terça-feira, 31 de março de 2020

Varal de Trovas n. 225


João Batista Leonardo (Um Sábio Disse)


Intrigante conotação nos seres vivos, num mundo mutante onde a analogia se faz marcante, junto ao nascimento, vivência, morte e continuidade. A terra é viva e todos nós vivos fazemos parte do seu ciclo, intrínsecos nos seus desígnios e embrenhados numa correlação, certamente intrigante e interessante à análise.

Um sábio disse, somos iguais a árvore. Temos um princípio no acaso, uma presente vivência e um mesmo fim. As árvores têm raízes fincadas no chão, fundas ou rasas, absorvendo de acordo com o solo abrangente a qualidade dos nutrientes, alimentando e fixando, tanto as resistentes, frondosas ou franzinas. Semelhante a ela, temos raízes fincadas no solo da abrangência luminosa de nossa gema firmamento, onde estão os valores, conceitos e fraquezas; ali nos sustentamos e sugamos os nutrientes físicos e emocionais, forças mantenedoras da continuidade. Quanto mais rico for nosso solo, nossa gema firmamento, tanto mais forte será nossa árvore.

Assim como ela, temos o tronco, variando de tamanho dependendo da árvore praticada. É a parte mais resistente, com ele nos colocamos de pé, resistimos aos ventos, temporais e percalços da vida, produzimos, sustentamos e alimentamos os galhos.

Os galhos são nossos dependentes familiares, profissionais e materiais. Podem ser mais ou menos fortes de acordo com a qualidade dos tempos vividos. Conceito firmado, na formação da família, no valor econômico conseguido, na reputação profissional, primando o mérito na comunidade evidenciado no equilíbrio participativo.

Dos galhos vem a ramagem contendo nossas flores, frutos, sementes e folhas. As flores representam nossas belezas, qualidades, prazeres e o festejo da formação dos frutos. Tanto mais flores, tanto mais frutos, tanto mais belas flores, tanto melhores frutos. Os frutos nos qualificam como produtores, são os resultados da participação efetiva dentro das deliberações tomadas, são os resultados das determinações do arbítrio, são o quinhão de julgamentos. Como na árvore, nossas sementes produzirão descendentes, filhos e netos, firmando nossa continuidade genética.

As folhas nas árvores refletem sua higidez e têm função de relação com o mundo. Nossas folhas mostram nossa aparência e a relação com pessoas, conhecidos, amigos e profissionais. São as que dão o colorido variado nas árvores porque mudam e são mais abundantes. Como na árvore nossas folhas podem ser pessoas novas, velhas, sadias, doentes, bonitas, feias, boas, más, viçosas e secas. Na árvore as folhas são benéficas, passam, envelhecem, caem viram adubo e fortificam o solo.

Assim também as pessoas passam, as amizades acabam, os conhecidos e profissionais desaparecem, porém sempre deixam o adubo de algum ensinamento, fortificando e enriquecendo nosso solo. "A vida seria muito mais produtiva se pudéssemos nascer com a idade de oitenta anos e gradativamente nos aproximar dos dezoito" (Mark Twain - do livro "Life on the Mississipi").

Nem toda árvore floresce e frutifica e nem por isso perde méritos. Vale aqui o pensamento de Henfil, no livro Diretas Já: "Na árvore, se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente". Analogamente, tantas pessoas não florescem, não frutificam, não colhem as oportunidades, são dependentes, pendurados na sociedade e carentes; no entanto, têm valor, prestam-se em oferecimento aos que desejam servir.

A árvore que propicia sombra, ar fresco, beleza e frutos, um dia morrerá e ficará por tempo de lembrança na carcaça, até que a terra a absorva virando alimento. Como as árvores, também morremos e nossas raízes, tronco, galhos, ramagem, flores, frutos e folhas, ficarão por algum tempo na mente daqueles componentes de nossas abrangências.

Árvore e homem, uma analogia intrigante, visto o âmago fisiológico dos seres vivos, a importância da vida de relação e a dependência entre si, não obstante, a árvore vive na constância da sua espécie: "A árvore que produz um fruto amargo, se for alimentada com guloseimas e doces não mudará sua natureza; produzirá o mesmo fruto amargo, e nele não saboreará nenhuma doçura" (Abu Shakur, poeta). O homem não, desde o mais amargo, o mais rude, quando lhe oferecido a doçura da compreensão, a esperança e oportunidade, se transforma numa pessoa boa e aceitável. A árvore é imutável, tem tempo e ciclo obrigatório. O homem é mutável, tem arbítrio e com ações transforma os tempos; pode nascer num chão pobre, porém no exercício do esforço e agarrando boas oportunidades enriquece o solo e vira árvore frondosa.

Ainda a árvore nasce, vive, morre e acaba, o corpo humano também, porém a magnânima diferença está na presença da alma junto aos homens, é eterna e perpetuará num outro tempo muito mais frutuoso e abrangente.

Fonte:
João Batista Leonardo Os tempos da esperança à razão. Maringá: Gráfica Primavera, 2008.

Antônio Sales (Baú de Trovas)


- A certa moça, na rua
bradei com sinceridade:
- Vossa Excelência é a Verdade!
- Por quê? - Porque está tão nua!
- - - - - –

- A fealdade é um direito;
por isso ninguém a acusa.
Mas ser feia desse jeito...
Perdão: a senhora abusa!
- - - - - –

A opinião severíssima
te condena sem razão:
tu serias fidelíssima
se fosses... mulher de Adão.
- - - - - –

— As cobras que tem no anel,
certo médico alopata,
são, de certo, cascavel:
onde ele põe a mão, mata!
- - - - - –

(A um juiz) 
- A tua venalidade
não tem, neste mundo, a gêmea,
foi uma felicidade
não teres nascido fêmea...
- - - - - –

- E difícil que aconteça
dor de cabeça ela ter:
pode a dor aparecer,   
mas não encontra cabeça...
- - - - - –

— Em certo escritor satírico,
de uma irreverência atroz,
nós achamos muito espírito...
quando não fala de nós.
- - - - - –

- Em tua genealogia
Fidalgo, vais longe... Até
que hás de chegar, algum dia,
ao Congo, Angola ou Guiné...
- - - - - –

Eu conheço um plumitivo*,
cheio de vaidade imensa,
que anda sempre pensativo
e apenas pensa que pensa.
- - - - - –

- "Não gosto de ouvir tolices!" -
exclamas, estomagado;
Para que não as ouvisses,
devias ficar calado.
- - - - - –

- Para que não te despraza**
ver gente má pela frente,
precisas primeiramente
não ter espelhos em casa...
- - - - - –

— Passa na estrada um camelo
e um corcunda palpitante
de alegria, disse ao vê-lo:
- "Mas que animal elegante!"
- - - - - –

- Vi um médico fardado...
Que perfeito matador:
quem escape do soldado,
não escapa do doutor...
________________________________
Notas:
Despraza – do verbo desprazer.
** Plumitivo – escritor ou jornalista sem méritos.


Fonte:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.

Antônio Sales (1868 – 1940)


Antônio Ferreira Sales nasceu em Paracuru/CE, em 1868 e faleceu em Fortaleza/CE, em 1940. foi um romancista e poeta brasileiro que ocupou os cargos de secretário da justiça e do interior no tempo em que General Bezerril governou o estado do Ceará, além de deputado estadual.

É muito lembrado como uma das figuras mais marcantes da literatura cearense por ter fundado a Padaria Espiritual juntamente com Adolfo Caminha, Antônio Bezerra, Lívio Barreto, Henrique Jorge, Juvenal Galeno e vários outros jovens intelectuais que formavam o círculo cultural de Fortaleza do fim do século XIX. A Padaria Espiritual ganhou bastante visibilidade por sua forma irônica e irreverente de criticar a "provincianidade" fortalezense da época em busca de um resgate criativo dos espaços e dos meios de cultura no Ceará, movimento que influenciou a Semana de Arte Moderna . Foi redator do jornal "O Pão", através do qual se divulgavam as ideias da agremiação literária que participava, do qual exerceu o cargo de padeiro-mor. É conhecido também por ser amigo de Machado de Assis e por jamais ter aceitado aos inúmeros convites de compor a, então em fundação, Academia Brasileira de Letras. É o patrono da Academia Cearense de Letras e foi batizado por Rachel de Queiroz como "padrinho e figura suprema das letras no Ceará".

Foi nos cafés da praça do Ferreira que Antônio Sales idealizou a Padaria Espiritual com seus amigos.

Publicou apenas um romance de estética realista regional, com traços também naturalistas, chamado Aves de Arribação, inicialmente publicado em folhetins do Correio da Manhã do Rio de Janeiro onde residia o escritor. Viria a ser publicado em forma de livro apenas em 1913. Substituiu Arthur Azeredo na seção humorística de O País, no Rio. Escreveu, os sonetos humorísticos das Agulhas e Alfinetes, do jornal carioca O Tempo.

Até ser reconhecido como escritor, trabalhou no comércio de Fortaleza com a precoce idade de catorze anos. Anos depois, passaria pela vida de funcionário público, político e jornalista, inclusive no Rio de Janeiro. Mas voltara à capital cearense em 1920, onde vivera até seu falecimento, em 14 de novembro de 1940.

O escritor, amigo de Machado de Assis, ajudara este a fundar a Academia Brasileira de Letras, mas segundo ele, por não discursar bem, não quis dela fazer parte.

Em 1892 fundou um movimento de renascença literária no Ceará chamado de Padaria Espiritual, agremiação que marcou, entre 1892 e 1898, a vida da provinciana capital do Ceará naqueles primeiros dias de República e da qual fizeram parte vários grandes autores cearenses.

A Padaria Espiritual
Antônio Sales foi o responsável por escrever o programa de instalação da Padaria, composta por artigos que definiam o modo e a composição da agremiação.

1 – Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da Terra da Luz, antigo Siará (sic) Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes denominada – Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral”.

2 – A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-mor (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-Livros, na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um investigador das Coisas e das Gentes, que se chamava – Olho de Providência, e os demais amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de – Padeiros.

3 – Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominaram Padeiros-livres. 4 – Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria.

Um dos principais traços da Padaria Espiritual foi o regionalismo marcante. Além de todos os sócios ganharem o título de amassadores ou forneiros, dependendo das funções. Cada um tinha também o pseudônimo que sempre recebia um sobrenome de uma planta ou palavra indígena presentes na cultura cearense. O pseudônimo de Antônio Sales era Moacir Jurema.

Obras
    Versos Diversos, poesias (1890)
    Trovas do Norte, poesias (1895)
    Poesias (1902)
    Minha Terra, poesias (1919)
    Aves de Arribação, romance e novela (1914)

Fontes:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.
Wikipedia

André Kondo (A Máscara)


As tochas incendiavam a coreografia do demônio, que ignorava a santidade do templo às costas. O diabólico rosto parecia flutuar, enquanto o corpo escarlate e branco deslizava em passos firmes, como se a pisar almas. Flautas orquestravam o desfile dos pecados, enquanto tambores marcavam a marcha dos suplícios. Olhares humanos admiravam a entidade de olhos esbugalhados, chifres protuberantes e dentes afiados. O derradeiro passo. Era o fim.

Aplausos. Ensandecidos aplausos.

Nomura abandonou o palco e correu para trás do pano, em que pinheiros de tinta espalhavam seus galhos aprisionados. Seu corpo havia sido possuído pelo demônio. Assustado, retirou a máscara. O bruxulear das tochas que cercavam o palco tomavam a face ainda mais assustadora. Nomura derrubou a máscara, que, do chão, continuava a sorrir.

Estaria enlouquecendo?

Talvez a loucura fosse o preço a pagar. Desde as primeiras performances de Kanami Kiyotsugu e seu filho, Zeami, a arte do teatro Nô nunca havia testemunhado um ator tão talentoso quanto Nomura. Tão talentoso e admirado. Porém, a que preço…

Quando as tochas se apagaram, Nomura buscou refúgio em um tranquilo aposento, nos fundos do templo xintoísta, que em seus rituais originou o Nô.

Despojou-se do peso de sua pomposa pele teatral.

Antes de apagar a lamparina e mergulhar em total escuridão, Nomura se separou da máscara que o consagrara. Depositou-a em uma caixa e a escondeu debaixo do altar do templo. Pensou que, agindo dessa forma, protegido pelos deuses, sobreviveria àquela noite.

Relutante, apagou a luz.

Cricrilar de um grilo próximo. Coaxar de uma rã longínqua. Uma gota pingando na bacia de pedra. Uma folha se desprendendo ao vento... Silêncio.

Nomura sentiu um arrepio. O mundo se calou. Há dez anos, quando ainda não usava máscara, Nomura se equilibrava em meias amarelas e fazia o povo rir, em suas performances de Kyogen, um cômico interlúdio teatral, que havia sido originado para amenizar a austera natureza do teatro Nô. Naquela época, Nomura não gozava de fama; pelo contrário, era motivo de risos entre os espectadores. Em suas atuações, os personagens de Kyogen expõem as tolices e as fraquezas humanas, que todos desejam esconder. Nomura sabia muito bem interpretar esse papel.

Há dez anos, naquela derradeira apresentação cômica, Nomura sentiu-se o mais tolo dos homens. Fazia os outros rirem. E fazia isso sem máscara, vestindo trajes comuns e meias amarelas. Sendo assim, as pessoas riam de sua atuação ou dele próprio? Naquela noite, na primeira fila, Nomura viu a mulher por quem era apaixonado. Ao seu lado, um homem o apontava, dizendo: "Esse é o pior ator que eu já vi em todo o Japão! Esse Nomura não interpreta nada! É apenas um perdedor que finge interpretar um perdedor e um palhaço que finge interpretar um palhaço! Na vida real, ele é muito mais engraçado". Nomura fixou o olhar na garota amada. Ela riu do comentário. Ela riu...

Envergonhado, abandonou o palco sem terminar a apresentação. Fugiu. As risadas se dissipavam com os seus passos que caminhavam para a escuridão. Naquela noite, não quis confraternizar com seus colegas. Não havia o que comemorar. Estava farto de tudo. Caminhou por um longo tempo até embrenhar-se em uma trilha que subia uma montanha coberta de pinheiros. O luar filtrado pelas afiadas folhas bastava para indicar a rota de fuga.

Uma pinha se desprendeu, acertando a cabeça de Nomura. "Maldição!", o grito reverberou por entre os pinheiros, enquanto Nomura apanhava a pinha e a lançava para longe. "Ploc". "O que é isso?".

Ruínas de um antigo templo se arrastavam por entre as árvores. O lintel do portal xintoísta estava ao chão, enquanto as colunas teimavam em se manter de pé, mesmo que em curvados ângulos.

Havia silêncio naquela noite, um silêncio que calava até o som do coração do ator.

Curioso, Nomura explorou o estranho achado. Revirou algumas pedras, levantou madeiras apodrecidas. O que estaria procurando? Não sabia, apenas agia por instinto, como se o destino o tivesse conduzido até ali. "O quê?".

Uma caixa laqueada. Ao contrário de tudo o que havia naquele local, aquela caixa estava muito bem conservada. O altar em que ela estava depositada já havia se esfacelado. Nomura a abriu.

Uma máscara.

Sob a luz do luar, a face do demônio se tomava suave. Mesmo com dentes pontiagudos, o sorriso lhe pareceu simpático. Os olhos esbugalhados vertiam sinceridade. Era o rosto de um demônio, mas era um rosto atraente. Tentador.

"Talvez seja um sinal", Nomura sorriu. "Esta só pode ser uma antiga máscara de teatro Nô. Talvez, uma máscara usada até em rituais xintoístas".

O diabo concordava com Nomura.

"Demônio, quero ser respeitado. Aliás, quero mais... Quero ser admirado! Agora compreendo o que tudo isso significa. Devo tentar novamente, apesar de tantas vezes já ter sido rejeitado, me tornar um respeitável ator de Nô. Com esta máscara, conseguirei!", Nomura ergueu a face do demônio, cujos olhos brilharam. Deitou-a sobre o próprio rosto. Adormeceu entre as ruínas.

"Há um preço a pagar".

"Para ser admirado, aceito qualquer preço".

O demônio sorriu.

***

Nomura despertou, com a máscara sobre o rosto.

Amanhecia.

Assustado, lançou a carranca para longe. "Como?". Na noite anterior, havia colocado a máscara no altar, agora, ela o assombrava em sua face. Olhou á volta. A manhã já invadia as frestas do cômodo.

Havia sobrevivido mais uma noite.

O sacerdote do templo em que Nomura estava hospedado deslizou a porta. Trazia uma bandeja com chá e bolinhos. Olhou para o chão e viu a máscara, com a face voltada para baixo.

— Vejo que já reencontrou seus demônios... Ontem à noite, alguém invadiu o templo — o sacerdote sorriu.

— Perdoe-me, eu estava fora de mim — Nomura envergonhou-se.

— Por que queria se livrar de sua máscara? — perguntou o sacerdote.

— Estou cansado... Desde que a encontrei, não tenho tido paz.

— Curioso — disse o sacerdote, enquanto despejava chá na tigela.

— Estou enlouquecendo... A máscara está me dominando, mal me reconheço no espelho.

— Você não é o único. Neste mundo de aparências, todos vestem máscaras.

Nomura não compreendia.

— Você passou a usar a máscara para impressionar uma garota, não é? — o sacerdote entregou a tigela de chá.

Não houve resposta.

— Como sei? Normalmente, começa assim. Usamos uma máscara para agradar a quem amamos. Certamente, a máscara de um demônio não seria a minha primeira escolha, mas... — o sacerdote balançou a cabeça.

Nomura segurava a tigela, esperando as próximas palavras.

— Pegue um bolinho — o sacerdote ofereceu.

Nomura aceitou, pegando o menor bolinho do prato.

— Por que pegou o bolinho menor? Não queria o maior? — o sacerdote perguntou, pegando o maior de todos.

— Sim, mas peguei o menor, por educação — respondeu Nomura.

— Neste caso, sou mal-educado — o sacerdote gargalhou, cuspindo migalhas entre os dentes.

"Que sacerdote estranho", pensou Nomura.

— Você me acha estranho por não me comportar como um sacerdote, não é?

— Sim.

O sacerdote caminhou até a máscara e a apanhou.

— Isto não passa de um pedaço de madeira. O demônio que teme não está aqui, mas dentro de você.

— Mas foi ela que me deu fama.

— A fama veio de seu talento.

— Não tenho talento. Antes, eu era apenas um ator secundário de Kyogen, um palhaço.

— Naquela época, você não tinha talento?

— Não, pois tudo o que fazia no palco saía naturalmente. Eu não precisava fingir nada e se não precisava fingir, não precisava ter talento para...

— Para mentir? — o sacerdote emendou.

— Aonde quer chegar?

— A questão é: aonde VOCÊ quer chegar?

— Eu...

— Nomura, você não precisa usar uma máscara para que as pessoas gostem de você. No fim, as pessoas acabam se afeiçoando á sua máscara e não ao que está atrás dela. Se quer mesmo ser admirado, seja o que você é de fato. Seja verdadeiro.

— Há muito tempo não sei mais o que é isso. Parece que interpretei a minha vida inteira...

— Para ser feliz, basta ser sincero naquilo que faz — sorriu o sacerdote.

— Ser feliz...

Sim. Ele havia sido feliz. Não precisava de uma sorridente máscara para demonstrar a própria felicidade.

Pouco tempo depois, Nomura subiu ao palco, de meias amarelas. E enquanto toda a plateia ria, Nomura ria junto... de cara limpa.

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Varal de Trovas n. 224


Amilton Maciel Monteiro ("Corona Vírus”)


Há já noventa e um anos na escola da vida,
no entanto, nem por isso sinto-me formado,
ou pronto para a prova que será sofrida
a quem jamais cuidou de preparo adequado...

Perdoa-me Senhor, por ter desperdiçado,
o tempo que me deste para a pretendida
melhora que não fiz; e sei que sou culpado!
mas, por favor, meu Deus, retarda-me a partida.

De agora em diante, quero usar o que me resta
de prazo para dar à vida melhor festa,
com a presença e a fé de todos os meus irmãos!

Então, meu Deus, nos livre dessa epidemia,
do vírus assassino e que muito judia!
Todo o poder, Senhor, está em Tuas mãos!

Fonte:
Soneto enviado pelo poeta

Fernando Sabino (Com o Mundo nas Mãos)


Bernardo tem 5 anos mas já sabe da existência do Japão. E aponta para o céu com o dedo:

- É atrás daquele teto azul que fica o Japão?

Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum.

- Mas então o céu não é o teto do mundo?

- Não! O céu é o céu. O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O Japão fica é lá embaixo - e apontei para o chão: - O mundo é redondo feito uma bola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu mesmo, mais nada.

Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de desilusão:

- Então este Brasil é mesmo o fim do mundo. Daqui pra lá não tem mais nada...

Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão estar lá em baixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não caem? Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.

Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feitos de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões. O menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei. Consegui convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado - e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha nova aquisição.

Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar. Descobri  que a Coreia é muito mais lá para cima do que eu imaginava - uma espécie de penduricalho da China, ali mesmo no costado do Japão. O que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali, tão longe de casa? O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não encontrei. Continua sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem. Outra confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo: Síria, Líbano, Saudi-Arábia, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom em geografia.

Duvido que alguém me diga onde fica Andorra. A última pessoa a quem perguntei, me disse que ficava nos limites de Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso todo no Festival da Canção. Em compensação a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa quase todo o Polo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de soprar para encher o mundo.

De repente me vem uma ideia meio paranóide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio murcho, acho que o ar está se escapando. E quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com meu sopro. O nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo,  e do tamanho desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios de peixes e singrados  por navios, as cidades agarradas aos continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar riscado de aviões, de gaivotas, e de urubus... Tudo isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um segundo de satisfação ao longo de séculos de História, não mais que alguns  minutos  em  face  da eternidade. Que aventura mais temerária, a de  Deus, escolhendo caprichosamente este lindo e insignificante planetinha para ele enviar através dos espaços o seu Filho feito homem, com a missão de  redimir a nossa pobre humanidade.

Faço votos que tenha valido a pena e que um dia ela se veja redimida. Até lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu filho Bernardo, irrompendo  alegremente no escritório, me arrebata das mãos e sai chutando pela casa.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo Falar. RJ: Record, 1976.

Fernando Sabino (Como Comecei a Escrever)

Quando eu tinha 10 anos, ao narrar a um amigo uma  história  que havia lido, inventei para ela um fim diferente, que me parecia muito melhor. Resolvi então escrever as minhas próprias histórias.

Durante o meu curso de ginásio, fui estimulado pelo fato de  ser sempre dos melhores em português e dos piores em matemática o que, para mim, significava que eu tinha jeito para escritor.

Naquela época os programas de rádio faziam tanto sucesso quanto os de televisão hoje em dia, e uma revista semanal do Rio, especializada em rádio, mantinha um concurso permanente de crônicas sob o título  "O Que Pensam Os Rádio-Ouvintes". Eu tinha 12, 13 anos, e não pensava grande coisa, mas minha irmã Berenice me animava a concorrer,  passando à máquina as minhas crônicas e mandando-as para o concurso. Mandava várias por semana, e era natural que volta e meia uma fosse premiada.

Passei a escrever contos policiais, influenciado pelas minhas leituras do gênero. Meu autor predileto era Edgar Wallace. Pouco  depois passaria a viver sob a influência do livro mais sensacional que já li na minha vida, que foi o Winnetou de Karl May, cujas aventuras procurava imitar nos meus escritos.

A partir dos 14 anos comecei a escrever histórias "mais sérias", com pretensão literária. Muito me ajudou, neste início de carreira, ter aprendido datilografia na velha máquina Remington do escritório de meu pai. E a mania que passei a ter de estudar gramática e  conhecer bem a língua me foi bastante útil.

Mas nada se pode comparar à ajuda que recebi nesta primeira fase dos escritores de minha terra Guilhermino César, João  Etienne  Filho  e Murilo Rubião e, um pouco mais tarde, de Marques Rebelo e Mário de Andrade, por ocasião da publicação do meu primeiro livro, aos 18 anos.

De tudo, o mais precioso à minha formação, todavia, talvez tenha sido a amizade que me ligou desde então e pela vida afora a Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes  Campos, tendo como inspiração comum o culto à Literatura.

Fonte:
Para gostar de ler. vol.4. Ed. Ática, 1998.

Álvares de Azevedo (Baú de Trovas)


Acorda, minha donzela!
Foi-se a lua — eis a manhã.
E nos céus da primavera
a aurora é tua irmã!
- - - - - –

Acorda, minha donzela,
soltemos da infância o véu...
Se nós morrermos num beijo,
acordaremos no céu!
- - - - - –

Amemos! Quero de amor
viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
que desmaia de paixão!
- - - - - –

Amo a voz da tempestade
porque agita o coração,
e o espírito inflamado
abre as asas no trovão!
- - - - - –

Dá-me um beijo — abre teus olhos,
por entre esse úmido véu:
Se na terra és minha amante,
és a minha alma no céu!
- - - - - –

Descansar nesses teus braços
fora angélica ventura:
Fora morrer — nos teus lábios,
aspirar alma tão pura!
- - - - - –

É doce amar como os anjos
da ventura no himeneu;
minha noiva ou minha amante,
vem dormir no peito meu!
- - - - - –

Entre os suspiros do vento,
da noite ao mole frescor,
quero viver um momento,
morrer contigo de amor!
- - - - - –

Quero viver de esperança,
quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança,
quero sonhar e dormir!...
- - - - - –

Tenho músicas ardentes,
ais do meu amor insano,
que palpitam mais dormentes
do que os sons do teu piano!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Agatha Christie (Resenha de Livros) 6


ENCONTRO COM A MORTE
Appointment with Death


O crime parece perseguir Hercule Poirot: onde quer que o grande detetive se encontre, ali será cometido um assassinato. É o que acontece novamente enquanto ele está de férias no Oriente. Desta vez, a vítima é a senhora Boyton, uma mulher repulsiva e perversa, ex-vigia de uma prisão feminina. Os principais suspeitos são seus próprios filhos, que viveram submetidos à tirania da mãe. Mesmo sem nutrir qualquer simpatia pela morta, Poirot não admite que alguém queira fazer justiça com as próprias mãos, e decide cumprir seu dever. Assim, depois de uma investigação minuciosa e angustiada, ele descobre e revela, para assombro de todos, a insuspeitada identidade do assassino.
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O NATAL DE POIROT
Hercule Poirot’s Christmas

As festas do fim de ano costumam ser sinônimo de paz e tranquilidade. Mas nem todos pensam assim. Na véspera de Natal, o velho milionário Simeon Lee é brutalmente assassinado em seu quarto. E o mais estranho é que todas as saídas do aposento estavam trancadas por dentro. Intrigado com o crime aparentemente insolúvel, o chefe da polícia local pede ajuda ao detetive Hercule Poirot. Mais uma vez, Agatha Christie engendra uma trama que fascina pelo inusitado, pelas situações originais e pela elaborada construção do perfil psicológico dos personagens, criando uma obra prima do gênero.

Após o cruel e horrendo assassinato de um pai de família, Hercule Poirot soluciona mais um crime em sua grande carreira. Qualquer um na casa teria um motivo para matá-lo, mas apenas um de seus parentes praticou esse crime de uma maneira tão perversa e no final o detetive descobre quem foi.
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É FÁCIL MATAR
Murder Is Easy


Graças à sua sagacidade e a um aguçado talento psicológico, a velha solteirona Miss Fullerton consegue descobrir a identidade de um criminoso, responsável por quatro assassinatos, e garante saber inclusive o nome da próxima vítima. É isso, pelo menos, o que ela conta a seu companheiro de viagem Luke Fitzwilliam, um ex-policial aposentado que retorna de trem a Londres depois de uma longa ausência do país. Fitzwilliam está disposto a desfrutar do sossego da aposentadoria, mas quando, logo em seguida, descobre que Miss Fullerton foi assassinada, desconfia que terá que abandonar o merecido descanso e voltar à ação.
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O CASO DOS DEZ NEGRINHOS
Ten Little Niggers


Dez pessoas recebem um estranho convite para passar um fim de semana na remota Ilha do Negro. Na primeira noite, após o jantar, elas ouvem uma voz, aguda e desafiadora, acusando cada uma delas por crimes cometidos no passado. Todas entram em pânico e mortes inexplicáveis se sucedem. Como na canção infantil dos Dez negrinhos, cada um dos convidados é eliminado e, a cada execução, também desaparece um dos negrinhos de porcelana que enfeitam a mesa de jantar. Mas quem seria o juiz de tal sentença? O Caso dos Dez Negrinhos é uma das obras-primas de Agatha Christie e foi adaptado para o cinema pelo diretor René Clair, em 1945.

Por motivos diferentes, dez pessoas vão parar na ilha do negro, Anthony Marston, Emily Brent, Ethel Rogers e seu marido, Philip Lombard, Henry Blore, Vera Claythorne, o general Macarthur, Lawrence Wargrave e o dr. Armstrong. Eles nunca haviam se encontrado antes, o que possibilitou uma boa convivência, será mesmo? Era boa até irem morrendo de acordo com uma perversa historieta infantil, diante disso Agatha Christie mais do que nunca desenrola o mistério fazendo de o caso dos dez negrinhos o melhor livro de sua carreira.

O Caso dos Dez Negrinhos conta a história de dez pessoas que ficam presas em uma ilha. Ninguém vem resgatá-los, então começam a se desesperar. Se assustam mais ainda quando começam a morrer um por um, de acordo com um quadro localizado acima da lareira da sala, que conta um poema de como dez negrinhos morreram. Os perdidos devem desvendar quem é o assassino, alguém entre as dez pessoas, antes que chegue a hora da morte. O livro promete muito suspense e angústia até acharem uma garrafa com uma carta do assassino contando tudo à polícia.
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CIPRESTE TRISTE
Sad Cypress


À primeira vista, o amor parece ser a causa do assassinato de uma linda e atraente mulher. E todas as circunstâncias apontam como culpada uma outra jovem, igualmente encantadora, motivada em princípio pelo medo de perder o homem que ama. Mas nada costuma ser assim tão óbvio para o imbatível detetive belga Hercule Poirot, que põe suas “células cinzentas” em ação para elucidar mais este caso - e mostra que, por trás de sua aparência de homem frio e racionalista, esconde-se um grande sentimental.
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UMA DOSE MORTAL
One, Two, Buckle my Shoe


Suicídio ou crime? O Dr. Morley era um homem satisfeito, respeitado pelos colegas, amado pela família e pelos amigos. Uma pessoa que não tinha nenhum inimigo nem motivos para se matar. No entanto, ele foi encontrado morto com um tiro na cabeça e um revólver na mão. O inspetor Japp acredita na hipótese de suicídio, mas o detetive Hercule Poirot desconfia das estranhas circunstâncias em que seu dentista morreu. As suspeitas aumentam quando um dos pacientes do Dr. Morley é assassinado e outro desaparece misteriosamente. O detetive belga tem que desvendar o caso antes que seja tarde demais.
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MORTE NA PRAIA
Evil Under the Sun


Nem sempre a maldade se esconde nas sombras da noite: às vezes, ela pode surpreender os incautos e ingênuos em plena luz do dia. Mas o detetive Hercule Poirot, que nada tem de ingênuo e está passando férias de verão numa praia paradisíaca, sabe que o Mal costuma estar sempre à espreita sob o sol. Por isso, ele será o mais indicado para desvendar o mistério do assassinato de uma linda mulher, provável vítima de sua própria beleza. Morte na Praia é mais uma genial criação de Agatha Christie, a “velha dama” do crime, que continua conquistando milhões de leitores em todo o mundo.

Para finalmente relaxar, Hercule Poirot vai a um hotel e se vê com um monte de pessoas estranhas e com passados desconhecidos, como o Comandante Kenneth, Arlena e Linda Marshall, Patrick e Christine Redfern, Horace Blatt, Rosamund Darnley entre muitos outros. Acontece então um previsível assassinato, que leva Poirot a retomar o seu trabalho em pleno descanso.
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M OU N?
N or M?


Um agente é friamente assassinado na Escócia depois de descobrir indícios de atividade nazista na Inglaterra no início da Segunda Guerra Mundial. Suas últimas palavras: “M ou N”. Com as missão de colaborar com o Serviço Secreto inglês, os jovens aventureiros Tommy e Tuppence seguem para a Escócia e se hospedam na pensão Sans Souci. A princípio, senhoras tricotando em cadeiras de balanço e homens que só falam de negócios não parecem ter qualquer relação com o crime. Mas essa é a única pista para solucionar a intrincada trama de crime e espionagem. E eles precisam decifrar o mistério antes que o assassino volte a agir.
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UM CORPO NA BIBLIOTECA
The Body in the Library


Membros respeitáveis da comunidade de Saint Mary Mead, o Coronel Bantry e a mulher descobrem certa manhã, na biblioteca de casa, o corpo de uma jovem, morta por estrangulamento. A polícia é chamada, mas quem se dedica a descobrir a identidade da desconhecida e identificar o criminoso é a simpática vizinha dos Bantry, a solteirona Miss Marple. Detetive amadora com um faro apurado para mistérios, ela segue a pista do estrangulador, que depois de assassinar outra mulher, é atraído para uma armadilha ousada e extremamente arriscada.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

domingo, 29 de março de 2020

Varal de Trovas n. 223


Arthur de Azevedo (Ingenuidade)


    O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não porque ela não tivesse todas as aparências de uma senhora honesta; desejava-a, porque o marido, o Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem.

    Quando, após quatro meses de. perseguições incessantes, o sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por não saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossível um encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele também não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia ainda sob o teto e às sopas do pai.
* * *

    O nosso herói lembrou-se, afinal, de um amigo muito dado a cavalarias altas. Foi ter com ele, expôs-lhe a situação e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho.

    - Tu compreendes! Não posso nem devo levá-la a uma dessas casas de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocência!

    - Então a pequena é tão inocente assim?

    - Se é! Não fala senão de pálpebras caídas, e qualquer coisa lhe faz subir o rubor às faces! Sou o seu primeiro amante!

    - Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca é o primeiro amante!

    - Falas assim porque não a conheces.

    - Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la com toda a segurança, porque é uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal, número tantos. Vai até lá e procura de minha parte a D. Efigênia, que te servirá perfeitamente. Olha, leva-lhe o meu cartão.

    O Vaz foi à casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no topo da escada, de modo que ele e a Ernestina poderiam entrar sem ser vistos.

    * * *

    No dia da entrevista, correu tudo às mil maravilhas. O Vaz esperou a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela depois, e lá se demoraram perto de hora e meia.

    Por que tanto tempo? Por que uma virtude não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência!

    Arrependida de haver subido aquela escada infame, a Ernestina resistiu quanto pôde.

    - Não! Não! Não!... eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juízo estará o senhor a fazer de mim?...

    O Vaz - justiça se lhe faça - não respondeu como Pedro I, que era um bruto.

    - E o Friandes?... e o meu pobre Friandes que tem tanta confiança em mim?...
    * * *

    A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe com o mais amável dos seus sorrisos:

    - Então? Agradou-lhe o quarto?

    - Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele só para mim.

    - Ah! Isso não pode ser.

    - Por quê?

    - Porque há um cavalheiro e uma dama que têm este cômodo tomado para todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não sendo nesses dias e a essa hora, o quarto é seu.

    - Bom.

    O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu.
* * *

    No dia seguinte lembrou-se que era sábado, e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por trás de uma árvore um magnífico posto de observação.

    O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparências de respeitável.

    A dama pouco se demorou: era a própria Ernestina Friandes. Imaginem a surpresa do Vaz, que daquele momento em diante, convencido de que o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Solimar Braga de Oliveira (Baú de Trovas)


A mulher quando quer, manda,
mas quando manda não quer;
quando ela manda, desmanda.
- Quem entende o que é mulher?
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Anda a honra tão sem jeito,
neste mundo camuflada,
que, agora, qualquer sujeito
a exibe como fachada!
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As pessoas geralmente
deixam seu rastro no chão;
– o teu rastro unicamente
ficou no meu coração…
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As redondilhas que amamos,
e têm realce e frescor,
são sempre aquelas que armamos
com o cimento do amor…
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A verdade seja dita
numa trova sem valor:
– em cada mulher bonita
se encontra um verso de amor.
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Chegando ao fim da jornada,
sem passado e sem futuro,
no presente encontro o nada
porque nada mais procuro…
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Conhecerás pelos frutos
as plantas, boas ou más:
– vê que os homens dissolutos
não darão frutos de paz…
- - - - - –

Cultiva, amigo, a bondade,
E algum dia entenderás
que a maior felicidade
está no bem que se faz…
- - - - - –

Curvo-me ao fado perverso,
como te confesso assim:
-Sempre a buscar-te em meu verso,
sempre a fugires de mim!
- - - - - –

E aqui deixo a última nota
destas Trovas, coração:
– Eu, no amor, só vi derrota,
engano, nada, ilusão…
- - - - - –

Eu levo a vida cismando
no tempo todo perdido
do tempo em que andei sonhando
um tempo nunca vivido.
- - - - - –

Meu destino nesta vida
há de sempre ser assim:
– sempre a lembrar-te, querida,
sempre a fugires de mim…
- - - - - –

Não amo a felicidade,
que ninguém tem e não vê;
- amo a sombra da saudade
que me fala de você…
- - - - - –

Na velhice a gente vela,
talvez pensando, acordado:
– a vida não era aquela
que eu esbanjei no passado…
- - - - - –

Na vida, oceano inclemente,
de engano e tantos escolhos,
navega a infância inocente
tendo a esperança nos olhos.
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Nesta existência a alegria,
experimenta e verás,
está na doce poesia
de todo o bem que se faz…
- - - - - –

Promessas de amor! Inúteis
ilusões da humana lida!
– Assim, de coisinhas fúteis
vamos construindo a vida.
- - - - - –

Tenho o coração magoado,
não que me julgue infeliz,
mas por nunca ter amado
como devia e não quis…
- - - - - –

Tudo ilude, tudo mente,
na vida cheia de escolhos:
muita gente há descontente
com um sorriso nos olhos…
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Uma verdade parece
muita gente definir:
– quem muito sobe se esquece
que também pode cair…
______________________

Nasceu em Juiz de Fora, MG, em de 1913.  Filho do escritor e poeta Luiz J.de Oliveira e da educadora Ypoméia Braga de Oliveira.  Poeta, cronista, novelista, ensaísta, jornalista.   Iniciou os estudos no antigo grupo Escolar "Padre Anchieta" e depois no Colégio Nacional do Rio de Janeiro.  Em 1929, muda-se com os pais para Cachoeiro de Itapemirim (ES), onde deu continuidade a seus estudos no Ginásio "Pedro Palácios", depois Liceu "Muniz Freire".  Cursou Farmacologia na escola de Farmácia e Odontologia de Vitória.

A partir de 1930, dedica-se ao jornalismo e à literatura, tendo exercido a função de correspondente, diretor de sucursal, redator-chefe de jornais, revistas e emissoras de rádio de Cachoeiro de Itapemirim.  Fundou, organizou e tornou-se o 1º diretor do Departamento de Imprensa Oficial do Município de Cachoeiro de Itapemirim.  Integrou o quadro de colaboradores efetivos da "Revista Panamericana", editada no México e a "Revista Cachoeiro".  Foi membro correspondente da Academia Mineira de Letras, da Union Cultural Americana de Buenos Aires; do Grêmio Brasileiro de trovadores, de Salvador-BA.; da Academia Pedralva, de Campos-RJ.; do Centro de Los Insignidos de América, de Buenos Aires; da Liga Afetiva Portugal-Brasil, de Lisboa. Membro da Academia Híspano-Americana, de Costa Rica (Conselheiro n.º 76); da Academia Cachoeirense de Letras; da qual foi Presidente, ocupando a cadeira n.º 3; da Academia de Filosofia, Ciências e Letras de Anapolina-GO. Faleceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1991.

Obras: "Ilha da Luz", 1947 (poesia); "A lágrima do Natal", 1949 (poesia); "Cidade Antiga", 1953 (poesia); "Ânfora Azul, 1956 (poesia); "Lamentação de Orfeu", 1957 (poesia); "Sangrando Mágoas", 1957 (poesia); "Paisagem Interior e outras paisagens, 1982.

Fontes:
Paulo Monteiro. A Trova no Espírito Santo.
Elmo Elton. Poetas do Espírito Santo.

Ernest Hemingway (Dicas para Escritores)


– Evite o grandioso. Recuse o épico. A pessoa que pinta quadros enormes muito bons, pode também pintar quadros pequenos muito bons.

– Escrever bem é escrever sinceramente. Se uma pessoa está escrevendo uma estoria, será verdadeira e sincera em relação à soma de conhecimentos da vida que possui. Se não souber como muitas pessoas agem e pensam, como se processam seus pensamentos e ações, a sua boa estrela poderá poupá-lo por algum tempo ou talvez possa escrever estorias da carochinha. Se continuar escrevendo sobre aquilo que não conhece, acabará por descobrir que não passa de uma fraude, de uma mistificação.

– O melhor é parar sempre quando o negócio está saindo bem e você sabe o que irá acontecer a seguir. Se fizer isso todos os dias, quando está escrevendo um romance, nunca ficará travado num beco sem saída. Assim, o seu subconsciente estará trabalhando ativamente em torno do assunto o tempo todo.

– É inútil escrever qualquer coisa que já tenha sido escrita antes, a menos que você possa superá-la. O que um escritor tem a fazer, no nosso tempo, é escrever o que não foi escrito antes ou bater os escritores mortos naquilo que fizeram. A maioria dos escritores vivos não existe. É como um corredor de milha fazendo o percurso contra o relógio em vez de tentar, apenas, bater quem estiver correndo na pista com ele. Se não correr contra o tempo, nunca saberá do que é capaz de atingir.

– Observe o que acontece hoje. Se encontrar um peixe, observe exatamente o que cada um faz. Se sentir um súbito alvoroço, uma excitação peculiar, quando vir o peixe saltar fora da água, reconstrua todas as suas recordações até perceber exatamente qual foi a ação que provocou em você aquela emoção.

– Meta-se na cabeça de outra pessoa, para variar. Se eu berrar com você, procure imaginar tanto o que é que eu estou pensando como o que você sentiu quando eu berrei.

– Quando as pessoas falam, você deve escutá-las completamente. Não fique pensando no que vai responder, no que deve dizer a seguir. A maioria das pessoas não ouve. Você deve estar capacitado para entrar numa sala e, quando sair, saber tudo o que ali viu e não só isso. Se essa sala lhe despertou algum sentimento, deverá saber exatamente o que foi que lhe deu esse sentimento.

– Às vezes, quando tenho dificuldades em escrever, leio meus próprios livros para levantar-me o ânimo, e depois recordo que sempre foi difícil, as vezes quase impossível escrevê-los.

– Evite utilizar adjetivos, especialmente os extravagantes como “esplêndido, grandioso, magnífico, suntuoso.”

- Escreva frases breves. Comece sempre com uma oração curta. Utilize uma linguagem vigorosa. Seja positivo, não negativo.

– Um escritor, se serve, não descreve. Inventa ou constrói a partir do conhecimento pessoal ou impessoal.

– O problema que tem um escritor não se altera. Ele mesmo muda, mas seus problemas permanecem os mesmos. É sempre sobre como escrever com sinceridade e, uma vez encontrado o que é verdadeiro, projete-o de tal forma que se torne parte da experiência da pessoa que o lê.

– Minha tentação é sempre escrever demais. Eu mantenho isso sob controle, então eu não preciso cortar palha e reescrever. Indivíduos que pensam que são gênios porque nunca aprenderam a dizer não a uma máquina de escrever, são um fenômeno comum.

– É melhor ler tudo todos os dias desde o início, corrigindo como você vai, então vá para onde parou no dia anterior. Quando isso for feito por tanto tempo que não pode fazê-lo todos os dias, releia dois ou três capítulos por dia. Então leia tudo desde o início todas as semanas. É assim que você faz tudo de uma só vez.

– Escrevo uma página magistral para cada noventa e uma que é porcaria. Tento jogar toda a porcaria no lixo. O presente mais essencial para um bom escritor é ter um detector de porcaria interno. É o radar do escritor e todos os grandes têm tido isso. Se você vai escrever, você precisa descobrir o que não funciona para você.

– Quando um escritor escreve uma romance, ele deve criar pessoas vivas; pessoas, não personagens. As pessoas de um romance, e não os personagens construídos com habilidade, devem ser projetados a partir da experiência assimilada do escritor, de seu conhecimento, de sua cabeça, de seu coração e de todos os seus.

– O importante é trabalhar todos os dias. Trabalho das 7 até o meio dia. Então vou pescar ou nadar ou qualquer outra coisa que eu queira.

– O jargão que você adota deve ser recente, caso contrário não funciona.

– Nunca pense sobre a história quando você não está trabalhando.

– Pelo amor de Deus, escreva e não se preocupe com o que os outros vão dizer, ou se será uma obra-prima ou o que.

Fonte:
Compilação de escritos em livros de Ernest Hemingway.
Vilto Reis.

sábado, 28 de março de 2020

Varal de Trovas n. 222


Isabel Furini (Âmago dos Sonhos)


J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 5


DEDICATÓRIA

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda creem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns…
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DEPOIS
    (A Erich Maria Remarque - 1939)
 

E as ruas se encheram de inválidos e mutilados
com seus estranhos vultos...

E as mulheres de preto, como espectros insepultos
      de maridos,
  de filhos,
de pais,
de noivos
e namorados,
levavam velas acesas dentro dos olhos parados...

E os caminhos caíram nas pontes desconjuntadas,  
e os campos se encheram de feridas e cicatrizes,
e as árvores voltaram para os céus a angústia  
das raízes!

E os oceanos levantaram ondas asmáticas
como se dentro delas lutassem as ânsias
de todos os afogados à procura de ar!...
E os céus se cobriram de véus negros de fumo
como quem venda os olhos
para não olhar!

E brotaram cidades de sombras e cruzes
nas ruínas das cidades viradas do avesso,
... pelos ermos, descampados...

E as chaminés pararam de fumegar
sobre os telhados,
e após o sobressalto das noites e das correrias
todas as portas se cerraram sobre o gemido dos vivos
como pálpebras frias! . . .

E as igrejas se encheram de criminosos reincidentes
e arrependidos
com as almas pesadas como as águas salubres,
se encheram dos homens que pensam que creem
em Deus!

E as vitrinas da Vida se esvaziaram
para encher as vitrinas dos museus!

E em cada esquina ficou um lenço tinto de vermelho
com a cruz dos hospitais,
como a clamar aos homens que batiam com os cascos:

_ " Paz !... "
.......................................
E o homem de galões, com o peito cheio de insígnias,
e medalhas,
tendo ainda no ouvido o ruído das metralhas
e o roncar do canhão,

- saiu correndo, louco, a gritar pela Pátria !

Queria encontrar a PÁTRIA
para pedir perdão!
****************************************

DIANTE DAS CRIANÇAS NUAS...
  
  Já pensaste num mundo sem vagabundos e indigentes
onde não seremos rebanhos porque teremos intacto o pensamento
e o coração?

Já pensaste num mundo onde não nos envergonharemos
dos nossos lares e dos nossos filhos,
e onde não haverá irmãos famintos e maltrapilhos?
........................

Bendigo a tua inconsciência por que nada pensaste
diante destas crianças descalças e nuas,
- não, não podes compreender meu sofrimento
nem sabes ler o libelo que eu vejo escrito nas ruas!
****************************************

DISCURSO
      (A Cássio Chaves- 1944)
  
Senhores,
eu vos peço um segundo de silêncio
ao menos um segundo,
pelos que sofrem, lutam e morrem
pelos homens e pelo mundo...

Por todos os que se levantaram, e acorreram, e seguiram
novamente crentes e esperançosos
e abandonaram suas terras, seus lares, seus arados,
e morreram com a liberdade nos lábios entreabertos
e silenciosos;
pelos que, sem pão, vagavam famintos
- humilhados pelos homens que passavam indiferentes
e agressivos;
pelos que, sem lar, nunca encontraram a mesa posta
nem crianças correndo a gritar nas calçadas;
pelos que, sem teto, andaram sem destino,
namorando as estrelas e invejando as casas todas
à margem das estradas...

Pelos que nunca tiveram pais, nem mãos amigas
descobrindo um rumo ou servindo de amparo;
pelos que nunca puderam amar, e invejaram os próprios cães
quando o amor é tão caro;
pelos que sem segurança e meios, sem qualquer instrumento,
esqueceram certo dia o próprio pensamento
e andaram sempre ao léu,
a arrastar os pés na terra
e a olhar, em vão, o céu. . .

Senhores,
eu vos peço um segundo de silêncio
por eles que acorreram, e seguiram, e se levantaram,
e foram lutar por um mundo melhor,
- por eles que infelizmente não voltaram
ou felizmente - quem sabe? - se a volta ainda for pior...

Senhores, eu vos peço silêncio, ao menos um segundo,
por eles, que como nós, acreditaram nos homens,
acreditaram no mundo...!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Irmãos Grimm (Elsie, a Sensata)


Era uma vez um homem que tinha uma filha que se chamava Elsie, a sensata. E quando ela já tinha crescido o pai dela falou:

– "Nós vamos casá-la."

- "Sim - disse a mãe - se encontrarmos alguém que queira desposá-la."

Finalmente, apareceu um homem que morava muito longe e começou a cortejá-la, ele se chamava Hans, mas sua única exigência era que a sensata Elsie fosse realmente inteligente.

– "Oh, – disse o pai - ela é muito perspicaz"

E a mãe dizia:

"Oh, ela consegue ver o vento caminhando pelas ruas, e ouvir as moscas tossindo."

- "Bem, - disse Hans - se ela não for verdadeiramente inteligente, não irei desposá-la."

Quando eles já estavam sentados para jantar e haviam comido, a mãe falou:

- "Elsie, vá até o depósito e traga um pouco de cerveja."

Então, Elsie, a sensata, pegou o jarro que estava na parede, foi até onde guardavam a cerveja, e ia batendo levemente na tampa a medida que caminhava para que o tempo passasse rápido. Tendo chegado lá embaixo ela pegou uma cadeira, e a colocou diante do barril para que ela não precisasse inclinar-se, para não machucar as costas ou para que não se machucasse inadvertidamente. Então, ela colocou o vasilhame na frente, e abriu a torneira, e quando a cerveja estava caindo ela olhava para a parede, para que seus olhos não dormissem, e depois de muito espiar para lá e para cá, ela viu uma picareta bem em cima dela, e que os pedreiros haviam esquecido lá acidentalmente.

Então, Elsie, a sensata, começou a chorar e disse:

– "Se eu me casar com o Hans, e nós tivermos um filho, e ele ficar grande, e nós o mandarmos até o depósito aqui para buscar cerveja, então, a picareta poderá cair na cabeça dele e matá-lo."

Então, ela chorou sentada e gritava com todas as forças do seus pulmões, sobre o infortúnio que poderia acontecer com ela. A família, na sala de jantar, ficou esperando a bebida, mas Elsie, a sensata, não retornava. Então, a mulher disse para a criada:

– "Desça até o depósito e procure onde está a Elsie."

A criada obedeceu e a encontrou sentada diante do barril, gritando em voz alta.

– "Elsie, porque estais chorando?" – perguntou a criada.

– "Ah, – respondeu ela – será que não tenho motivos para chorar? Se eu me casar com o Hans, e nós tivermos um filho, quando ele crescer, e tiver de buscar cerveja aqui no depósito, a picareta poderá cair na cabeça dele, e matá-lo."

Então, a criada respondeu:

"Mas que garota sensata nós temos aqui!", e se sentou ao lado dela e começou a chorar em voz alta também, lamentando tão grande infortúnio.

Depois de algum tempo, como a criada não voltava, e os comensais estavam com sede de beber cerveja, o homem disse para o garoto:

"Vá até o depósito lá embaixo e veja onde Elsie e a criada estão."

O garoto foi até lá, e encontrou Elsie, a sensata, e a criada, ambas chorando uma ao lado da outra. Então, ele perguntou:

- "Porque vocês estão chorando?"

- "Ah, – disse Elsie - será que eu não tenho motivos para chorar? Se eu me casar com o Hans, e nós tivermos um filho, e ele crescer, e ele for buscar cerveja aqui no depósito, a picareta irá cair na cabeça dele e poderá matá-lo."

Então, o garoto respondeu: "Que garota sensata, nós temos aqui!" e se sentou ao lado dela, e também começou a berrar em voz alta. Na casa, todos esperavam pelo garoto, mas como ele também não retornava, o homem disse para a mulher:

– "Desça até o depósito e veja onde a Elsie está!"

A mulher desceu, e encontrou os três chorando e lamentando, e perguntou porque choravam; então, Elsie lhe falou também que o seu futuro filho seria morto pela picareta, quando ele crescesse e tivesse de buscar cerveja, caso a picareta caísse. Então, sua mãe também falou:

"Que garota sensata nós temos aqui!"

Então, a mãe se sentou e chorou com eles. O homem ficou esperando um pouco, mas como a sua esposa não voltasse e a sua sede aumentava cada vez mais, ele falou: "Preciso ir até o depósito eu mesmo e ver onde Elsie está."

Mas quando ele chegou lá, estavam todos sentados chorando, e quando ele soube do motivo, e que o filho de Elsie era a razão de tudo, e que se Elsie trouxesse um filho ao mundo algum dia, e que ele poderia ser morto pela picareta, caso o garoto estivesse sentado debaixo dela, ao buscar cerveja, exatamente no momento que ela caísse, ele gritou:

– "Oh, que garota inteligente é a Elsie!" e se sentou, e ficou chorando com eles.

O noivo, durante algum tempo, ficou sozinho na casa, então, como ninguém voltasse ele pensou: "Eles devem estar esperando por mim lá embaixo; eu devo ir até lá e ver o que está acontecendo."

Quando ele desceu, os cinco estavam chorando sentados e se lamentando desesperadamente, cada um tentando chorar mais do que o outro.

– "Que desgraça aconteceu aqui? – perguntou ele.

– "Ah, meu querido Hans, - disse Elsie - se nós nos casarmos e tivermos um filho, e ele for grande, e nós talvez o mandarmos aqui para buscar um pouco de bebida, então, a picareta que foi deixada pendurada na parede poderia esfacelar a cabeça dele caso ela caísse, então, não temos motivo para chorar?"

- "Venham! - disse Hans - Maior entendimento que este não é necessário para a minha casa, porque você é Elsie, uma mulher muito sensata, eu me casarei contigo."

E tomando a sua mão, subiu de volta para casa, e se casou com ela.

Depois que Hans havia se casado com ela durante algum tempo, ele disse:

"Esposa, vou sair para trabalhar e ganhar um pouco de dinheiro para nós; vá até o campo colher algum trigo para que tenhamos um pouco de pão."

- "Sim, querido Hans, vou já fazer isso."

Depois que Hans tinha saído, ela mesma preparou um caldo bem gostoso e levou ao campo com ela. Quando ela chegou no campo ela disse para si mesma: "O que devo fazer; devo colher primeiro, ou devo comer primeiro? Oh, vou comer primeiro."

Então, ela esvaziou a sua bacia de caldo, e quando ela já havia comido tudo, ela disse mais uma vez: "O que devo fazer agora? Devo colher primeiro, ou devo dormir primeiro? Vou dormir primeiro."

Então, ela se deitou no meio do trigal e caiu no sono. Hans já tinha chegado em casa há muito tempo, mas Elsie não tinha voltado. Então, ele pensou: "Que esposa sensata que eu tenho. Ela é tão dedicada que nem vem para casa para comer."

Mas como ela não voltava, e já estava ficando noite, Hans saiu para ver o que ela havia colhido, mas ela nada havia colhido, e ela estava deitada entre os trigais e dormia. Então, Hans correu para casa e trouxe uma rede de caçar aves que tinha pequenos sininhos nela e pendurou ao lado dela, e ela continuou dormindo.

Então, ele foi de novo para casa, fechou a porta da casa, sentou-se em sua cadeira e começou a trabalhar. Finalmente, quando já estava bastante escuro, Elsie, a sensata, acordou e quando ela se levantou ela ouviu o retinir de sinos ao seu redor, e os sinos tocavam a cada passo que ela dava. Então, ela ficou confusa, e ficou em dúvida se ela era realmente Elsie, a sensata, ou não, e pensou: "Sou eu, ou será que não sou eu?"

Mas ela não sabia que resposta daria, e durante algum tempo ela ficou em dúvida; finalmente ela pensou: "Eu irei para casa e perguntarei se sou eu, ou se não sou eu mesma, com certeza lá em casa saberão."

Ela correu até a porta da sua casa, mas a porta estava fechada. Então, ela bateu na janela e gritou:

– "Hans, Elsie está aí?"

- "Sim, – respondeu Hans - ela está aqui dentro."

Então, ela ficou apavorada, e pensou: – "Ah, Deus do céu! Então, não sou eu," e foi até outra porta; mas quando as pessoas ouviam os sininhos retinindo, elas não queriam abrir a porta, e ela não conseguia entrar em nenhum lugar.

Então, ela fugiu daquela aldeia, e ninguém nunca mais a viu.

Fonte:
Contos de Grimm

sexta-feira, 27 de março de 2020

Varal de Trovas n. 221


João Batista Leonardo (Uma Parte que se Foi)


Nas infindáveis perguntas sem respostas mais uma insinuante ao impossível e ao abstrato, incide curiosidade: companheiro, onde está você? Testemunho dos momentos no enfrentamento cotidiano, da continuidade, e do desgaste pelos idos tempos. Juntos sempre na mitigação das dores; no alívio dos sofrimentos; na força ao debilitado; na palavra ao desesperado; na participação intrigante no surgimento e fim da vida, do primeiro sorriso até o último choro.

Seria possível me responder ao menos: onde está você?

Sei que foi com as águas, evaporou e diluiu nos ares em continuação com nuvens, foi para o firmamento, levando um pouco de mim; por isso nas horas de dificuldades, alegrias e tristeza falo de você, e sei que existe, porque na natureza nada é destruído, tudo é transformado.

Sempre estivemos juntos e nunca disse que compúnhamos um todo, um, objeto do outro, um, consequência do outro. Nas lutas até injustas no picadeiro vivenciado, jamais nos destruíram, amigos bons não faltaram, amigos falsos jorraram, porém, em cada queda prontamente levantamos, pois entendemos que a humilhação não está na queda, mas sim, no sucumbir.

Começamos bem lá embaixo, galgamos valorosos degraus então os tempos nos sorriram, nós os vivenciamos, neles abraçamos as oportunidades e percebemos êxitos.

Construímos muito, destruímos poucos, causamos muitos sorrisos e pouco choro, trouxemos muitas vidas ao mundo e nenhuma tiramos. Semeamos a luz e a esperança por onde passamos, mesmo em meio aos percalços e incompreensões, éramos na certeza da boa intenção.

Nas alegrias também estivemos juntos; vivemos o esporte, nos banhamos nas grandes cachoeiras e passeamos por praias e praças engalanadas. Juntos vimos grandes espetáculos mundiais, andamos e respiramos nos quatro cantos da terra, conhecemos costumes de vida e gentes diferentes, porém, sempre valorizando a cultura e aprendizado.

Na aspereza dos tempos plantamos na terra nua, e dela fizemos um caminho firme, onde, com segurança pisamos e o mostramos aos menos corajosos. Nas horas amuadas, fomos ao campo buscar a flor do conhecimento, na sua fragrância encontramos a alegria e força da solidariedade, na valorização familiar e profissional. Em nossa seara embrenhamos luz, frutos e esperança, que por certo iluminaram e fortificaram a continuidade de tantos, na busca da gratificação. Na qualidade de humanos, cometemos erros e enganos, porém sempre desprovidos da maldade intencional.

Onde estiver saiba que tudo foi muito natural, propositalmente, e a soma dos fatos compõe o fardo dos tempos vividos, cujo conteúdo, sobretudo redunda, na boa ou má expectativa do inexorável fim; então na tristeza do choro ou na gratificação do sorriso, estarão os resultados.

Semeamos boas sementes em vários terrenos, geminaram, cresceram, arboresceram e prosperaram em nossa fertilidade e em benéficos frutos se transformaram.

Sei que a lógica nem sempre é exultante do exato, mas pensar em você, me volta os tempos, faço sondagens, revivo atitudes determinantes, hoje componentes do meu fardo, testemunho de mim mesmo. Vale a sondagem, me alegra e neste abstrativo momento, por que não esperançar? Onde está você meu suor derramado?

Fonte:
João Batista Leonardo Os tempos da esperança à razão. Maringá: Gráfica Primavera, 2008.

Alphonsus de Guimaraens (Baú de Trovas)

Afonso Henrique da Costa Guimarães

Como, Jesus, me esqueceste
nesta horrível soledade?
Aos trinta e três tu morreste...
E eu já tenho a tua idade!
- - - - - –

Nasci em leito de rosas
e morro em leito de espinhos...
Ó mães, que sois caridosas,
zelai por vossos filhinhos!
- - - - - –

O cinamomo floresce
em frente do teu postigo;
cada flor murcha que desce
morre de sonhar contigo.
- - - - - –

O coqueiro, todo em palmas,
beija o cinamomo em flor...
Imagem das nossas almas,
unidas no mesmo amor!
- - - - - –

Quando em teus olhos reluz
o carinho de uma prece,
se é dia, o sol tem mais luz,
se é noite, logo amanhece.
- - - - - –

Quando os teus olhos, Senhora,
repousam no meu olhar,
fica mais formosa a aurora,
mais formoso fica o luar.
- - - - - -

Tradições, quimeras, lendas...
Ninguém crê na Eterna Voz!
Que vale, Senhor, que estendas
o teu carinho até nós?
- - - - - –

Tristeza das tardes ermas,
das noites brancas de luar!
As almas que estão enfermas
no teu seio vão chorar...
- - - - - –

Tu não sabes porque a lua
é triste e nunca sorri...
Mas que ingenuidade a tua!
— Os poetas moram ali.
- - - - - –

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Francisca Júlia (Os Dois Mendigos)


Caminhava pela estrada real um moço de aspecto nobre, feições agradáveis, e trajava de maneira modesta, porém distinta.

Tinha os cabelos enrolados em anéis que lhe cobriam o pescoço, e um ar simpático que condizia bem com a graça natural da sua pessoa.

Seu principal encanto estava com certeza nos olhos claros, de uma expressão infantil, penetrados da mais encantadora doçura.

Caminhava distraidamente, os olhos fixos no chão.

Em sentido contrario vinham dois mendigos maltrapilhos, as roupas esburacadas, animados aos bordões, a cabeça caída para a frente, como vergados ao peso dos anos. A idade e os sofrimentos tinham-lhes arrancado os cabelos, cavado grandes rugas na face e enfraquecido todos os músculos.

Como tivessem caminhado muito, tinham os pés inchados e umedecidos do sangue que vertiam; sentiam fome; estavam extremamente pálidos, os passos trôpegos, os lábios trêmulos, de modo que nem podiam falar, mas apenas balbuciar como as crianças.

O vento impiedoso impelia-os para a frente, forçando-os a andar depressa e fazendo-os tropeçar nos calhaus da estrada.

Quando se aproximaram do moço, caíram de joelhos, mais por cansaço do que por desejo de implorar a piedade, e gemeram ao mesmo tempo:

— Uma esmola, senhor.

O moço sentiu as lágrimas empanar-lhe a vista e, penetrado de compaixão, apalpou os bolsos; mas, como encontrasse apenas uma moeda, e a justiça divina manda que se distribua a esmola em partes iguais, disse com malícia:

— Perdoai-me, pobres velhos, a vossa miséria sensibilizou minh'alma e acordou soluços em meu peito; porém não tenho um real para consolar vossos sofrimentos.

Os velhos levantaram-se.

O primeiro olhou o rapaz com mal contido rancor, os olhos intumescidos de cólera, e gritou brandindo o bastão com a pouca de forças que lhe restavam:

— Maldito sejas tu e malditos todos os teus; que o fogo devore a tua propriedade; que as águas engulam a nau em que embarcares; que teus afetos pereçam e que um vento de desgraça passe sobre a desolação da tua existência!

E partiu.

O outro velho fitou com ternura a face do jovem, e falou-lhe:

— Sê feliz, mancebo, que as minhas mãos tremulas possam tirar de sobre tua fronte as pragas do meu companheiro; que a tua propriedade seja firme, que as águas sejam mansas na tua viagem e que a bênção do Senhor esteja sempre suspensa sobre tua cabeça.

Então o moço tirou do bolso a moeda de ouro e deu-a ao mendigo.

Assim devemos praticar sempre: nunca devemos dar esmola, principalmente quando o nosso dinheiro é escasso, sem observar se a pessoa que nos pede é merecedora da nossa piedade.

Fonte:
Poeteiro

quinta-feira, 26 de março de 2020

Varal de Trovas n. 220


Fortuna (Agência Pensiero)


Um dia, defronte do espelho de fazer a barba, não viu o rosto. Primeiro verificou se não se tratava de uma peça — pregada além da sua estatura. Depois, procurando manter a cabeça fria dentro do súbito afogueamento, apalpou-a concentradamente à altura das suíças, que voltaram ao latejar normal: não, não tinha cortado a cabeça num gesto mais distraído da navalha (por via das dúvidas seria aconselhável comprar um barbeador elétrico). A cabeça lá estava com toda segurança sobre o pescoço — à distância de um milímetro já sentia o roçado da barba nas impressões digitais —, simplesmente suas feições amarelaram como uma foto de carteira de identidade e sequer a lembrança da mais recente distinguia agora no espelho.

Sentou-se no bidê que usava amiúde seco, para pensar e ficou de mão no queixo como uma estátua de mão no queixo.

Simples de explicar: nascera, crescera, estudara: noções de: moral, civismo e tiro ao alvo, línguas vivas e tumulares, ciências exatas e hipotéticas, desenho artístico, canto orfeônico e trabalhos manuais, quando recebeu o diploma estava preparado para ingressar no Parnaso. Nas páginas classificadas dos jornais do Brasil, que pediam "contact men", public relations", "executive secretaries", encontrou facilmente o que procurava:

"Precisa-se de um pensador, com prática."

Entre dezenas de candidatos, centenas dos quais prensadores com esperança de um erro de imprensa, foi o único aprovado: durante todo o teste não fez mais que pensar. Passou o primeiro mês inteiro pensando e no dia 30 recebeu o ordenado integral. Estimulado, na segunda quinzena do segundo mês transformou em palavras o seu pensamento:

"As mães estão cada vez mais cedo."

Foi chamado à direção:

— A Agência Pensiero é uma organização que fornece máximas, verbetes, pensamentos para folhinhas, almanaques de pensamentos, noites de autógrafos, colunas sociais e de amenidades, house organs; home organs, garden organs. Já vê que pensamentos revolucionários, só de revolucionários já justiçados e consagrados. Você volte para o seu bidê e procure assimilar a técnica do Marquês de Maricá.

Nesse primeiro estágio ele produziu maricacas, com admirável fluência:

"Antes ser rabo de leão do que cabeça de formiga" e "Antes ser cabeça de formiga do que rabo de leão."

Depois passou por outros pensadores anti-sociais da maior aceitação. Foi quando lhe aconteceu aquilo com o rosto.

— Agora — pensava pela primeira vez para si mesmo — o jeito é usar o espelho no lugar do rosto.

Levantou-se e prendeu ali o espelho. assim as pessoas que o mirassem não o veriam sem rosto: julgá-lo-iam mesmo uma delas. Tanto que o diretor, ao dar consigo nele, abriu um sorriso:

— Agora sim, refletes.

Logo, melhorou seu existir.

Fonte:
10 em Humor. RJ: Expressão e Cultura, 1968.