundo. Por isso, a nossa missão terá de ser um enorme êxito. Soldados! Vamos a eles, aos Fantasmas, como "tarzões", perdão, como comilões. Pelotão, em frente, marche... esquerdo...direito...opp...esquerdo...direito...opp...opp...

E o pelotão sai do salão a marchar. Passados poucos minutos…

Carmo: Dona Augusta, Dona Augusta, o Sr. Coronel e o seu pelotão, estão a regressar ao salão!

Augusta: Vamos a ver quantos Fantasmas conseguiram eles caçar...

Coronel: E assim, depois de uma grande sortida contra o inimigo, o nosso glorioso pelotão regressa à sua unidade. Alferes, o pelotão teve baixas?

Alferes: Saiba o meu Coronel que o pelotão não teve nenhuma baixa mortal nem sequer feridos.

Coronel: Soldados, direita volver - destroçar... Mas agora reparo: estamos às escuras, porque será? Ó Augusta, quem é que teve a infeliz ideia de tirar as lâmpadas dos candeeiros do salão?

Augusta: Não sei, homem, pois estou aqui no quarto, mas vou já sair.

Coronel: Sai depressa, e vem cá dizer-me quem é que se atreveu a tirar as lâmpadas dos candeeiros. Quando o pelotão saiu em missão, tive o cuidado de deixar as lâmpadas acesas para o nosso regresso, e agora está tudo às escuras!

Augusta: Olá, querido maridinho. Então os candeeiros não têm lâmpadas? Não sei, nem calculo quem as possa ter tirado... Não compreendo.

Coronel: Este candeeiro aqui ainda tem lâmpada. Também é o único...

Alferes: O que quer dizer que o inimigo atacou pela retaguarda. Cobardes!

Capitão: Mas eu quero as minhas calças... As minhas riquinhas calças novas!... Isto é uma indignidade... eu sou um Capitão!

Sargento: Tenho a sensação que falta aqui qualquer coisa... Já sei o que falta: onde é que está o baralho de cartas, assim como as nossas carteiras e porta-moedas? As nossas canetas, etc., que ficaram em cima desta mesa?

Coronel: Tem toda a razão, meu caro Sargento: quem roubou todas estas coisas? Mistério...

Alferes: Isto é uma prova evidente que, enquanto andávamos em missão, o inimigo, traiçoeiramente, atacou e roubou os nossos pertences!

Capitão: Eu só gostava de saber quem é que se atreveu a roubar as minhas calças... As minhas queridinhas calças novas...

Coronel: O Alferes ainda tem dúvidas de quem foi? Ainda não compreendeu que foram os Fantasmas? Os malditos Fantasmas!

Capitão: Isto é inacreditável!... Além das minhas queridas calcinhas, também me roubaram a minha caneta de ouro! Aonde é que isto vai parar? E eu que tinha tantas e tão boas recordações daquela caneta de ouro…

Alferes: Lamento muito, pois a caneta devia ser muito valiosa e, pelo que me diz, também de muita estimação. Permite-me uma pergunta indiscreta, meu caro Capitão, por acaso, a caneta foi alguma oferta especial que lhe fizeram?

Capitão: Sim, uma recordação da minha querida sogra.

A criada entra novamente de rompante no salão…

Carmo: Senhor Coronel!... Dona Augusta!... Ai que desgraça a minha... Acudam-me, acudam-me! Ai que vou desmaiar…

Augusta: Mas o que é que te aconteceu desta vez, Carmo?

Carmo: Fui roubada, minha senhora... Fui roubada... Que desgraça a minha!

Coronel: Mas... Foste roubada, como?

Carmo: Depois dos senhores terem descido do sótão, aproveitei e fui lá acima ao meu quarto. Qual o meu espanto quando vi que a minha mala tinha sido arrombada, e todos os valores que eu tinha dentro, roubados. Ai, ai que desgraça a minha, malditos Fantasmas!

Augusta: Carmo, diz-nos o que te roubaram.

Carmo: Ai, minha senhora, tiraram-me mais de setecentos euros que eu tinha no fundo da mala, assim como um fio e uma pulseira em ouro.

Augusta: Pois é, pois é... Então, mais de setecentos euros, mais o ouro... tudo somado, nem chega a metade para os dez mil e quinhentos euros…

Coronel: Olha lá, mulher, que conversa vem a ser essa de faltar "mais que metade"...

Augusta: Metade?! Eu disse metade? Ah! Já sei, mas não faças caso. Como deves calcular, ando muito nervosa com este caso dos Fantasmas cá em casa. É da minha cabeça!

Coronel: Mas tu falaste em “menos de metade”, e eu quero saber o que é "menos de metade" de quê. Confesso que já estou a achar isto muito estranho.

Augusta: Talvez eu quisesse referir-me a menos de metade... a cinquenta por cento... Do, do dinheiro e do ouro que roubaram à Carmo. Sei lá, quando uma pessoa está muito nervosa, não sabe muito bem o que faz e o que diz... Por favor, maridinho, tenta compreender.

Capitão: Mas eu quero as minhas calças... As minhas riquíssimas calças e a minha caneta... Isto é uma indignidade e uma desonra para quem se preze de ser Capitão.

Carmo: E eu quero de volta os meus ricos mais de setecentos euros, mais o fio e a pulseira em ouro!

Coronel: Camaradas de armas, temos de organizar outra expedição contra os Fantasmas. Pelotão, vamos formar na sala!

Alferes: Caros companheiros de armas, com certeza que ouviram o nosso comandante. Todos aos vossos lugares, todos em sentido, barrigas para dentro, peitos para fora, as orelhas e os olhos bem atentos, pois vamos partir novamente para outra importante missão de emergência, de capital importância para a nossa grande cruzada contra os Fantasmas!

Coronel: Como todos já verificámos, a situação terá de ser considerada de catastrófica e local. O inimigo não está a aceitar uma luta leal, uma luta frontal... Por isso, é um cobarde!

Sargento: O meu aplauso. Muito bem, muito bem! Queira continuar, meu Coronel.

Coronel: O nosso inimigo prefere a guerrilha, o que nos obriga a uma guerra total, sem quartel, sem local determinado e sem hora certa de atacar. O que deve merecer o nosso mais veemente repúdio.

Todos aplaudem e assobiam ao mesmo tempo ...

Coronel: Eu, como vosso Comandante, estou disposto a aceitar todas as vossas sugestões. Quem quer começar? Mas, claro, só boas sugestões...

Carmo: Eu, por mim, vou para a cozinha fazer um delicioso bolo...

Alferes: E neste momento tão grave para a Humanidade, com ataques sucessivos, cruéis e cobardes dos Fantasmas, meus caros companheiros de armas, a Carmo, a criada, só pensa em ir para a cozinha fazer ou cozinhar, um delicioso bolo. Só por esta atitude, podemos imaginar o que são as mulheres!

Coronel: A sorte delas (mulheres) é a nossa Lei Marcial as poupar, senão...

Alferes: Depois deste gravíssimo incidente, vamos então ao que nos interessa mais. A minha sugestão é esta: dinamitar toda esta casa, para assim podermos acabar com estes Fantasmas!

Coronel: Alto lá, alto lá! O meu caro companheiro de armas quer dinamitar a minha casa?! Você não deve estar é bom da cabecinha!

Sargento: Eu também estou de acordo com o nosso caro Coronel. Devem existir outros processos, por ventura mais eficientes e menos violentos, como por exemplo: insecticidas em spray...

Coronel: Insecticidas?! Só se os Fantasmas fossem insectos, o que não acredito, sinceramente. Mas, em todo o caso, será um caso a considerar. Mas tudo será preferível ao dinamitar a minha casa. E você, meu caro Capitão, diga-nos também a sua opinião.

Capitão: Como sabem, eu sou uma pessoa muito ponderada, e como não tenho aqui o meu staff... Mas sou uma pessoa muito ponderada.

Sargento: Sim, muito ponderado e muito apreciador de whisky!

Capitão: Meu caro Sargento, aconselho-o que tenha boa educação e que se deixe de insinuações, impróprias de uma pessoa da sua categoria. Mas, voltando aos Fantasmas, em minha opinião, nem oito nem oitenta... O que quer dizer que não estou de acordo em dinamitar esta casa e, muito menos em utilizar insecticida, pois considero-o uma arma perigosíssima, pela sua química, e proibida pela Convenção de Genebra, pois, eventualmente, poderia causar efeitos devastadores nos próprios Fantasmas. Para mim, a situação mais viável ainda seria a de demolir este andar! Mas acima de tudo, o que mais me interessa são as minhas calças... As minhas riquíssimas calças. O que eu estou a passar, é uma situação indigna.

Coronel: Com todo o respeito, você deve de estar é maluco! O quê? Demolir o meu andar? Nem pensar!

Alferes: Pois é, se o Sr. Capitão não aceita as nossas sugestões, diga-nos então como é que podemos resolver este problema dos Fantasmas. Criticar é sempre mais fácil do que fazer.

Capitão: E, com isto tudo, estou a ver que ninguém pensa no meu problema, e eu não posso ficar toda a noite p'ra aqui em cuecas. Eu quero as minhas calças novas... As minhas riquíssimas calças, mais a minha caneta. Isto que me está a acontecer, é uma desonra para qualquer Capitão que se preze.

Carmo: E não se esqueçam que eu também quero o meu rico dinheiro e o ouro. A propósito, quando os senhores foram lá acima ao sótão, por acaso, não notaram nada de estranho no meu quarto? Como se devem recordar, vocês foram os últimos a entrar no meu quarto…

Coronel: Mulher! Cala-te, não estejas p'ra aí a insinuar nada - ouviste? Pelotão, vamos reunir mais uma vez. Formar...

Alferes: Companheiros de armas, mais uma vez, sentido... Barriguinhas p’ra dentro, assim estão bem... Agora, prestem muita atenção ao que o nosso comandante nos vai dizer. Comandante, assim que o entender, pode começar.

Coronel: A acusação que a criada, a Carmo, nos fez, é muito grave, pois o nosso glorioso pelotão, passou durante a sua última missão, por um local onde foi praticado um furto. A nossa honra exige um reparo!

Alferes: Agora, confesso que não compreendi nada do que foi aqui dito. Caro comandante, que conversa vem a ser essa?

Sargento: Eu também não estou a gostar nada disto, pois, segundo me lembro, nunca roubei nada a ninguém, ou, pelo menos, ainda ninguém se queixou.

Capitão: Eu, pelo menos descaradamente, também nunca roubei nada a ninguém. Ai a minha vida... Eu só quero as minhas calças e a caneta de ouro. Que indignidade eu estar p'ra aqui nesta lamentável figura. E eu, um Capitão!

Coronel: Silêncio! Vamos fazer uma revista ao nosso equipamento, para ver se encontramos do que a Carmo nos pretende acusar. Armas no chão... Camisas de fora... Bolsos para fora... Calças para baixo...

Capitão: Mas, caro Coronel, como é que eu posso tirar as calças? Está bem, só se for as cuecas...

Coronel: Se não tem calças, como é óbvio, não as pode deitar a baixo. Alto lá, alto lá, já lhe disse que não era preciso tirar as cuecas, para mais, hoje já vimos muita miséria!

Carmo: Senhor Coronel, que fique muito bem claro que eu não desconfio de ninguém em particular, nem sequer do seu pelotão.

Coronel: Sendo assim, dou o inquérito por concluído. A honra do nosso glorioso pelotão, mais uma vez, ficou imaculada! Pelotão, calças p'ra cima... bolsos para dentro... vestir camisas... apertar cintos... agarrar nas armas... descansar... Destroçar!

Alferes: Então, agora vamos trabalhar num plano de ataque aos famigerados Fantasmas?

Coronel: Pois vamos. Como já verificámos, precisamos de reforços, pois, embora a nossa acção até a este momento possa ser considerada de muito positiva, e até heróica, temos de admitir que não temos efectivos para controlar todas as zonas infestadas pelo nosso perigoso e traiçoeiro inimigo: os Fantasmas!

Sargento: Estou plenamente de acordo. Por mim, até pedia auxílio aos pára-quedistas...

Coronel: Pára-quedistas? Para quê?

Sargento: Então os Fantasmas não andam por cima de nós, no sótão?

Alferes: Eu antes pedia auxílio à aviação, mas pensando melhor, talvez optasse em pedir auxílio a uma escola de Karaté. Como eles treinam "sombra", bem podiam acertar nos Fantasmas. Assim: zás... catrapás... zás...

Sargento: Olhe lá, cuidadinho com esses calcanhares no ar, meu caro Alferes!

Alferes: Sim, talvez o Karaté desse resultado...

A criada entra no salão toda eufórica ...

Carmo: Meus senhores, quero dizer-vos que já terminei!

Coronel: Mas... mas o que é que já terminaste, Carmo?

Alferes: Não me digas que conseguiste apanhar algum Fantasma...

Sargento: Confesso que também estou muito curioso por saber o que é que a Carmo terminou.

Carmo: Tenham calma. Não, não apanhei nenhum Fantasma. Só terminei de fazer um bolo. Um delicioso bolo de ananás.

Coronel: Oh, sua tolinha, então é com bolos que tu queres apanhar os Fantasmas! Tem mas é juizinho nessa cabeça, pois já tens idade para isso. E para já, ficas terminantemente proibida de interromperes reuniões, só para dizeres parvoíces, em que nós, os Homens, estamos a planear a melhor maneira de podermos salvar a Humanidade, dessa praga imunda que são os Fantasmas!

Capitão: Muito bem, muito bem, caro Coronel!

Coronel: Por favor, ninguém me interrompa. Mas, continuando: para que isso possa acontecer, será necessário derrotar todos os Fantasmas que existam na Terra e, principalmente, os que estão cá em casa!

Capitão: Com essa conversa toda, por favor, não se esqueçam das minhas calças, das minhas riquíssimas calças novas, e também da minha caneta de ouro. Isto é uma grande indignidade para um Capitão que se preze. Isto de ter que andar em cuecas…

Alferes: Companheiros de armas, temos de chegar a um consenso generalizado, para combinarmos qual será a estratégia ideal, que leve à completa e total destruição de todos os Fantasmas!

Sargento: Para já, proponho que não façamos prisioneiros.

Coronel: Como ficou amplamente demonstrado, para operarmos uma acção eficaz contra o inimigo, precisamos de mais efectivos.

Capitão: Então, não hesite, caro Coronel. Arranje efectivos, porque eu quero de volta as minhas calças, as minhas riquinhas calças novas e a caneta de ouro. Que indignação para um Capitão…

Coronel: Como devem calcular, estou a ponderar muito bem todas as vossas sugestões. A eventual vinda de reforços, poderá determinar a mudança de comando e, como devem calcular, não convém que a minha casa possa ser considerada zona militarizada.

Sargento: Estou a compreender perfeitamente o Coronel. Em nossas casas, quem deve mandar e comandar devemos ser sempre nós!

Capitão: Eu também compreendo muito bem os receios do Coronel. Mas eu quero, eu quero as minhas calças novas. Que indignação para um Capitão...

Alferes: Então, o que é que o caro Coronel sugere?

Coronel: Entre várias hipóteses, estou a pensar em dividir a casa em vários sectores, utilizando para o efeito, arame farpado.

Capitão: A ideia poderá não ser má de todo. Mas se os Fantasmas passarem por baixo do arame farpado, lá se vão as minhas ricas calcinhas!

Sargento: Temos de concordar que o Capitão não pode andar toda a noite em cuecas.

Coronel: Caros companheiros de armas, por favor, deixem-me continuar...

Alferes: Continue, continue caro Coronel, que nós até gostamos de o ouvir!

Coronel: Depois da colocação do arame farpado, podíamos acender várias fogueiras, na tentativa de que o fumo intoxique o inimigo.

Sargento: Mas antes de acenderem as fogueiras, aconselho-vos a apreciar este belo cheirinho que vem dos lados da cozinha.

Alferes: Tem razão, caro Sargento. O cheirinho do bolo que a Carmo está a fazer já chega aqui, e não engana ninguém: é um bolo de ananás!

Sargento: Estou cá a pensar numa coisa: e se os Fantasmas também roubassem este bolo?

Alferes: Tem toda a razão, pois até os Fantasmas podem gostar de bolo de ananás. Talvez fosse conveniente avisar a Carmo.

Coronel: Vou já avisá-la. - Carmo, estás a ouvir? Olha, desta vez toma o devido cuidado e não deixes que os Fantasmas roubem também esse bolo, que deve estar uma delícia!

Carmo: Os senhores estão a falar comigo? Eu já vou aí.

Coronel: Claro que estávamos a falar contigo. Olha lá, repito: desta vez não deixes que os Fantasmas roubem esse bolo!

Augusta: Tive uma ideia: talvez fosse melhor trazeres o bolo para a sala, pois se o deixares na cozinha, ainda o podem roubar, e assim nunca mais se vão embora.

A criada entra no salão e pede a todos os presentes que falem baixinho (chiuuuu)...

Carmo: Oxalá que os Fantasmas desta vez o roubem e o comam!
Augusta: Não te compreendo, Carmo. Deixa-te mas é de brincadeiras e traz o bolo para aqui.

Alferes: A Dona Augusta tem muita razão, o bolo deve vir para aqui. Talvez depois de o comermos, possamos pensar na melhor estratégia a seguir, para acabarmos de uma vez por todas com esses malfadados Fantasmas.

Sargento: Apoiado, apoiado. Venha lá depressa esse bolo para aqui.

Entretanto, a criada entra novamente no salão, e...

Carmo: Meus senhores, dão-me licença que entre e que fale?

Coronel: Olha, Carmo, tu estás a tornar-te muito chatinha. Mas... mas não nos venhas dizer que... que…

Carmo: Sim, venho solenemente comunicar-vos que o bolo de ananás DESAPARECEU!!!

Coronel: É impossível, impossível!... Desta vez não vou aceitar o facto como consumado. Desta vez, vou deitar tudo abaixo... Tudo abaixo!

Sargento: A Carmo deve estar enganada, ou então está a brincar…

Alferes: Isto é demais! Até parece um sonho mau, um pesadelo.

Carmo: Pois é, meus senhores, a partir deste momento, eu, a Carmo, criada às vossas ordens, é que vou resolver o caso dos Fantasmas cá em casa do Sr. Coronel!

Coronel: Tu não deves é estar boa da cabeça!

Alferes: Estou mesmo a ver que o teu nobre desejo era pertenceres ao nosso glorioso pelotão, mas...

Coronel: Protesto veementemente, pois o nosso pelotão não pode, de maneira nenhuma, ser constituído também por mulheres. O pelotão não é uma brigada mista... Mulheres, já p'ra cozinha... Mulheres, já p'ra a cozinha!

Carmo: Por favor, prestem muita atenção. Como já vos disse, sou eu quem vai resolver este problema dos Fantasmas, mesmo sem ter a honra de pertencer ao vosso glorioso pelotão.

Coronel: Nem posso acreditar no que estou a ouvir. Mas então, conta-nos lá como é que pensas que vais resolver este importante caso?

Carmo:  Para já, não vai ser preciso empreender nenhuma acção bélica.

Alferes: Pelos vistos, a Carmo quer dizer que a exterminação dos Fantasmas não passa por acções bélicas, mas sim, por acções políticas?

Carmo: De políticas é coisa que eu não percebo nada, mas também não importa.

Coronel: Carmo, já estou a perder a paciência. De uma vez por todas, diz-nos quais foram as acções que levaste a cabo.

Carmo: Digamos que fiz... uma acção de psicologia feminina.

Alferes: Atenção, atenção meus senhores! A Carmo descobriu uma nova fórmula para caçar Fantasmas. Imaginem só que para os caçar, basta aplicar um pouco de psicologia feminina!

Coronel: Esperem, não sei bem porquê, mas começo a estar quase de acordo com a Carmo. Sendo assim, o nosso glorioso pelotão poderá ficar ainda mais valorizado, se conseguirmos recrutar um elemento para a Psico. Por isso, vou convidar a Carmo.

Carmo: E eu terei muito prazer em aceitar essa missão!

Coronel: Sendo assim, companheiros de armas, a partir deste momento, tem a palavra a nossa novel, valente e destemida, Carmo!

Sargento: Apoiado, apoiado! Vivá  Carmo - a criada!

Carmo: Muito obrigado, muito obrigado a todos! Como é do conhecimento geral, e resumindo, eu fiz um bolo de ananás, que por acaso devia estar delicioso, mas que desapareceu...

Alferes: Ai que pena, até estou a ficar com água na boca.

Carmo: Mas, enfim, desapareceu...

Sargento: E, possivelmente, desapareceu nas bocas imundas de uns quaisquer Fantasmas!

Carmo: Mas... há sempre um “mas”. Ao amassar a massa do dito cujo bolo, adicionei uma certa porção de um produto que serve para exterminar ratos. Assim, os Fantasmas ao ingerirem o bolo, também ingeriram a tal porção de raticida. E agora, vamos esperar.

Coronel: Queres então dizer que...

Alferes: Os Fantasmas...

Capitão: Vão morrer...

Coronel: Envenenados?

Carmo: Mas, atenção... Desde já quero que fique muito bem esclarecido que eu não envenenei ninguém. Nem mesmo os Fantasmas. Limitei-me só a pôr uma certa porção de raticida num bolo de ananás. Nada mais...

Coronel: Podes estar descansada e em paz com a tua consciência, pois, somos todos testemunhas do que aconteceu. Se os Fantasmas estiverem envenenados, a culpa foi deles (só deles), pois não tinham o direito de comer o bolo de ananás, feito com todo o amor e competência, aqui pela Carmo... A nossa companheira de armas!

Alferes: Mas agora temos um grande problema: como é que vamos saber se os tais Fantasmas comeram ou não o bolo de ananás? Para mais, eles devem ser transparentes.

Capitão: Eu só quero saber das minhas calças, das minhas riquíssimas calças novas, e também da caneta de ouro. Que indignidades fizeram a um Capitão como eu!

Sargento: Se os Fantasmas morrerem, com certeza que devem começar a cheirar mal; mas como o Alferes diz, e com muita razão, eles devem ser transparentes. E sendo assim, como é que os podemos ver? Talvez através de uns óculos escuros. Bem, é só uma ideia...

Sargento: E depois, como é que os podemos deitar fora? Vocês ainda não pensaram nesse problema?

Capitão: E ninguém fala nas minhas queridas calcinhas, ninguém se importa de eu andar para aqui em cuecas; nunca, nunca hei-de perdoar aos Fantasmas, pois o que eles fizeram a um Capitão importante como eu, é indigno, é indigno. E se as calças também se tornaram transparentes? Ai, ai, que eu nem quero pensar nessa possibilidade; as minhas riquinhas calças!...

Carmo: Meus senhores, a título de curiosidade, vou ler-vos o que está aqui escrito na embalagem do raticida: "Perigo de Morte" - "Este produto é altamente tóxico. Em caso de ingestão, deve o acidentado ser transportado urgentemente à morgue mais próxima, pois o corpo começa logo a decompor-se"...

Coronel: Sendo assim, os Fantasmas já devem estar completamente mortos... E talvez, até bem mortos. Já me estou a arrepiar todo!

A porta do salão abre-se abruptamente e entra um homem e depois outro, ambos encapuzados, cambaleando, antes de caírem inimados no chão…

1º Encapuzado - Ai, ai... ai o meu rico estômago... Ai, que eu vou morrer... Mataram-me… Socorro… socor…

2º Encapuzado - Ai, ai, ai a minha barriguinha... Ai que vou rebentar... Socorro! Assassinos… assas…

Esta entrada e a posterior morte dos embuçados, deixou todos estupefactos. Valentes como eles eram, depressa reagiram…

Coronel: Mas ... Mas quem são estes homens que invadiram a minha casa e estão mortos (pelo menos aparentemente)?

Alferes: Oh, caro Coronel, não me diga que não sabe quem são?

Sargento: O Sr. Coronel nem calcula quem são?!

Coronel: Não sei se me vou enganar, mas serão os Fantasmas?

Capitão: Fantasmas ou não, este aqui tem as minhas riquinhas calças novas. Vá, meu "menino" dá-me cá as calças; meu malandro, pois um Capitão como eu, nunca poderá andar p'ra aqui em cuecas. Dá cá as minhas calcinhas... upa... upa…upa... Custaram a sair, mas já cá estão nas minhas mãos! Estão muito sujas e amarrotadas, mas já são minhas novamente!

Augusta: Olha lá, Carmo, o que é que estás aí a procurar nesse sítio?

Carmo: Não se aflija, minha senhora, pois eu só estou a procurar o que é meu, ou seja, o dinheiro e o ouro. Para mais, eles já estão tão geladinhos…

Augusta: Ó Carmo, mas aí, nesse sítio?

Carmo: Sim, sim, minha senhora! Neste sítio é onde se encontram as minhas coisas. Olhe, está a ver, minha senhora? Neste saquinho de plástico estão os setecentos euros e naquele Fantasma ali ao lado já encontrei o meu fio e a minha pulseira. Como vê, Dona Augusta, eu fui logo ao sítio certo, enquanto a senhora só olhou…

Augusta: Carmo, como estás com a mão na massa, aproveita e vê se eles têm mais alguma coisa?

Carmo: Lá ter, têm, minha senhora, mas...

Augusta: Então, diz-me cá o que é que encontraste mais!

Carmo: O que os homens têm, ou melhor, deviam ter, mas estes já nem com uma lupa se pode ver qualquer coisa!

Augusta: Oh, oh, oh, que disparates estás para aí a dizer?

Carmo: Olhe, minha senhora, este aqui até tem umas fotografias, digamos, muito indecentes. A D. Augusta está interessada em vê-las?

Augusta: Estou sim, Carmo. Dá-mas cá, porque eu sempre gostei muito de ficar com velhas “recordações”.

Coronel: E onde está o baralho de cartas que também estava em cima da mesa?

Alferes - E também aonde estão a minha carteira, chaves do carro e o meu porta-moedas?

Sargento: E o meu bloco de notas, por acaso, também está por aí?

Carmo: Sim, sim, está tudo aqui. Os senhores também querem ver? Estejam à vontade.

Coronel: Não, não merece a pena, pois todos nós acreditamos em ti!

Alferes: A Carmo pode trazer tudo o que encontrou, para cima desta mesa.

Carmo: Tudo?! Ó companheiros de armas, o melhor é vocês virem cá buscar o que vos mais interessa, porque eu, mesmo sem querer, posso exagerar!

Coronel: Companheiros de armas! A nossa querida colega do "Psico", que conseguiu resolver, e muito bem, este caso que derrotou completamente o inimigo comum, ou seja os Fantasmas, pelo facto e pelos relevantes serviços prestados à nossa comunidade, bem merece que lhe prestemos uma guarda de honra!

Alferes: Muito bem, muito bem. Como estamos todos completamente de acordo, vamos a isso: Pelotão!... Formar... Sentido!... Essas barriguinhas para dentro e peito para fora. Meu comandante, estamos às suas ordens!

Coronel: É p'ra já. Companheira de armas, queira fazer o favor de passar revista ao nosso glorioso pelotão!

Carmo: Muito bem... Muito bem... Muito... Olhe lá, senhor Capitão, pode dizer-me o que faz na formatura, com as calças na mão esquerda e a catana na mão direita?

Capitão: Perdão, perdão... É que perdi as calças e ainda não tive tempo de as voltar a vestir... Além disso, estão muito sujas...

Carmo - Ah, é isso? Então, saia imediatamente da formatura... Imediatamente, não ouviu? Depois de bem lavado e bem ataviado, apresente-se na cozinha. E p'ra já, conte com algumas guardas de castigo à porta deste salão. Senhor Comandante Ramalho, já passei revista ao nosso glorioso pelotão. Agora, vou para a cozinha  fazer o jantar: para os homens, vou fazer uma feijoada e para a sobremesa, um pudim de pinhões. Para mim e para a D. Augusta, vou fazer uma dobrada com uma sobremesa de torta de maçã!

Coronel: Carmo, nossa companheira de armas, antes de ir para a cozinha, queira fazer o favor de nos dizer o que é que vamos fazer aos corpos dos inimigos?

Carmo: O que é habitual fazer nestas situações: pô-los em vala comum, com a indicação “Desaparecido em combate”.

Coronel: Muito bem! As suas ordens serão rigorosamente cumpridas. Pelotão, em frente  marche... um... dois... esquerdo... direito... esquerdo... direito... opp... opp... opp ...

Carmo: Pare, pare aí com essa marcha. Ordeno e mando publicar, na Ordem de Serviço do Dia, que de ora avante, não serei mais a Carmo.

Passarei a CARMINHO!!!

Siga a marcha…

F I M

Nota: Trabalho de ficção: qualquer situação ou personagem é pura invenção.

Texto de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande - Portugal