sábado, 15 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 348

 

Graça Graúna (Poética da Autonomia)


Nota: Poema inspirado no livro Pedagogia da Autonomia, e apresentado no encerramento do VI Colóquio Internacional Paulo Freire, no Centro de Convenções da UFPE, em 2 de setembro de 2007.
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I
Minha voz tem outra semântica,
outra música. Neste ritmo,
falo da resistência
da indignação
da justa ira dos traídos
e dos enganados
 
II
Apesar de tudo,
jamais temer de apostar
na esperança
na palavra do outro
na seriedade
na amorosidade
na luta em que se aprende
o valor e a importância da raiva.
Jamais temer de apostar demasiado
na liberdade
 
III
Apesar de tudo,
cabe o direito de sonhar
de estar no mundo
a favor da esperança
que nos anima

Isabel Furini (Vaidade de Autor)


A diarista folheou algumas páginas e voltou a olhar a capa; um “uuééé” muito sonoro escapou de sua garganta

– Mudamos de um apartamento grande para um pequeno e temos muitos livros e pouco espaço.  Pode deixar na mesa que eu mesma guardo, Wanda.

Ela olhou para mim com curiosidade:

- Nunca vi tanto livro. Você já leu tudo isso?

- Claro, já li... -  respondi com orgulho.

- Puxa! Leu tudo isso! -  exclamou ela.

Eu estava ficando vaidosa com sua admiração, quando Wanda acrescentou:

- É livro para caramba e você leu tudo. Você sim que não tem nada para fazer na vida, né?

Caminhou até a geladeira:

- Só ler, ler... - resmungou, mexendo a cabeça para os lados e enrugando o nariz como quem cheira couve podre.

Tentei ocultar minha decepção e falei:

- Wanda, vou lhe dar um livro de presente.

Procurei um de minha autoria e dei para ela. O fiz por puro egocentrismo. Todo autor no fundo é egocentrista, quer mostrar-se.

- É de sua autoria? – perguntam com os olhos arregalados as vizinhas.

A gente tem a oportunidade de mostrar o trabalho, desce os olhos com fingida humildade e afirma com um leve movimento de cabeça. Eu imaginava meu momento de triunfo... saboreava mentalmente o triunfo.

A diarista folheou algumas páginas e voltou a olhar a capa. Um “uuééé” muito sonoro escapou de sua garganta. Senti-me triunfante, ela descobrira o meu nome.

A diarista voltou-se para mim e perguntou:

- Sem figuras?

- É... – respondi, já um pouco acanhada com o tom da conversa.

- Livro chato, né?

-  Pode me devolver. Melhor eu procurar outro com figuras.

Devo admitir que a diarista me deu uma lição. Sim, Wanda é a melhor pessoa do mundo para derrubar a vaidade de qualquer escritor.

Fonte:
Olho Vivo

SPINA – Nova Forma Poética (Antologia Poética) 1

Da esquerda para a direita
(1a. Linha) – Antonio Queiroz, Ana Cláudia Gonçalves - Ronnaldo de Andrade - Tânia Maria Gimenes Brochini, Iran Maceno dos Santos.
(2a. Linha) – Artur José Carreira, Ana Meireles, Solange Colombara, Beth Iacomini

ANA CLÁUDIA GONÇALVES

DOS FARDOS QUE NÃO ME CONVÉM

Carrego pesada bagagem.
Um fardo desnecessário
De sentimentos hostis...

Peso morto que não convém.
Âncora de amarguras, de dissabores
Toda sorte de sentimentos vis.
Hei de banhar- me em desapego.
Recompor alforjes de sonhos pueris.
- - - - - –

ANA MEIRELES

AMBÍGUA VIDA !

Padeço de dor
Agora, nesta hora
Ninguém me ouve.

A gemer contorço meu corpo
Não sabia que saudade doía
Choro, pergunto o que houve?
Dizem-me: a vida é ambígua
Morre-se, vive: Deus nos louve.
- - - - - –

ANTONIO QUEIROZ

INTENTO

Intento ser desbravado,
na odisséia vivente,
firme sob ações.

Alma a tragar levianas paixões,
exaltando da pureza da vida
suas dúvidas, encantos, quiçá senões.
Ser massa suada do trabalho,
noites inteiras de despertos serões.
- - - - - –

ARTUR JOSÉ CARREIRA

ÁRVORE

Raízes ao largo
Desenhando todo tronco
Até a ramagem

Espalham folhas todas ao léu,
Movimentos de vento em balanço
Sem direção, sentido, apenas imagem.
Dançam num balé sem contentamento
Numa vaga sempre longa viagem.
- - - - - –

BETH IACOMINI

RENASCER DAS CINZAS

Imploro ao Céu
Amanhece minha alma
Fugidia de mim!

Poesia sombria a me perseguir
Nesta noite vazia de amor.
Caminho pelos ares, busco-me assim!
Estrelas radiantes chegam com abraços...
Que eu possa dormir, enfim…
- - - - - –

IRAN MACENO DOS SANTOS

CORSÁRIOS

Vestido de inspiração,
feito astro incandescente
rasgo céus imaginários.

Desnudo letras vivas em poesias
que brilhantes feito belas estrelas
romanciam mitos, da Arte, templários.
Trazendo doce magia, fascínio encanto
Lembrando histórias de antigos corsários.
- - - - - –

RONNALDO DE ANDRADE

AQUELAS LINDAS PROMESSAS
TORNARAM-SE TERREMOTOS

Abalam as paredes
de minha memória,
arrancam meus ais

ao descosturar certos desejos adormecidos
nos despenhadeiros implacáveis do coração,
causando-me uma consternação que jamais
considerei possível acontecer, aquelas juras.
Infelizmente, restou enfermidade, nada mais!
- - - - - –

SOLANGE COLOMBARA

MIRAGEM

Relances do tempo
traduzem em ecos
sua suave história,

apenas resquícios de uma trajetória.
A memória não distingue momentos
futuros, talvez breve lacuna aleatória.
Um oásis reflete diversas passagens,
estremeço em cena, intuo dedicatória.
- - - - - –

TANIA MARIA GIMENES BROCHINI

Naquela boca suculenta
Cabem tantos sabores.
Doce suspiro, apetece!

Anoitece, deita-se em qualquer cama
Despudorada, vive como Diabo gosta.
Luxuria da madrugada não amanhece,
Agua benta lava pecados. Purificada,
Alimenta famintos. Caridade Deus agradece!

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Sobre esta nova forma poética veja em https://singrandohorizontes.blogspot.com/2020/07/ronnaldo-de-andrade-spina-nova-forma.html


Fonte:
Facebook Spina (Nova Forma Poética)

Carla Rejane Silva (O Reflexo de minha Alma)

 


Olhando no espelho da minha alma, juro ter visto o reflexo de meu “eu interior” de uma forma diferenciada. Todo ele se abriu como um leque necessário às minhas tristezas e agonias. Talvez por isso, me senti despida, sem roupas de sentimentos. Em caminhos opostos e tortuosos, pressenti um turbilhão de rugas expostas, refolhos e carquilhos adentrando a minha alma.  Tudo, em derredor de mim se fez, ou melhor, tudo em redor de mim é solidão e tristeza. Somente tristeza e solidão. Agonia e dissabores para ser humano nenhum colocar defeito.
 
Num abrir e fechar de olhos me perco nas batidas do meu próprio silêncio. Um silêncio que, de repente, se vê queimado pelo fogo da intolerância, e não só dela, da insensatez também. Tudo por causa daquelas palavras que me foram ditas assim, sem mais nem menos, sem que eu esperasse. Ou quisesse. Ou imaginasse um dia ouvir. Aquela chuva de frases pronunciadas no calor do desespero, na sofreguidão de um momento cruel e bárbaro, bárbaro e cruel. O problema “a depois”, foi que tudo se transformou num momento doloroso que me aniquilou. Enfim, por fim, o fato é que essas ações, chuvas de frases perfuraram com profundidade minha desilusão que, sem saída, se viu às raias da loucura.  

Nesse tormento imensurável e abissal, que me transportei, me perdi sem ter como voltar atrás. Acredite! A minha vida, aquela vidinha vivida somente para seus costumes, minhas ganas e manias, se perdeu ao sabor do nada, unicamente por sentir que seus olhos enxergavam apenas meus anos vividos e o tempo transcorrido. Que pena! Que grande e imensa pena!
 
Bem sei, não posso mudar o tempo, tampouco os anos. Não posso retrogradar, tipo ser jovem de novo, me refazer, me reconstruir, para fazer bem ao seu ego esmaecido. Hoje, minhas primaveras são floridas, alastradas de pétalas de rosas e margaridas. Em cada ruga de meu rosto pálido há uma flor. Uma flor em ascensão. Porém, em queda também. Em cada flor, um amor... Isso somente foi o que me restou: amor, carinho e ingenuidade. Ah, se você aceitasse as minhas doces imperfeições! Sei que nesse mundo, às vezes, com o passar das primaveras, ficamos com os passos mais lentos e os pensamentos  desgastados, descoloridos, e claro, menos atrevidos.
 
Em consequência, o coração entra em dessintonia. Apenas emite um sussurro embrutecido, como se fosse um desatino vulgar. Às vezes, parece mavioso. Às vezes, não. Tudo embola numa arruaça entorpecida. Sei que as belas flores você cobiça, e o faz com razão. Por isso lhe digo: essas flores possuem os perfumes mais suaves. Com certeza lhe agradarão como merece. Eu, com minhas doces e lindas rugas, apesar dos pesares, as pessoas me dizem ser eu uma pessoa abençoada. Por certo!  

Saiba, cheguei até aqui sem pisar ou destratar quem quer que seja. Seja uma pequena formiga, seja um leão faminto, um ser carente de amor e afeto. Se você não está focado nessa espécie de meta que lhe apresento, então me deixe seguir em frente. Todavia, lhe peço, doravante, se você ama as belas flores de um jardim florido, aberto em quimeras, guarde para si. Ponha num cantinho oculto bem lá no fundo do seu coração, antes que ele se abra em solidão imensuravelmente sem volta.
 
Não precisa se fazer faceiro falando para o mundo ao seu redor que não gosta das rugas encontradas em meio a um vendaval de pequenos caprichos. Onde somente você vai encontrar sinceridade, e muito gostar. Um gostar intenso, sentido e profundo. Feliz, eu digo, perco meu brilho, mas não quero ser para você uma em muitas que você brincou e desprezou. Posso não ser jovem, bela, formosa, saltitante, mas meu coração é frágil. Débil, raquítico, tênue, inválido e adinâmico. Como uma folha solta, livre... Sem rumo, autônoma... Desprendida... Perdida em meio ao sabor árido do vento...
 

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza (Vila Velha/ES)

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 347

 

Luís da Câmara Cascudo (Sapucaia Roca)

 

Sapucaia-Roca* é uma pequena povoação à margem do rio Macieira. Pouco abaixo do lugar em que se acha assentada, referem os índios que existiu outrora uma outra povoação, muito maior do que essa, e que um dia desapareceu da superfície da terra, sepultando- se nas profundidades do rio.

É que os muras*, que então a habitavam, levavam a vida desordenada e má, e nas festas, que em honra de Tupan celebravam, entregavam-se a danças tão lascivas e cantavam cantigas tão impuras, que faziam chorar de dor aos angaturamas, que eram os espíritos protetores, que por eles velavam.

Por vezes os velhos e inspirados pajés, sabedores dos segredos de Tupan, haviam-nos advertido de que tremendo castigo os ameaçava, se não rompessem com a prática de tão criminosas abominações.

Mas cegos e surdos, os muras não os viam, nem os ouviam. E um dia, em meio das festas
e das danças e quando mais quente fervia a orgia, tremeu de súbito a terra e na voragem das águas, que se erguiam, desapareceu a povoação.

As altas barrancas que ainda hoje ali se vêem atestam a profundidade do abismo em que foi arrojada a povoação.

Depois, muitos anos depois, foi que começou a surgir a atual povoação, que ainda não pôde atingir o grau de esplendor da que fora submergida.

Foram de novo habitá-la os muras; mas em breve, por entre a escuridão da noite começaram a ouvir, transidos de medo, como o cantar sonoro de galos, que incessante se erguia do fundo das águas.

Consultados os pajés, que perscrutavam os segredos do destino, declararam estes que aquele cantar de galos, ouvido em horas mortas da noite, provinha daqueles mesmos angaturamas, que deploraram outrora a sorte da povoação submergida e que, sempre protetores dos filhos dos muras, serviam-se do canto despertador dos galos da sapucaia-roca submersa, para recordarem o tremendo castigo por que passaram seus maiores e desviarem a nova geração do perigo de sorte igual.

É este o fato que deu origem ao nome da povoação: Sapucaia- Roca.
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NOTAS:
O Cônego Francisco Bernardino de Souza (n. 1834) recolheu esta lenda quando em missão científica.

Sapucaia-Roca - casa da sapucaia, casa da galinha, galinheiro.

Muras - A nação mura infestava as margens do Amazonas atacando não só os viajantes como as outras nações indígenas, vivendo de roubo e pilhagem. Assim, parece natural que seja atribuída à nação mura a lenda universal de cidades submersas por castigo ao desregramento.


Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas Brasileiras para Jovens. Projeto LpT (Livro para Todos).

Cecy Barbosa Campos (Versos Perplexos) I


VERSOS PERPLEXOS

Crianças carregam armas
e jovens, com semblante fechado
se esgueiram atrás de muros
espreitando casas.
Mulheres engendram planos
enquanto homens decepam vidas,
filhos matam mães
e pais matam filhos.
O ar não rescende ao cheiro de flores
mas é possível sentir
o cheiro de sangue fresco
que jorra todos os dias.
Já não encontro as estrelas
que, lá do alto,
vigiavam os passos de minha infância
e iluminavam os caminhos.
Só encontro as câmeras de vídeos
observando os passantes
e denunciando maldades.
Já não vejo a lua que chega,
faceira,
para pratear meus versos.
Olho,    sem entender,
o mundo que me cerca
e só consigo mergulhar
em minha perplexidade.
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ANSIEDADE

Fujo da escuridão!
Quero a luz do saber,
o conhecimento da verdade,
o esclarecimento das mentiras,
o vislumbrar do sol.
Não entendo os morcegos
na escuridão das cavernas
nem a busca de ilusões
que encobrem a realidade.
Abomino
a falsidade dos améns
e o disfarce dos demônios
que confundem caminhos.
Quero enxergar borboletas
e ver estrelas que existem
apesar dos edifícios
que arranham céus
e limitam horizontes.
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ASAS

Preciso de asas
para poder partir
e, subitamente,
poder voltar.
Mergulhando no espaço
inundada de silêncios
atravesso auroras
e vou me perder
em tardes luminosas.
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FIAT LUX

O dia abriu os olhos
e enxergou, com tristeza,
as misérias do mundo.
Vendo homens e mulheres
maltrapilhos,
aconchegados em vãos de portas
que para eles
nunca se abririam,
chorou.
Não conseguiu acender as luzes
do sol,
nem conseguiu fazer
a luminosidade da alegria
baixar sobre aquelas cabeças
sem teto.
A escuridão permanece.
Falta luz às cavernas
da desumanidade
e da ignorância.
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INCOMPREENSÃO

Não quero falar
nem explicar.
Busco ocultar
esta opressão
que me esmaga o peito
e quase faz jorrar
lágrimas dos meus olhos.
Contenho-as.
Mesmo sozinha
preciso escondê-las
de mim mesma.
Não adianta falar
o que ninguém vai escutar
ou entender.
Engulo a angústia.
O pedido de socorro
que teima em saltar,
tem que silenciar
dentro de mim.
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LEMBRANÇAS

As lembranças me atingem
filtradas por censuras
e pela vontade
do que não foi.
Aos poucos
ficam dispersas
e apagam-se
como o clarão de velas
bruxuleantes.
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MENTIRAS

Mentindo
descaradamente,
segue o Homem,
segue o Mundo
sem distinguir a verdade
de tão assumidamente,
viver na mentira,
cotidianamente.
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PARTES

Sinto que sou fragmento
em busca do todo.
Vou me perdendo
pouco a pouco
e os sons, ao meu redor,
lentamente se esvaem.
Onde estará
o meu ser total?
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PROCURA

A noite se alonga
formando círculos viciosos
de enigmas.
Meus olhos buscam
deslindar fios
que se avolumam.
No seu emaranhado
a minha visão
se esvai.
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SUFOCO

Um grito
entalado na garganta
sufoca a dor,
devora ânsias
e silencia gemidos
que ficam perdidos
ao sabor do vento.
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TRAVESSIAS

Transformei-me em barco
e atravessei oceanos
perdendo os rastros
das maldades humanas.
Encerrei-me em versos
e habitei passarinhos
que cantaram em mim
momentos crepusculares.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro gentilmente enviado pela poetisa.

Malba Tahan (A Esposa dos Dois Maridos)

 

 Tenho tua imagem nos meus olhos; o teu nome nos meus lábios; a tua lembrança no meu coração. Como julgas, então, que podes estar ausente de mim?
Ben Al Nasir (1163-1223)


Em nome de Alá, Clemente e Misericordioso…

Foi em Saida, (1) a pitoresca cidade da Argélia, que ouvi, pela primeira vez, o nome do justo cádi(2) Rafik ben-Najm (3) Fares Hadjdjat.

Um beduíno(4) chamado Abib, guia de caçadores, homem vivo, falador, confidenciou-me, certa manhã, na mesquita, junto à fonte das abluções:

— O cádi Rafik ben-Najm é um notável ulemá, um sábio. Sábio e justo. Justo e profundamente humano. Não existe, nas terras argelinas, homem mais digno da nossa admiração e do nosso respeito.

E Abib, sempre exuberante, narrou-me espantosa aventura, ocorrida em Mascara, na qual o cádi Rafik brilhava como autêntico herói das Mil e uma noites. Outros casos, mais estranhos, ouvi (uma semana depois) de dois rumis, compradores de fumo.

Mais tarde, em Argel, conversando com um guitarrista, chamado Saliba ou Taliba (não me lembro bem), recebi novos informes sobre o famoso juiz Rafik, o sábio.

— É extraordinário — confirmou com veemência o guitarrista. — Não é possível encontrar, entre os muçulmanos, homem tão surpreendente. Conhece até as letras misteriosas do Livro de Alá. (5)

Aqueles elogios (ditados pela sinceridade popular) despertaram em mim vivo desejo de conhecer o prestigioso e justo cádi Rafik ben-Najm Fares Hadjdjat.

Quando estive, pela terceira vez, em Khalfallah, (6) vendendo louças, relógios, tecidos e comprando pistache (serviço exclusivo do xeque Abd el Rahmã), tive a excelsa ventura de conhecer pessoalmente o justo cádi Rafik ben-Najm.

Será interessante, ó irmão dos árabes, (7) contar o caso como ocorreu.

Na faina diária, em busca de bons negócios, eu havia saído com dois criadores de ovelhas, de Maalif, (8) a fim de levá-los à presença do xeque Abd el-Rahmã, o homem mais violento e impulsivo que conheci até hoje. Ao atravessar pequena povoação nativa, avistei inquieta multidão que se amontoava na porta de uma tenda. Achavam-se ali mercadores árabes, berberes do deserto, nômades esfarrapados e até mulheres. Indaguei do que se tratava.

— É o sábio e justo cádi que está julgando — disse-me um berbere, maneta, de turbante sujo, remordendo dois galhinhos de raque. (9)

— O justo cádi Rafik ben-Najm?

— Sim, esse mesmo — corroborou com voz meio cantada o meu informante. — Já está no terceiro caso.

Voltei-me para os homens de Maalif e disse-lhes numa decisão inapelável:

— Esperem por mim. Um instante.

E meti-me no meio dos curiosos. Depois de alguns empurrões e muitas pragas (três pragas e meia para cada empurrão), consegui chegar ao interior da Kaimat al-hadl (Tenda da Justiça), que era, aliás, ampla e confortável, com sete panos listrados. Reconheci logo o honrado e prestigioso cádi. Estava sentado, pernas cruzadas, em grande almofada, e tinha à sua direita, sobre pequena banqueta, soberbo exemplar do Alcorão. Abria-se, na frente do juiz, largo círculo vazio. Para aquele círculo eram conduzidos os réus, as testemunhas, os acusadores e os litigantes. Atrás do justo cádi, também sentados à moda árabe, achavam-se seus dois auxiliares e cinco guardas armados com espadas recurvas de aço indianizado. Os secretários anotavam, em grandes livros de capa escura, os nomes que interessavam, os fatos que ocorriam e as decisões do cádi. No alto, no centro de belo escudo prateado, lia-se esta sentença:

Fihilm alauiát ua adlihem iajed addoafa amaluon (Na bondade e na justiça dos fortes reside toda a esperança dos fracos).

Observei o justo cádi. Era homem de meia-idade; discreto e impecável nos trajes; rosto largo, barba preta e bem-cuidada. Fisionomia simpática; olhar expressivo. Os seus gestos eram serenos. Deixava, ao mais rápido exame, a impressão de ser pessoa culta e finamente educada.

Um árabe agigantado, de roupa escura, turbante amarelo e semblante carrancudo, perfil adunco de coruja, que se achava de pé na primeira fila dos assistentes, depois de consultar uma folha de papel, anunciou em voz alta:

— Vai ser julgado agora, pelo nobre e honrado cádi Rafik ben-Najm Fares Hadjdjat, representante de nosso governador, o caso da jovem Najat (10) bint-Djelfa, (11) que é reclamada por dois maridos. (Ele proferira o nome feminino — Na-já — separando bem as sílabas.)

Tudo parecia seguir, para mim, um rumo bem curioso. O argeliano do semblante carrancudo bateu palmas. Aqui e ali brotavam, entre os presentes, gestos de impaciência e curiosidade. Uma rapariga, seguida de dois homens, atravessou, aos arrancos, o grupo compacto dos curiosos e foi colocar-se no centro do círculo livre, em frente ao cádi.

Era aquela a jovem de Djelfa que os azares da vida levaram, com dois maridos, ao tribunal. Devia ter, no máximo, vinte ou 22 anos. Seus olhos eram negros bem rasgados e vivos; os cabelos castanhos pareciam brilhar sob o lenço de seda azul que lhe cobria a cabeça. Ostentava um fustam (12) discreto e benfeito. Em seu braço esquerdo, moreno e roliço, rebrilhavam três largas pulseiras de ouro.

À direita da graciosa Najat postou-se, logo, o primeiro marido. Era um tipo forte, muito moço, de aparência sadia, rosto avermelhado. Trazia sobre a cabeça, retorcido para a esquerda, um gorro sujo de pele de coelho. Os seus trajes descuidados davam a impressão desagradável de pessoa grosseira e desleixada.

O outro, o “segundo marido”, ficou, um pouco enleado, à esquerda da esposa. Era bem mais velho e bem diferente do primeiro. Teria, talvez, cinquenta ou 55 anos (sanat). Sentia-se a distinção inconfundível de sua figura, desde o turbante de seda (elegante e discreto) até os sapatos escuros, de bico fino, que reluziam em seus pés. Fazia-se acompanhar de soberbo cão vermelho de fina raça (como era belo o animal!). Logo que o dono parou (ao lado de Najat), o cão deitou-se, com solenidade, a seus pés.

Tudo recaiu em silêncio. Não bolia o mais leve sussurro.

— Liatakalam az-zauj al-aual! (Que fale o primeiro marido!) — ordenou o “justo cádi” (13) com voz serena.

O jovem do rosto avermelhado, para atender o juiz, passou a mão pelo queixo, ajeitou a cinta, cuspiu para o lado, relanceou um olhar de ódio ao rival e assim falou, desenvolto, de semblante iroso:

— Chamo-me Hassã Rida e sou natural de Oran, (14) onde, ainda em Djelfa, em trabalhos de estrada, conheci Najat, filha de Jamil, (15) o carpinteiro. Casamo-nos. Fomos muito felizes. Juntamente com seus pais, levei-a, mais tarde, para Blida; (16) de Blida fomos para Argel. Nessa cidade conheci vários mercadores gregos. Desejoso de viajar pelo mundo e enriquecer depressa, coloquei-me a serviço dos aventureiros gregos e parti, em grande veleiro, para Kubros. (17) Deixei Najat aos cuidados de minha sogra. Não fui feliz nessa viagem. Ocorreu uma desgraça. O nosso navio, em alto-mar, foi atacado por piratas turcos e incendiado. Juntamente com vários companheiros fui aprisionado pelos piratas e vendido, como escravo, em Constantinopla. Passei três anos sofrendo todos os horrores do cativeiro. Durante a minha longa e involuntária ausência, a mãe de minha esposa fez constar, entre amigos e parentes, que eu havia perecido em naufrágio. Preocupada em abiscoitar o dote que esse velho oferecia, concedeu-lhe Najat (falsamente viúva) em casamento. A culpada de tudo foi minha detestável sogra. Lanat — Allah alaiha! (Que o castigo de Deus caia sobre ela!) Volto agora, ó justo cádi, e venho reclamar minha esposa. Procurei-a loucamente, por várias cidades; andei como um chacal pelos oásis; sofri fome e sede no deserto e vim, afinal, encontrá-la aqui, nesta terra hospitaleira. Sou o marido legítimo de Najat, e esse homem — apontou para o rival — não a quer deixar. Não a quer deixar.

Calou-se, neste ponto, o primeiro marido. Fios de baba desciam-lhe lentos aos cantos da boca.

— Desejo ouvir agora o segundo marido — declarou o justo cádi Rafik ben-Najm. E tamborilava com os dedos da mão direita sobre a capa do Alcorão.

Ao ouvir a intimação do juiz, o segundo marido, depois de ligeiro salam, (18) começou, esboçando um sorriso descorado:

— Tomo Alá como testemunha de minhas palavras (19). Chamo-me Chahin Nadli Hanoun. Dedico-me ao comércio de joias e disponho de casa bem instalada em Argel, mas resido, atualmente, nesta cidade, por motivo de saúde. Tendo ido, certa vez, a Ain-Taya (20) adquirir joias e antiguidades, conheci, no mercado, essa jovem Najat, filha de Jamil. Enamorei-me dela. Informado de que se tratava de uma viúva, cujo marido perecera em naufrágio, falei ao respeitável Jamil, seu pai, e pedi-a em casamento. Obrigou-me Jamil a pagar o dote; não fiz a menor objeção a tal exigência, e entreguei ao pai de minha noiva o dobro da quantia exigida. O nosso casamento realizou-se em Argel, perante o cádi e cinco testemunhas. Sou, portanto, diante da lei, o marido legítimo de Najat, filha de Jamil.

Proferidas tais palavras, inclinou-se, com simplicidade, e acariciou a cabeça do majestoso cão, que já dormitava a seus pés.

Ouvida a narrativa do segundo marido, o digno magistrado voltou-se para a jovem e interpelou-a com mansidão, em tom natural e conciliador:

— E tu, Najat, filha de Jamil, o carpinteiro, que dizes diante de tudo isso? Queres continuar com o teu atual esposo, Chahin Nadli Hanoun, ou preferes voltar para a companhia de Hassã Rida, o teu primeiro marido?

— Justo cádi — respondeu a moça com voz cheia de meiguice, envolvendo suas palavras num sorriso de simpatia —, nada posso resolver. Não desejo, neste momento, decidir do meu destino. O generoso Sidi (21) Chahin é bom, extremamente delicado para mim; vivo bem em sua companhia. — Aqui fez ligeira pausa. E concluiu com candura: — Hassã jura, pela sombra da Caaba, que me quer também…

— Por Alá, justo cádi — acudiu o segundo marido com veemência, apontando para o rival com um meio sorriso, sem expressão: — Eu sei muito bem por que ele a quer. Eu sei muito bem, ó venerável ulemá! (22) Najat é bondosa; é diligente; é meiga; é prestativa. Esse moço julga-se poeta e escreve, todos os dias, versos e mais versos. Najat, para agradá-lo, lia com paciência os versos e decorava os poemas. É por isso que ele a quer!

— Perdão, justo cádi! — revidou asperamente o primeiro marido, transbordante de ódio. — Eu sei muito bem por que esse velho a quer! Najat é boa dona de casa; quieta e modesta; prepara com perfeição os pratos mais finos. Um cabrito assado, com recheio, temperado pelas mãos hábeis de Najat, é uma delícia; o kichk (23) preparado por Najat pode ser servido em palácio, ao sultão do Marrocos! Najat não esquece as plantas e as flores da casa, e cuida até do cão de Sidi Chahin. É por isso que ele a quer, justo cádi! É por isso!

E repetiu, num gesto de repulsivo nojo:

— É por isso que ele a quer, ó justo cádi!

— Está bem — atalhou o juiz, encerrando o debate. — Está bem! Já ouvi todos os interessados. Cumpre-me resolver esse caso de acordo com a lei, sem esquecer a delicada situação de constrangimento dessa jovem reclamada por dois maridos que, em tudo e por tudo, diferem profundamente um do outro.

Fez-se profundo silêncio na Tenda da Justiça. Ficaram todos imóveis. Não se ouvia o mais leve sussurro. O árabe agigantado, do turbante amarelo, com os braços cruzados, aguardava, impassivelmente, a sentença. Só o cão de Sidi Chahin, despertado com os gritos do primeiro marido, agitava sua longa cauda avermelhada.

Nesse momento, senti que me puxavam, com força, pelo braço. Era um dos beduínos de Maalif.

— Venha depressa! — segredou-me nervoso, aflito. — Venha depressa!

O xeique (24) Abd el-Rahmã, seu patrão arreliento, já se encontra, lá fora, à sua espera. Está furioso! Por Alá! Depressa! O xeque quer falar-lhe agora mesmo.

A situação era grave. Algo de anormal havia ocorrido com os nossos rebanhos. Roubo? Baixa de preço? Deixei (debaixo de novos empurrões e novas pragas) o tribunal e, impossibilitado de ouvir a sentença do cádi, corri ao encontro de meu chefe, o rancoroso Abd el-Rahmã. Retornamos, na mesma hora, para o oásis de Maalif.

Na tarde desse mesmo dia, segui, por ordem do xeque, para Saida, e de Saida fui, com mercadores de fumo, para Oran. Viajei mais tarde para a Europa. Passei cinco meses no Havre vigiando os embarques e desembarques de mercadorias. De quando em vez, a curiosidade remordiame o coração:

— Como teria o justo cádi, naquele dia, na Tenda da Justiça, resolvido o caso da jovem que dois maridos disputavam? Teria decidido a favor do apaixonado Hassã, o primeiro marido? Teria dado ganho de causa ao velho e generoso Sidi Chahin?

Dois anos depois, vi-me forçado a percorrer vários centros comerciais de Marrocos. Essa viagem delongou-se por cinco semanas. Na volta, resolvi visitar Tlemcen, a cidade mais curiosa da Argélia. Embora pareça incrível, sob o céu de Tlemcen fui conhecer inesperadamente o surpreendente desfecho da singular aventura dos dois maridos de Najat.

Tudo se passou assim, Maktub! (Estava escrito!)

Uma tarde, sentindo-me bem-disposto, julguei que seria acertado levar algumas peças de roupa a uma tinturaria que ficava no fim da rua Kaldoum. Ao entrar na tinturaria, dei de cara com o tal guitarrista de Argel, chamado Saliba ou Taliba (não me lembro bem), admirador fervoroso do justo cádi Rafik ben-Najm.

— Por Alá, meu amigo! — exclamou o argelino. — Sabes quem está morando agora aqui, em Tlemcen? Aquele famoso cádi, o sábio, que fazias tanto empenho em conhecer. Sim — confirmou risonho o guitarrista. — O honrado e benquisto Rafik ben-Najm.

Ora, o guitarrista argelino não era homem inclinado a rir-se das coisas sérias. Exultei, pois, com a notícia. Colhi, no mesmo instante, todas as informações precisas. O justo cádi instalara-se em pequeno prédio, de janelas verdes, que ficava na rua Ora, dois quarteirões à direita, além da mesquita.

No dia seguinte, depois da prece da tarde, dirigi-me à residência do cádi. Era uma casa simples, mas bem-arranjada e distinta. O pátio interno era um primor pelas plantas viçosas e raras que o adornavam. Homem fino, o justo cádi!

Recebeu-me, atencioso, com vivas demonstrações de simpatia. Contei-lhe que o havia conhecido na Tenda da Justiça, em Khalfallah, durante acidentado julgamento. Procurava-o, naquele momento (disse com a maior franqueza), impelido por uma curiosidade martelante: como havia resolvido aquele interessante e delicado litígio dos dois maridos que pretendiam a mesma esposa?

— O caso da jovem Najat, filha de Jamil?

— Esse mesmo! — confirmei.

— Vou informá-lo da minha sentença — tornou o justo cádi, com alegre sombra. — Antes, porém, vamos saborear uma taça de delicioso café!

Naquele mesmo instante vi surgir, na sala, uma criatura encantadora, elegantemente vestida; trazia nas mãos graciosas (pintadas de hena) (25) larga bandeja de prata com duas xícaras de café de Adem! (26)

Foi, para mim, indescritível surpresa. Logo a reconheci. Era a formosa Najat!

O cádi encarou-me risonho e apresentou, com certo entono vaidoso:

— Eis, ó mercador, a minha esposa! É Najat, a filha de Jamil!

Fitei-o assombrado. Sim, assombrado como o homem que custa a crer no que vê e não se atreve a dizer o que sente. Najat sorriu para mim e proferiu com graça e simplicidade (sua voz tinha a claridade suave do luar):

— Ahla ua Sahla! (Bem-vindo sejas a esta casa, ó mercador!) Rafaaka as Saad! (Que a felicidade seja a tua sombra!)

Tão perturbado fiquei ao ouvir aquela delicada saudação árabe que não soube retribuí-la. Inclinei apenas a cabeça à maneira dos nômades do Saara. Retirou-se Najat. Sentia-se no ar, pela sala, invadindo tudo, o perfume inconfundível de sua encantadora presença.

— Quer saber qual foi naquela tarde, em Khalfallah, a minha sentença? — volveu o cádi. — Vou contar-lhe como tudo se passou.

Feita ligeira pausa, o ilustre magistrado, muito sereno, sem uma sombra no olhar, assim começou:

— Naquele tempo eu era viúvo e pensava seriamente em escolher nova esposa. Tinha, porém, receio de errar. Dada a minha situação, a minha carreira, o divórcio seria desastroso. Quando Najat apareceu, naquele dia, acompanhada dos dois maridos, achei-a muito simpática. O seu ar era simples, mas distinto. Parecia até deslocada naquele meio. Um dos maridos, querendo ferir o seu rival — lembra-se? —, elogiou-a: “É bondosa; é diligente; é meiga; é paciente. Muito hábil e inteligente. Lê versos, aprecia os belos poemas.” O outro marido exaltou-a como dona de casa: “É quieta; é modesta. Um cabrito assado, com recheio, temperado pelas mãos de Najat, é uma delícia! Najat faz um kichk digno do sultão; Najat se desvela em cuidar de tudo aquilo que interessa ao esposo!” Citou até as atenções que ela dispensava ao belíssimo cão de Sidi Chahin. Então eu disse para mim mesmo: “Eis a mulher ideal. Eis a esposa que me convém.” Como resolver, porém, com inteira justiça, aquele caso? Declarei nulo o primeiro casamento de Najat, pois o marido passara mais de 1.001 dias ausente, fora do lar. Chariat! (É da lei!) O segundo casamento (realizado em Oran) também era nulo (de acordo com a lei), pois fora efetuado antes que o primeiro tivesse sido legalmente anulado. Ditadas as duas sentenças, e lavrado oficialmente o ato, Najat ficava livre dos dois maridos. Levantei-me, então, e dirigindo-me ao público (xeques e beduínos que se comprimiam na tenda) declarei: “A jovem Najat, de Djelfa, está livre. Pode escolher, agora, sem o menor constrangimento, o marido que quiser. Se algum dos presentes for candidato, e pretender, também, a mão dessa jovem, queira colocar-se ao lado de Sidi Chahin Hanoun, o segundo marido.” As minhas palavras causaram forte impressão. Correu pela tenda prolongado sussurro de espanto. Ninguém poderia admitir ou imaginar que um juiz, em pleno deserto, promovesse aquele concurso de noivado. Mas, afinal, dois homens menos irresolutos destacaram-se do grupo e apresentaram-se como candidatos. O primeiro, já meio pesado no corpo e na idade, era o dono de grande oficina de ferreiro. Chamava-se Bechara. (27) Não seria exagero dizer que era obeso e disforme. A sua apresentação, como terceiro pretendente, foi recebida com risos deleitados. Acercou-se da noiva bamboleando-se nas pernas. O outro era um belo rapaz, alto, moreno, insinuante, filho de Sidi Omar Wahid, riquíssimo vendedor de goma de mascar. Ostentava no pescoço três ordens de ouro.(28) Era antipático, não obstante suas feições corretas. Foram esses dois os únicos. Vendo que ninguém mais se apresentava — direi melhor: ousava se apresentar —, deixei o meu lugar de cádi, entreguei o Alcorão a um dos secretários e fui colocar-me no extremo da fila, como sendo o quinto e último pretendente. E assim falei: “Que cada candidato dirija um apelo à noiva. Ela, no fim, decidirá.” Coube ao primeiro marido, o jovem Hassã Rida, a oportunidade de iniciar aquele singular torneio sentimental. Erguendo o busto, numa atitude desafiadora, ele disse:

“Querida, não me abandones.” O segundo marido, depois de passar a mão pela testa, proferiu, com arrebatamento: “Najat, meu amor, não posso viver sem ti.” O noivo rotundo, sem sentir o ridículo da situação, um pasmo idiota na face, gaguejou contrafeito: “Prometo, ó formosa Najat, fazer-te feliz!” O rapaz moreno, erguendo a mão, em cujos dedos cintilavam vários anéis, formalizou-se, com ostentação de ricaço, naquele concurso oral de galanteria: “Farei de ti a mulher mais ditosa do mundo.” Cabia-me, afinal, a vez de falar. Procurei ser simples e sincero, e disse apenas: “Najat, minha filha, segue, segue os ditames de teu coração!” A jovem meditou durante um rápido instante. A ansiedade era geral. Qual dos cinco noivos teria a preferência da ex-esposa dos dois maridos? Afinal, estendendo o braço, apontou para mim e declarou resoluta: “É a ti, ó justo cádi, que eu escolho para esposo. Foi o único que me honrou com o tratamento de ‘minha filha’. Espero que sejas, para mim, mais do que um marido: um dedicado companheiro e protetor.” Casamos. Vivemos felizes. Najat tem qualidades que os dois primeiros maridos não chegaram a perceber: é econômica, é leal, extremamente asseada e goza de perfeita saúde. É mãe exemplar…

— Mãe?

— Sim, já temos um filhinho. É um encanto de criança. Dentro de alguns instantes ele voltará do jardim, onde foi passear com a sua ama francesa.

Ao ouvir aquele singular relato, exclamei, sinceramente emocionado:

— Não creio, ó ilustre e justo cádi, que possa haver, sob o céu que envolve o mundo, juiz mais sábio, mais esclarecido e mais liberal! Podendo, na Tenda da Justiça, com o prestígio de sua autoridade, com as regalias do cargo, ter tomado logo posse da jovem, submeteu-se a um concurso livre de títulos e provas, democraticamente, com vários candidatos! Isso é notável!

Respondeu o justo cádi:

— Grato sou, ó mercador, pelo elogio que acabo de ouvir. Acredito que és sincero, pois não me iludo com a música das belas frases.

E rematou:

— Todos os dias, nas minhas preces, imploro a proteção e a misericórdia de Deus! Louvado seja Alá, que fez da boa mulher a esposa perfeita, e da esposa perfeita a companheira ideal! Alá seja louvado!
****************************************

Notas
1 Saida = Cidade da Argélia. Não confundir com Saida (Sídon), do Líbano.

2 Cádi = Em árabe pronuncia-se cáadi. Quer dizer juiz.

3 Ben-Najm = filho de Najm. Se “Najm” fosse uma tribo ou uma família, seria: Iben-Najm.

4 Beduíno = Habitante do deserto.

5 Livro de Alá =Trata-se do Alcorão. Alá é Deus. Portanto, refere-se ao Livro de Deus ou Livro da Lei. No início de certas suratas (ou capítulos) apresenta o Alcorão letras misteriosas para as quais os exegetas mais sábios não acharam explicação.

6 Khalfallah = Cidade da Argélia.

7 Irmão dos árabes = Tratamento carinhoso.

8 Maalif = Lugarejo perto de Khalfallah.

9 Raque = Haste fina; muito forte. Serve de palito.

10 Najat = Nome árabe feminino. Leia-se Najá. Significa: “aquela que foi salva.” No Líbano existe “Saidá te — Anajá”, que significa “Nossa Senhora da Salvação”.

11 bint-Djelfa = Natural (filha) de Djelfa.

12 fustam = Vestido, traje feminino.

13 justo cádi = O árabe não se refere a um cádi sem preceder esse honrado título do qualificativo “justo”.

14 Oran = Cidade da Argélia.

15 Jamil = significa belo.

16 Blida = Cidade da Argélia.

17 Kubros = Chipre, ilha do Mediterrâneo.

18 Salam = Saudação árabe.

19 Tomo Alá como testemunha de minhas palavras = Essa expressão equivale à seguinte: “Juro por Deus que é verdade tudo aquilo que vou dizer.”

20 Ain-Taya = Pequeno porto de Argel.

21 Sidi = Senhor. Homem de prestígio pela idade ou pela fortuna.

22 Ulemá = Sábio. Homem douto.

23 kichk = Prato árabe, feito de trigo, carne e coalhada.

24 Xeique = Chefe, pessoa de prestígio. No Líbano e na Síria (antes da guerra) era o título concedido aos que não pagavam impostos.

25 hena – As mulheres árabes, de fino trato, pintam de henna (trato especial) as unhas, as palmas das mãos e os pés.

26 Café de Adem – Café Moca.

27 Bechara = Significa “boa notícia”.

28 Ordens de ouro = Colares.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 346

 

Moacyr Scliar (Zap)


Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai. É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento – zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso - nua, completamente nua.

Fonte:
Moacyr Scliar. Contos reunidos. Publicado em 1995.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Doutor Luiz, Um Homem Justo


Segunda metade da década de 1960. O prefeito era o Doutor Luiz Moreira de Carvalho, médico, nascido mineiro em Divisa Nova, pioneiro maringaense aqui chegado em 1949. A prefeitura funcionava ainda no prédio antigo, na esquina das avenidas Getúlio Vargas e 15 de Novembro.

Num certo dia lá chegou solicitando audiência com o prefeito um famoso ator que na época fazia sucesso no cinema e nas primeiras produções da televisão brasileira. Virou festa o paço. Funcionários e outras pessoas que no momento estavam no local se alvoroçaram pedindo autógrafos. Doutor Luiz foi informado, mandou o moço entrar e o recebeu com as devidas honras.

O ator estava na cidade para apresentar uma peça de teatro e queria um favorzinho, não me lembro se um patrocínio ou isenção de algum imposto ou taxa. O prefeito perguntou se o espetáculo seria público ou em recinto fechado, com ingresso pago. Sim, o ingresso seria pago, explicou o galã.

Doutor Luiz coçou os fartos bigodes, deu um sorriso meio encabulado, pegou a garrafa térmica na mesa ao lado, serviu um cafezinho ao visitante. Em seguida, com aquele vozeirão de Herón Domingues, caprichou na diplomacia: “Pois é, meu jovem, sou um admirador seu, aprecio muito o seu talento artístico, porém lamento não poder atendê-lo. Como o senhor sabe, lido com dinheiro do povo, que como tal só pode ser gasto quando em benefício da coletividade”.

Continuou: “Se o senhor fosse um artista amador residente em Maringá, e sua apresentação fosse feita com entrada livre, tudo bem. Mas o senhor é um ator profissional e vai receber justa remuneração pelo seu belo trabalho; portanto, como qualquer outro profissional, estará sujeito às normas fiscais vigentes no município. Desse modo, peço que me desculpe, mas não tenho como deferir seu pedido”.

O moço se levantou, deu um abraço no prefeito, respondeu: “Doutor, o senhor acaba de me dar uma grande lição de civismo. Não vou jamais esquecer isso. O senhor tem toda a razão e quem pede desculpa sou eu. Se me permite, vou lhe deixar dois ingressos de cortesia. Será uma honra enorme tê-lo na plateia, juntamente com sua esposa”.

Doutor Luiz agradeceu: “Aceito com alegria, mas faço questão de pagar, como qualquer outro espectador”.

Puxou a carteira, fez o pagamento e pediu um autógrafo do ilustre.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 9-7-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiano Wanderley (Baú de Trovas)


Ao homem, na sua essência,
diante a sua fraqueza,
deu-lhe Deus, com sapiência,
por amparo a fortaleza!
- - - - - –

Ao ver a morte estampada,
na face de uma criança,
vê-se, ali, riste, ceifada,
para sempre uma esperança.
- - - - - –

Até mesmo o passarinho,
deixa a seca, a região,
para formar novo ninho,
onde houver fartura em grão
- - - - - -

Cansado, depois da lida,
no campo, ao anoitecer,
nos dá uma lição de vida,
o pobre aprendendo a ler.
- - - - - –

Com frases que vem do peito,
meu coração se declara
ao verso mais que perfeito:
— A trova, esta joia rara!
- - - - - -

Como que por acalanto,
descerra a noite o seu véu.
Cobre a terra, com seu manto,
expondo estrelas no céu!
- - - - - –

Desista, irmão dessa guerra,
abrace a paz benfazeja,
pois, a vida, enfim se encerra,
onde o combate sobeja.
- - - - - –

Desisti das minhas lutas,
nos sufrágios, com cautelas,
vou votar nas prostitutas,
me cansei, dos filhos delas...
- - - - - –

Deus com sua sapiência,
rima pra Mãe não criou,
preservando, em sua essência,
a pureza ao seu louvor.
- - - - - –

Eis a serra majestosa!
Na natureza, um painel...
— Imponente, imperiosa,
altiva, buscando o céu!
- - - - - –

Ela vem com seu achaque,
nossa paz ela degreda,
a sogra é que nem conhaque:
— Aos poucos ela embebeda!
- - - - - –

Em noite de lua cheia,
envolto a tanto esplendor,
um poeta galhardeia,
versando trovas de amor.
- - - - - –

É uma alegria, incontida,
o nascer do filho amado,
que pelo amor, fez-se vida,
no seio mater, gerado.
- - - - - -

Gaivota! Um doce voar.
Com tua excelsa beleza,
quando pairas, frente ao mar,
és eterna realeza!
- - - - - -

Não podia acontecer!
Do verbo, qual seu conceito?
Diz Juquinha, sem temer:
— Preservativo imperfeito!
- - - - - –

Na roça, o suor do rosto,
mostra todo o ardor da lida.
e nesse cansaço, exposto:
— Uma esperança de vida!
- - - - - –

No plenilúnio, na noite,
do aconchego dos seus ninhos,
vem a lua como açoite,
aclarar os passarinhos!
- - - - - –

No voo, a linda craúna,
com graça e simplicidade,
entoa, por sobre a duna,
seu canto de liberdade.
- - - - - –

O bombeiro, seu Clemente,
no boteco faz seu jogo.
Lá se apaga na aguardente,
combatendo o próprio fogo!
- - - - - –

O fogo traz, seus horrores,
queimada, é devastação,
onde havia vida e cores,
há tristeza e solidão.
- - - - - -

O jardim perdeu as cores,
todo o belo feneceu;
as rosas, sem seus olores,
tal qual o destino meu...
- - - - - -

Para que tenhamos paz,
devemo-nos dar as mãos,
Na vida, nunca é demais,
o afago amigo, um irmão!
- - - - - -

Pelos caminhos da lida,
quantos castelos ergui...
— E esses sonhos, pela vida,
com trabalho os consegui!

Por ser um real tormento,
indefinível ao pintor
e um sublime sentimento:
– A saudade não tem cor!
- - - - - –

Por volúpia ou por feitiço,
todo amor se faz mister,
no encantamento e no viço,
dos braços de uma mulher.
- - - - - –

Quando a lua prateada,
resplandece na amplidão,
faz da trova uma morada,
em forma de inspiração.
- - - - - –

Quando a queimada ameaça
a vida, sem complacência,
a mata, pela fumaça,
vai aos céus pedir clemência.
- - - - - –

Quantas vezes, eu criança,
teus versos, Pai, eu ouvia;
hoje eu guardo a tua herança:
— O régio dom da poesia.
- - - - - –

Relógio que sempre atrasa
e um homem que não garanta,
de nada servem pra casa,
nenhum dos dois, adianta!
- - - - - –

Se a vida, traz cicatrizes
por algo, que nos aporte,
pelos meus dias felizes,
agradeço a Deus, a sorte,
- - - - - –

Se os bons ventos são bem vindos,
por trazer-nos, sempre o bem,
que levem após, advindos,
os nossos males também...
- - - - - –

Só a idade evidencia,
os anos da nossa essência,
nos dando a sabedoria,
consolidando a existência.
- - - - - –

Tendo a trova, como canto,
o poeta, em oração,
põe em versos, todo encanto,
da mais sublime expressão!
- - - - - –

Tens meiguice e sedução,
tens, oh! Mãe, tanta bondade,
és de Deus a criação,
que concebe a humanidade.
- - - - - –

Uma nasce pra titia,
outra varre os assoalhos.
Mulher feia e ventania,
só servem pra quebra-galhos.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Figueiredo Pimentel (O Afilhado do Diabo)

 
O sr. Aleixo Pitada era um homem honrado e bom, estimado, por todos que o conheciam, e vivendo sozinho, num recanto, com sua mulher e seus numerosos filhos. O pobre velho trabalhava na roça todo o santo dia, plantando legumes e tratando das frutas, e, aos domingos, vinha com o tabuleiro de quitanda, à cidade, para vender a sua mercadoria.

A mulher, que se chamava Engrácia, fazia o serviço da casa; ia ao mato cortar lenha, e à noite ainda ajudava o marido, descascando o feijão e amarrando os molhos de vagens. Apesar de trabalharem assim, tanto, passavam mal, viviam na maior miséria, e nunca tinham dinheiro para comprar o que precisavam, havendo até dias que nem tinham pão para os filhos.

– Olha, Engrácia; não podemos dar sustento a nossos filhos, senão trabalhando mais que um boi de canga. Por conseguinte, se viermos a ter mais algum, levá-lo-ei para a cidade, um domingo, quando for vender quitanda, e dá-lo-ei a quem quiser aceitá-lo, mesmo ao diabo, se ele me aparecer.

– Não digas isso, Aleixo, olha, que não será mais uma boca que nos virá atrasar a vida.

– Já te disse, mulher; se nascer mais algum filho, dá-lo-ei a quem quiser. Até ao diabo, repito.

Meses após tiveram outro filho; e, no domingo seguinte, quando o homem foi levar a quitanda ao mercado, a mulher vestiu o pequeno e entregou-o ao marido. Assim que Pitada chegou à cidade, encontrou na entrada da rua que ia dar ao mercado um cavalheiro bem vestido, perguntando o que era aquilo no braço.

– É um filho que minha mulher teve há uma semana, meu nobre senhor, e eu trouxe o pequerrucho para ver se alguém quererá ficar com ele. Sou muito pobre, e não posso sustentar meus filhos. São tantos, que resolvi dar os que vierem a nascer a quem os quiser.

– Pois eu aceito o menino, bom homem. Se tens que o dar a outro, dá-me, que cuidarei bem dele.

O pai entregou a criança, e depois de vender toda a quitanda voltou para casa muito satisfeito por ter encontrado facilmente um homem, tão distinto, de tão belas maneiras, que lhe pedisse o pequerrucho.

Chegando a casa, contou tudo à esposa, que exclamou:

– Que Deus o proteja, e faça dele um bom cristão!
***

O cavalheiro que tinha tomado o menino para criar era o diabo, que ouvira toda a conversa do casal, e viera buscar a criança. O menino vivia muito contente no palácio de seu protetor, onde nada lhe faltava, divertindo-se bastante, porque passeava e brincava em todos os lugares.

Notava, porém, que seu padrinho (como, ele chamava Satã), nunca lhe havia mostrado três quartos existentes no palácio, que estavam sempre fechados, e nos quais nunca tinha entrado. Mas, como o respeitava muito, jamais desejou entrar naqueles aposentos, que tanto despertavam a sua curiosidade.

Uma vez o diabo, indo fazer uma viagem, chamou o menino, que então já tinha quinze anos, e disse:

– Vou dar um passeio, e como me demoro alguns dias, deixo contigo as minhas chaves. Podes correr o palácio todo à exceção destes três quartos onde não deves entrar, o que te proíbo expressamente.

Demorou-se Satã fora do palácio quase um mês; e quando voltou pediu as chaves ao menino, que as entregou sem receio, pois tinha cumprido fielmente ordens recebidas. Passado um tempo, fez uma segunda viagem e, antes de partir, entregou ao afilhado chaves com a mesma recomendação.

Mas o rapaz, desta vez não pôde conter a sua curiosidade, e supondo que o padrinho nunca viesse a sabê-lo, foi abrir os quartos. Descerrando a porta do primeiro, ficou deslumbrado. Era um quarto todo forrado de cobre, transformado numa estrebaria, também de cobre, onde se via um cavalo castanho muito lindo, e que corria muitíssimo.

Entrando no segundo aposento, mais deslumbrado ficou: viu outro quarto todo de prata, e uma estrebaria também de prata, onde comia um cavalo branco, mais bonito e mais veloz que o castanho, o primeiro.

Entrou no terceiro compartimento, e não pôde conter um grito de surpresa. Era todo ele de ouro, e também a estrebaria, na qual estava comendo um cavalo preto mais bonito ainda que os anteriores, e que não corria: voava.

Aqueles três cavalos eram encantados.

O castanho chamou-o, e disse-lhe que não tinha tempo a perder, porque o diabo ia chegar da viagem; e, se o encontrasse ali, era capaz de matá-lo.

O menino ficou com muito medo, mas o cavalo recomendou:

– Vá à cozinha e embrulhe um pedaço de sabão num papel, noutro alfinetes, ponha um pouco de água em um vidro e venha ter comigo depressa. Mas não se demore, senão não respondo por sua vida.

O mocinho fez tudo aquilo, e quando voltou, o animal tornou a falar:

– Agora entre no quarto de ouro, porque ao sair estará dourado, e monte em mim, que quero salvá-lo.

O diabo, ao chegar, não encontrou o afilhado. Correu para os quartos e não vendo o cavalo castanho, compreendeu que o menino fugira.

Montou no cavalo preto e, como havia vento, voou, avistando-o horas depois. Assim que o castanho se viu perseguido pelo seu dono, que já estava perto, disse para o menino:

– Depressa, jogue o papel com sabão!...

Apareceu imediatamente um morro de sabão muito alto, que o cavalo não podia subir, pois escorregava.

O diabo voltou para casa, aborrecido, mas de repente lembrou-se que, se tivesse levado uma faca, bastaria para cortar o sabão para poder passar. Montou novamente e, quando já o ia alcançando, o castanho disse:

– Depressa, jogue o vidro com água, senão estamos mortos!...

Transformou-se o vidro em grande lagoa, e Satã, vendo tanta água, voltou com medo de se afogar. Chegando à casa lembrou-se que com o poder que tinha, podia fazer desaparecer a lagoa.

Tomou de novo o cavalo e voou em perseguição do fugitivo, e quando lá chegou não encontrou mais lagoa alguma.

Foi voando, até que chegou a vê-los de novo.

O castanho, assim. que sentiu a aproximação do diabo, disse:

– Atire os alfinetes, senão estamos perdidos...!

O menino fez o que aconselhava o seu cavalo e viu ,formar-se atrás de si um espinheiro tão cerrado que ninguém podia passar. O diabo, na fúria de pegar a criança, quis romper à força o espinheiro, ficou preso, e de tanto se debater para sair, morreu todo espetado.
***

Os outros dois cavalos foram ao encontro do menino, e depois de andarem muito chegaram à capital do reino, onde governava um rei poderosíssimo. Este rei tinha uma filha chamada princesa Aurora.

Quando ela viu aquele moço dourado, ficou apaixonada, e foi dizer ao pai que se casaria com ele, custasse o que custasse. Sua Majestade recusou-se terminantemente, porquanto o moço não era filho de rei, nem mesmo fidalgo. E receando que Aurora ficasse ainda mais apaixonada ordenou que os soldados formassem um grande quadrado, o colocassem no centro e o fuzilassem.

A princesa, sabendo daquela ordem, pediu-lhe que não fizesse aquilo, porque seria a morte do mancebo, que não poderia escapar a tantas balas. O soberano recusou-se, e as suas ordens foram executadas fielmente.

O moço pediu, antes de entrar no quadrado, que o deixassem morrer montado no seu cavalo:

Deu-se a voz de preparar ... apontar... e partiram os tiros. Aurora, ouvindo aquele estampido, teve um ataque e desmaiou.

Assim que a fumaça se dissipou, viu-se o moço dourado montado no cavalo preto, voando, do outro lado do quadrado.
***

O monarca, em vista daquele caso extraordinário, verdadeiro milagre, estupendo, inaudito, consentiu no enlace, compreendendo que não tratava de uma pessoa vulgar. Assim, pouco depois celebrou-se o casamento e logo que o padre abençoou o casal, viram-se três pombos brancos voando pelo céu em fora.

Eram os três cavalos que iam para o céu, já que o moço dourado não precisava mais da proteção deles.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 345

 

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Sete


QUESTÃO DE PURA LÓGICA

 

O PROFESSOR EVERALDO, da cadeira de matemática ergue com as duas mãos uma folha branca de papel, dessas A-4, e a exibe a seus alunos. Em seguida, pergunta para o Carlinhos, o guri sentado numa das carteiras logo à frente:

— Carlinhos, se eu dividir esta folha de papel em dois pedaços, com o que é que eu fico?

Carlinhos prontamente se levanta e responde:

— Com duas bandas ou duas metades, professor.

— Perfeito. Sandrinho, sua vez. Se eu dividir esta folha em quatro pedaços, com o que é que eu fico?

— O senhor ficará com quatro pedaços, ou quatro metades, professor.

— Ok. Toninho, a mesma indagação vai pra você. Se eu dividir esta folha que está aqui em seis pedaços, quantas partes terei?

— Seis partes, professor, ou seis metades.

— Muito bom, Toninho, muito bom.

O professor Everaldo pega uma segunda folha de papel igual a primeira e insiste na pergunta, agora ao menino Marcelinho:

— Marcelinho, e se eu dividir esta outra folha, ou melhor, se eu recortá-la com a tesoura. — Faz uma pausa, passa a mão na tesoura sobre a mesa — Repetindo, Marcelinho: se eu pegar esta folha e a dividir em oito pedaços iguais, quantos partes terei?

Marcelinho se levanta, pensa um pouco antes de responder:

— E então, Marcelinho, estou esperando. Qual é a sua resposta?

— Oito partes, professor, ou oito metades.

— Bravo, Marcelinho. Pode sentar. Estou vendo que meus alunos, a cada dia se esmeram em aprender a minha matéria. Estão mais confiantes, mais atenciosos. Para falar a verdade, estou gostando de ver.

Após estas palavras elogiosas, o professor volta a recortar a folha  em dez pedacinhos exatamente do mesmo tamanho:

— Bebel, minha linda, sua vez. Como pode ver, cortei a folha de papel em dez pedaços iguais. Vou repetir a pergunta que fiz anteriormente a seus coleguinhas. Pronto. Aqui está. Dez pedaços. Diga, minha princesa, com quantas partes fiquei?

Bebel se levanta de um salto e manda a primeira coisa que lhe vem à cabeça:

— Professor Everaldo, os cortes que o senhor fez aí são iguais?

O professor Everaldo estranha a pergunta, todavia, acha melhor esclarecer a dúvida trazida e deixar a menina em paz com a sua controvérsia:

— Claro, Bebel. Qual a sua dificuldade?

— É que olhando daqui, professor, essas tirinhas parecem diferentes umas das outras.

— Bebelzinha, são iguais.

— O senhor quer dizer, do mesmo tamanho?

— Sim, Bebel. Então, minha garotinha do coração: qual a sua resposta?

— Que resposta, professor?

— Com quantas partes eu ficarei?

— Bem, se o senhor está dizendo que a folha foi repartida em dez partes iguais, o senhor terá um total de dez partes, ou dez metades, ou dez oitavos.

O professor Everaldo sorri:

— Muito bem, Bebel, muito bem.

Assim, nessa ordem segue o professor repetindo idêntica aventura com as folhas A-4. Cada novo aluno chamado, subia o valor dos" despedaços". De posse de uma terceira folha, rasga-a em doze. Ato contínuo, em quatorze e dezesseis. Depois, cada vez em tirinhas menores, separa em dezoito, vinte, vinte e duas, vinte e quatro, vinte e seis, vinte e oito e, finalmente, dilacera em trinta fatias.

Chega a vez do pior aluno da turma. O Emanuelito Bocó. Emanuelito Bocó, além de chato e pedante, tedioso e sem noção, gosta de aparecer, o que faz o professor sair totalmente do sério, ficar irritado e terminar a aula abruptamente querendo mandar todo mundo para o inferno. Entretanto, Emanuelito Bocó faz parte da sua classe. Se não o chamar, terá problemas futuros não só com o Bocó, aluno, igualmente a galera da coordenação cairá feio sobre seus costados:

— Emanuelito, como pode ver, dividi esta A-4 em trinta partes. A pergunta que farei, se prestou atenção à minha aula é, sem tirar nem pôr, a que formulei aos seus demais coleguinhas aqui presentes. Consegui compartimentar na frente de todos esta folha em trinta pequenos estilhacinhos. Quase não consegui. Mas tudo bem. Aqui estão as trinta lasquinhas daquela folha de papel em branco. Com quantos quartos, ou com quantos oitavos eu fiquei?

— O senhor quer que eu fale só dos quartos?

— Por certo, Emanuelito.

— O senhor não vai perguntar depois, pelos banheiros, salas e cozinhas?

— Emanuelito, por favor. Não complique. Estamos tratando de quartos. Quartos!

Emanuelito Bocó, insiste, sorriso desdenhoso no rosto magro. Segue desafiando o pobre mestre:

— Eu sei professor. Mas onde tem quartos, costuma ter salas, varandas, dependências de empregada...

O professor Everaldo a partir daí começa a ficar perturbado e a tremer as mãos:

— Emanuelito, meu filho. Quartos. Piquei a folha A-4 em branco em trinta pedacinhos. Vamos lá. Com quantos quartos fiquei?

— Eu estou na dúvida, professor... Acho que até agora todo mundo aqui respondeu errado à sua pergunta.

— Emanuelito, vou ser mais claro. Esquece os seus coleguinhas, deleta os quartos, etc., etc. Vamos nos enveredar por outra ótica. Se eu rasgar, ou dito de forma mais objetiva, para você me entender... Se eu dividir esta folha em cem ou duzentos pedacinhos, o que terei?

Zombando descaradamente do professor, o moleque manda a pancada final:

— Bem, nesse caso, o senhor não terá nem quartos, nem salas, ou varandas. Menos ainda bandas, metades ou partes, ou pior oitavos. De onde o senhor e a Bebel tiraram o tal do oitavo?! No meu entender, se o senhor rasgar essa folha em trinta, ou cem, ou duzentos pedacinhos, não importa o número, terá sim um montão de papeizinhos picados pra jogar no lixo!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor.