sábado, 23 de dezembro de 2023

José Feldman (Cartão de Natal)

 A todos leitores e seguidores do blog, desejo a vocês e seus familiares um ótimo Natal com muitas alegrias, muita paz. 



Mensagem na Garrafa – 62 –

Artur da Távola
(Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros)
Rio de Janeiro/ RJ, 1936 – 2008

Natal Existencial

Que o seu Natal seja a certeza de que a vida é apenas descoberta, aventura, invenção e mistério. Que seja Natal em você ainda quando lá fora imperem o escárnio e a injustiça. Nascendo natais em você, melhor enfrentará a luta por construir o mundo com justiça e amplidão. Será Natal o que for afetivo, caloroso, verdadeiro e sem disfarces, mesmo o de Papai Noel. Será Natal sempre que o pedido de perdão seja feito e no coração se abrigue o mesmo sentimento de perdão, que cada um aprenderá a dar e pedir.

Será Natal o que se fizer sincero e grato. Será Natal onde o sorriso agradeça, peça, revele ou insinue e jamais disfarce, distraia ou seduza. Há de ser Natal quando todos festejemos por igual, e saibamos avaliar perdas, dores, erros e ofensas e comungar qualidades, feitos, capacidade de prosseguir na luta constante por ver, sentir, saber e enfrentar.

Sendo Natal você pode se comover, dar a mão, chorar à toa, beijar os filhos, pedir a benção ao pai, brincar de bola de gude, boneca ou soldadinho de chumbo. Sendo Natal, você deve se fazer mais simples, chorão ou ciumento, sentar no colo até de estátua, sem temer pedir afago, agasalho, cafuné, abraço de filho, doce de leite ou trégua. Serás o Natal se fores tu. Serás o Natal se fizeres um congresso interior dando a palavra a cada bancada interna. Serás o Natal se te identificares com o melhor e o pior de ti, crucificando-te em sacrifício para elevar-te à altura do melhor de ti e do Pai que elejas como padrão. Serás o Natal se fores presente, embrulho, dádiva, oferta, surpresa, entrega ou adivinhação.

Se, em vez de tu, preferires ser você, então que seja Natal em você quando se estabeleça a capacidade de compreender quem o ofende sem ofender quem o compreende; que seja Natal em você sempre que se descobrir também menor, mesquinho ou pequeno e fizer o esforço de halterofilista da própria moral. Seja Natal em você sempre que se sinta invisivelmente emocionado ou emocionalmente visível, tocável, perceptível, em sua melhor dimensão do sentir. Que seja Natal em você a cada recordação e reconhecimento de quem algo lhe trouxe, mesmo encapado em dor ou perda, espanto, amor ou desilusão.

Ser Natal é olhar o céu para obter silêncio. É saber olhar, pacificar, gesticular a esperança e votar na verdade. Ser Natal é ascender as próprias luzes sem brilho e ouvir, no silêncio, a voz do mistério a proclamar a verdade, numa linguagem oculta, com a qual se consiga alcançar sem saber e perceber sem conhecer. Ser Natal é pular o muro ou entrar pela chaminé para dentro de si e lá encontrar a mesma criança com as enormes barbas brancas da sabedoria milenar da espécie.

Ser Natal é descobrir que Natal é SER!

Benedita Azevedo (Véspera de Natal)

Em meu primeiro ano de trabalho no comércio, aconteceu um fato que me marcou para sempre.

No mês de dezembro trabalhava-se até as vinte e duas horas. Na última semana que antecedia ao Natal, abria-se a loja as sete da manhã e fechava-se as vinte e duas horas.

Logo cedo, colocava-se toda a mercadoria em seus devidos lugares. Após as nove, o movimento era uma loucura. Ninguém conseguia guardar nada. O bom era que ganhávamos hora extra após as dezessete horas. Os salários dobravam no mês de dezembro. Isso fazia com que todos trabalhassem  com muita dedicação.

O Sr. Nunes, um comerciante ainda jovem, muito rigoroso, ganhara fama de mulherengo e brigão, mas, muito trabalhador. Dirigia seu negócio com pulso firme. Treinava seus funcionários com tal exigência que, se alguém era despedido, todos os outros comerciantes queriam contratar. Tinha duas pequenas lojas, mas o objetivo dele era ter um negócio maior, ali, na rua principal.

Naquele ano tinha realizado o velho sonho, a loja vendia tudo que colocasse nas prateleiras. Muitas vezes os contínuos iam às outras lojas apanhar mercadorias esgotadas na nova. O estoque era renovado frequentemente.

Era quase meio dia, naquele sábado. A loja estava menos cheia. Entrou uma criança aparentado nove ou dez anos. Estava descalça, sem camisa, short sujo e rasgado, o nariz escorrendo e um saco de pipoca na mão. Olhou o manequim de um menino, na vitrine, vestido de roupa esportiva, calçando tênis e com uma bola na mão.  Os contínuos ficaram atentos. O menino saiu. Passados alguns minutos voltou. Ficou ali olhando para o manequim. Um dos contínuos falou com a criança que se afastou.

Ao meio dia, foram baixadas as portas de ferro, para que os funcionários lanchassem e colocassem as mercadorias em ordem. Uma hora depois abriram.  O movimento estava menor.

O menininho que estivera duas vezes pela manhã, olhando o manequim da vitrine apareceu. Ficou olhando da calçada. Aos poucos foi se aproximando. Já estava ao lado do manequim da vitrine, outra vez. O contínuo já se aproximava para retira-lo dali, quando o patrão se aproximou, pegou-o pelo braço e arrastou para os fundos da loja.

O quê faria com o menino aquele patrão tão rigoroso? Os funcionários ficaram aflitos. Confesso que fiquei assustada. Olhava constantemente para a porta. Perdi a paciência e resolvi que ia até lá.  Antônia, uma das funcionárias mais antigas segurou-me pelo braço.

- É melhor você não interferir.

- Mas, o menino precisa de ajuda!

- Acho bom você esperar para ver.

A minha ansiedade falou mais alto. Empurrei a colega e entrei na sala do estoque. Não tinha ninguém. Meu coração disparou. Fui até o fundo do grande salão e nada. Voltei e falei meio apavorada.

- Ele sumiu com o menino!

Todos começaram a rir olhando para a porta dos fundos. Eu não sabia o que pensar.  Ao me virar, vejo o Sr. Nunes com o menino pela mão, vestido igual ao manequim da vitrine, de banho tomado e com a bola na mão.

Soube depois, que era hábito do patrão fazer uma surpresa a uma criança, toda véspera de natal.

Fonte:
Recanto das Letras da Escritora
https://www.recantodasletras.com.br/contos/787757

Alberto Moravia (O peru de Natal)

No dia de Natal, quando o comerciante Policarpi-Curcio ouviu no telefone a mulher pedindo-lhe que chegasse em casa pontualmente porque tinha peru, alegrou-se muito, visto que, com o passar dos anos, não lhe restara outra paixão a não ser a gula. Imensa porém foi sua surpresa quando, ao chegar em casa por volta de meio-dia, encontrou o peru não na cozinha, enfiado no espeto e girando lentamente sobre um fogo de carvão, mas na sala de visita. O peru, vestido com elegância antiquada, com um paletó preto com debruns de seda, calças em tecido xadrez preto e branco e colete cinza com botões de osso, conversava com a filha de Curcio. A surpresa de Curcio ao encontrar o peru numa atitude e num lugar tão insólitos foi tão grande que, após as apresentações, aproveitando um momento de silêncio, ele não pôde deixar de inclinar-se para frente e dizer com cortesia mas também com firmeza: "Com licença, senhor... não sei se estou enganado... mas... mas me parece que o seu lugar não deveria ser aqui... repito, não sei se estou enganado... mas... o seu lugar deveria ser..." ia dizer "na panela", quando a mulher que, como ela mesma dizia, conhecia o seu rebanho, pisou-lhe no pé; e Curcio, que sabia por longa experiência o que significava aquele gesto, calou-se. A mulher, então, fez-lhe um sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe em voz baixa e excitada que, pelo amor de Deus, não estragasse tudo. O peru era nobre, rico e influente; enfim, um excelente partido; e já demonstrava um interesse particular e evidentíssimo por Roseta; por acaso, com seus estúpidos comentários, ele queria acabar com o casamento que estava quase para se concretizar? Curcio desculpou-se com a mulher e jurou que não abriria mais a boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião desavisado teve apenas o efeito de fazê-lo pegar o monóculo e examinar o infeliz de cima a baixo. Logo depois voltou a conversar com a filha de Curcio.

"Não adianta falar", pensava Curcio daí a pouco, sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru, "com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente gostaria de torcer-lhe o pescoço". Curcio estava irritado sobretudo com o ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras, sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar, pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru, após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. "Para a panela", pensava, "para a panela...”

Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele, que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta, ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes, ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a sapatilha da moça.

Depois que o peru foi embora, houve uma discussão violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: "Querido peru".

Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida, ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial. "Belo genro", resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru..." Curcio, entrando em casa, podia ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e enrugados e sua antipatia aumentava.

Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada. Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua situação.

Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas. Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injetados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a idéia de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou concordando.

Naquela noite, Curcio, que sofria de insônia, levantou-se para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço estufado, o bico verruguento virado para cima, refletida nitidamente na parede da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direção ao portão. Curcio acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não encontrou nenhum sinal dos fugitivos.

No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.

Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo. Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem nobre nem rico, mas apenas um simples garçom expulso de vários lugares por furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a filha.

Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio teve que desembolsar muitos daqueles "belos tostões" ganhos com tanto sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano passado, quanto a isso podia confiar. "Eis como são as mulheres", pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.

Fonte: Os cem melhores contos de humor da literatura universal. RJ: Ediouro, 2001

Juliano Martinz (Como Escrever Diálogos Realistas em Livros e Textos)

Diálogo é aquele momento em que você se despe da função de narrador, e entrega a responsabilidade para a personagem. O problema é quando ela não tem a mínima ideia de como se desimcubir disso.

A descrição da cena vai bem. A personagem faz o que tem de fazer. O enredo se encaminha para um grandioso clímax. E, de repente, lá estão as duas personagens-chave, frente a frente. O grande momento. Uma delas abre a boca para a grande declaração… e fica com a boca aberta durante vários minutos, sem saber o que dizer.

Não, o súbito silêncio não faz parte da trama. O problema é o branco na mente do escritor, diante da necessidade de criar um diálogo realista e intenso. Uma situação bastante comum entre autores iniciantes.

Você deveria se preocupar com o diálogo de suas personagens? É evidente que sim. Um diálogo bem construído é capaz de enlaçar a atenção dos seus leitores. Por outro lado, diálogos ruins causam o efeito contrário: fazem com que os leitores larguem o livro e procurem algo mais interessante para entretê-los.

Por isso, os diálogos não podem ser colocados na lista dos elementos menos importantes em um livro. O bom escritor precisa dar a devida atenção aos diálogos de suas obras se há de conseguir manter a atenção dos leitores até o fim.

Mas como fazer isso? Como escrever diálogos realistas e envolventes? As dicas a seguir podem ajudá-lo.

OUÇA AS PESSOAS

Você presta atenção no que as pessoas à sua volta dizem? Não, não me refiro à essência do que elas dizem. Estou me referindo à maneira como elas se expressam, como utilizam as palavras para construir suas ideias, como conversam. Este tipo de exercício é essencial para ajudar você a entender um pouco mais a natureza humana e em como as pessoas utilizam o recurso da fala para se expressarem.

Será que o diálogo abaixo é realista?

– Bom dia, Amanda. Que prazer reencontrá-la aqui. Estava com saudades!

– Ah, obrigada. Também sentimos sua falta. Até estávamos falando em você, esses dias. Como tem passado?

– Estou bem. Naquela velha correria de sempre. E você? O que tem feito?

Queeeeee??? Quem fala assim?

Conversas são mais dinâmicas, e isto precisa ficar evidente nas conversas entre suas personagens.

No entanto, há uma palavra de cautela. O que nos leva imediatamente ao passo seguinte.

CORTE O IRRELEVANTE

Corte o irrelevante ao escrever diálogos

Ok, você prestou atenção em como as pessoas falam. Agora imagine que você grave um diálogo e depois transcreve-o, palavra por palavra. Como definiria o resultado? Uma chatice de dar nó no estômago.

– E aí?

– Fala.

– Beleza, cara?

– Tudo na paz.

– E as novis?

– Nem te conto.

– O quê?

Para!!! Ou vou fechar o livro e assistir TV.

Sim, as “conversas faladas” possuem elementos que só são significativos quando pronunciados. Mas quando escritas em um livro, perdem o sentido e podem torná-lo chato e cansativo. Assim, você precisa cortar o irrelevante. Retire os elementos das frases que não contribuem para o enredo.

Assim, você precisa casar as duas dicas acima: escreva como as pessoas falam (ou seja, conversas mais dinâmicas), mas cortando o que é irrelevante.

USE SOMENTE DIÁLOGOS INDISPENSÁVEIS

Cada linha de um diálogo precisa ter uma razão de existir. Mas, se as palavras estão ali apenas para acrescentar volume aos textos, será necessária uma pequena dose de ousadia para cortá-las. Em caso de dúvidas, experimente eliminar alguns dos diálogos e veja se isso desestrutura todo o bom andamento do enredo. Após fazer isso, caso seu texto ficar “manco”, você saberá que o referido diálogo é indispensável.

USE DIÁLOGOS COM FALAS CURTAS

Aquela coisa de construir diálogos onde cada personagem tem uma fala de umas 70 palavras – além de irreal, é bastante cansativo. Pense na primeira dica listada acima: observar as pessoas falando. São raros os casos em que as pessoas ficam discursando enquanto as outras apenas ouvem. Diálogos costumam ser dinâmicos. O próprio termo “diálogo” subentende isso. Portanto, não exagere nas palavras em cada fala. Não use 10 palavras quando 5 dão conta do recado. Isto ajuda a fluir as ideias com mais facilidades, conferem dinamismo à conversa, e são bastante envolventes.

INSIRA DESCRIÇÕES ENTRE AS FALAS

Os olhos dos seus leitores precisam de descanso, e isto se aplica principalmente nos princípios aplicados a como escrever diálogos.

Assim, você pode fazer isso por inserir breves descrições ao longo dos diálogos. Portanto, nada de manter um longo diálogo sem interrupção por uma página inteira (ou várias).

De fato, este tipo de quebra dos períodos ajuda o leitor a visualizar melhor o que está acontecendo ao redor da conversa, além de ser mais fácil para os olhos assimilarem o conteúdo.

CUIDADO COM GÍRIAS E ESTEREÓTIPOS

Tentando deixar os diálogos realistas, muitos escritores apelam para o uso de gírias, estereótipos e até tentam evidenciar o sotaque da personagem.

No entanto, tenha cuidado! Estes recursos costumam levar a distrações, e podem chamar a atenção do leitor para as palavras, fazendo com que ele se desconecte da trama. Isto não significa que não seja bom usar este recurso. Não estou dizendo isso. Mas, é claro que você não deseja que alguns elementos de sua narrativa chamem tanto a atenção dos leitores a ponto de distrai-los do ponto principal.

Por isso, se for utilizar gírias, faça-o com moderação.

DEIXE QUE A PERSONAGEM FALE

Uma boa história precisa de personagens únicas. Isto significa que elas possuem personalidade e carregam seu próprio tom de voz.

Por isso, na hora de construir diálogos, estas características precisam vir à tona. Não permita que você, escritor, fale por eles. Assim, não fique recorrendo a dicionários. Deixe que a personagem assuma controle sobre o que vai dizer.

Sem dúvida, isto faz com que sua fala seja autêntica.

CONCLUSÃO

Como escrever diálogos realistas e envolventes? Bem, como visto, isto é um dom que você precisa estimular. Tais diálogos possuem um potencial tão grande que, em muitos casos, são os elementos da narrativa que realmente fazem diferença. Eles têm o poder de envolver os leitores.

Portanto, dê bastante atenção aos diálogos dos seus contos e romances. Isto vai ajudá-lo a se tornar um bom escritor.

Fonte> https://corrosiva.com.br/como-escrever-um-livro/como-escrever-dialogos-livros-textos/

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Mensagem na Garrafa – 61 -

Célia Evaristo
Lisboa / Portugal

METADE DE MIM

Sou meio mulher,
meio menina,
por vezes inocente,
tantas vezes feminina.

Sou um pouco da noite,
um pouco do dia,
tanto sou o Sol,
como a lua, fria.

Sou luz
e escuridão,
sou sentimento,
sou a razão.

Sou uma réstia de calma
e outra de tempestade,
sou o campo, 
sou a cidade.

Sou a certeza 
e a contradição,
extremamente imperfeita
num todo de perfeição.

Sou um pouco de tudo,
um pouco de nada.
Sou uma prisão,
a liberdade da madrugada.

Sou ave que voa
nas ondas da emoção.
Sou ser que rasteja
nas areias da paixão.

Sou metade minha,
sou metade tua.

(https://www.facebook.com/celiamsevaristo.escritora)

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 4

Balão encerraria a lista dos cavalos que enfeitaram minha juventude, mas... ainda há um outro cavalo, cujo nome rima com o dele, e que não pode deixar de ser mencionado: - o Avião.

E, ao cita-lo, humilde e antecipadamente confesso: – o Avião foi o único cavalo que, em qualquer tempo, cheguei a temer!... Foi ele que quase roubou a fama de boa amazona que me era atribuída desde pequenina!

Por quê? - Bem... É que o Avião tinha fama de bicho bravo... coisa que seus antecedentes confirmavam de sobejo.

Fora rejeitado pela Força Pública, por indisciplinado.

- Depois disto, algo mais precisará ser dito?!

Mesmo aquele que tivera a ousadia de compra-lo para explora-lo comercialmente, somente o alugava para rapazes que comprovassem saber montar... e muito bem!

Mesmo assim, o seu proprietário fazia questão de, antecipadamente, eximir-se de qualquer responsabilidade, em caso de possível acidente.

E bastou que eu tomasse conhecimento disto, para que o Avião entrasse no rol de minhas juvenis utopias. A irresponsabilidade dos meus catorze anos sentiu-se desafiada. Embora guardasse segredo, eu queria porque queria dar uma voltinha naquele mal afamado "avião"!

Mas... como e quando poderia isso acontecer?!

Para a adolescência, barreiras praticamente não existem. O perigo induz ao desafio. E a irresponsabilidade, em geral, é quem comanda as ações!

As férias daquele ano terminavam dali a alguns dias. Com apenas catorze anos, eu aparentava ser já uma mocinha - embora com miolo de menina. O que, em última análise, poderia significar que juízo e senso de responsabilidade talvez não tivessem acompanhado, palmo a palmo, o desenvolvimento daquela meninota, que, embora tímida, não tirava do rol de suas ambições um passeio, ainda que ligeiro, naquele calamitoso Avião proibido. 

Mas... o que fazer para vencer tantas barreiras?!

Sábado. A turma jovem preparava-se para nova cavalgada no dia seguinte. Cada um escolhia a sua montaria, reservando-a, de véspera, pelo telefone.

- Não tive dúvidas! Seria agora, ou nunca! - Pedi o Avião!

A resposta, como de esperar, veio bastante responsável, do outro lado da linha: - Esse cavalo é perigoso! Só o alugamos para quem saiba montar... E muito bem! E também não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer.

Apesar do aviso, confirmei:

- Pode mandar o Avião - "a pessoa" sabe montar...

Creio ter sido essa uma das raríssimas vezes em que desmenti as palavras de minha mãezinha, que sempre afirmava com orgulho: - Minha filha não mente... nem quando sabe que a verdade a prejudicará! - palavras que procuro honrar, até hoje, apesar daquela exceção.

Contudo, em última análise, eu não mentira, sabia montar mesmo, com destemor, com técnica e até mesmo com certa experiência, desde garotinha, o que me levava àquela audácia, dando preferência aos cavalos rejeitados por serem fogosos, ariscos, ou velozes em demasia. Coisas de jovem - quem já o foi me entenderá.

Meu pai havia chegado a Campos do Jordão na véspera, para levar de volta minha mãe e eu. Seria a minha última chance.

Cedo, na manhã seguinte, lá estavam os cavalos no pátio, prontos para o passeio à espera dos respectivos cavaleiros.

Sem perda de tempo, cheguei-me ao Avião. Embora com certa dificuldade, consegui monta-lo sem ajuda. Não houve tempo hábil para que aquele que trouxera os cavalos vencesse o pasmo, ao notar a minha imprudência. Muito menos, para tentar corrigi-la.

- Assim que se sentiu cavalgado, o fogoso Avião provou logo quem era. - Arremeteu "voo", num galope aceso, sem respeitar sequer o que tinha à frente, e, muito menos quem tinha no lombo.

Surpresa geral! Ante o ímpeto do animal, todos se afastaram dando-lhe passagem. E, em galope aceso, aquele Avião, "a jato", ganhou a estrada.

Foi o início do Deus nos acuda! Quem disse que aquela garota atrevida colada ao lombo daquele cavalo doidão, tinha força suficiente para domar o dorso de um ciclone?!

Entreguei-me a Deus e, a única coisa que consegui, com a ajuda d'Ele, foi não permitir que aquele cavalão maluco me atirasse ao chão e me pisoteasse sem dó (castigo até que merecido!).

No mais, o tal Avião fez o que bem quis! Foi por onde bem entendeu e fez o que lhe deu na telha, enquanto aquela moleca irresponsável, nele grudada como um carrapato, prometia a si mesma que só sairia de cima daquele cavalão doido, se lhe levasse o couro junto.

Não sei quando... e não sei como, mas... depois de dar as voltas que bem quis, o Avião resolveu ceder ao meu empenho para que retomasse a mesma estrada que nos levaria de retorno ao ponto de partida, embora mantendo sempre aquele galope infernal que não permitia a menor tentativa de ser freado.

Creio mesmo que Deus teve pena de mim! Apenas por interferência divina, aquele cavalão indomável acataria afinal, minha derradeira tentativa de comando, dignando-se a dar aquela meia volta de retorno, pondo a salvo, assim, os brios de quem, a esse tempo, apenas aspirava por manter-se na sela.

À chegada, pude ver, de longe, uma corrente de mãos formada por várias pessoas, inclusive meu pai. Tentavam fechar a estrada a ver se o corcel desvairado diminuía a marcha. Tudo inútil! A corrente foi rapidamente desfeita, antes que o brutamontes a rompesse e atropelasse todo o mundo com sua audácia.

Ao entrar no pátio da pensão, o Avião como que desligou os "motores". Parou, resfolegante, naquele mesmíssimo lugar de onde atabalhoadamente partira. 

Eu ainda estava como que grudada nele, quando meu pai chegou junto a nós, rosto suado e lívido. Nos seus olhos severos, havia uma expressão indefinida, que me assustou... Mais, talvez, do que o medo causado pelo desvario do Avião!

Não o consegui encarar. Ele já estaria a par de toda a história daquele cavalão. Meu sentimento de culpa era grande! Bem maior do que eu!

Entretanto, para surpresa minha, apesar do seu gênio forte, meu pai não me dirigiu uma palavra sequer de reprimenda.

Com certeza, naquele espaço de tempo, ele já tomara conhecimento da fama daquele cavalo indisciplinado, e, intuíra o perigo que a filha enfrentara, concluindo que as proporções do susto bastariam como lição.

Por minha vez, depois de tantos anos passados, analiso, com olhos de hoje, aquela situação. O que pretenderia aquela garota adolescente, com a audaciosa atitude que lhe poderia ter roubado a vida?!

Questiono-me, invadindo retroativamente meus próprios sentimentos, procurando entender o que teria movido àquela menina tímida que eu realmente era, a expor-se perigosamente de tal forma?!

A conclusão uma só: - Necessidade de afirmação, coisa inerente às ações de qualquer adolescente. Não para mostrar a alguém do que é capaz, mas, tão somente, para provar a si mesmo que é alguém.

Perante os demais, entretanto, tudo não passou, certamente, de mera traquinagem e de um susto merecido, que pedia em resposta alguns petelecos paternos, já que, naquele tempo, palmadas corretivas, quando merecidas, eram válidas.

Contudo, ao relembrar, hoje, a cena e o consequente susto, eu ironicamente reconheça que, no final de tudo e apesar dos pesares, no fundo da alma daquela menina-moça, mais menina do que propriamente moça, deveria persistir aceso, ainda por muito tempo, o rastilho daquela vitória, a suplantar tudo o que de negativo acontecera, E que fora justificado pela realização de tão ousado sonho!

Embora tímida, e apesar do susto, aquela menina provara a si mesma que, mesmo com todo antagonismo à sua volta, lograra por si só dar um passo à frente, rumo à conquista daquele equilíbrio e confiança indispensáveis para chegar ao amanhã à sua espera. E que já lhe batia à porta.

Aprendera a assumir e a defender-se dos próprios erros. Aprendera a enfrentar com coragem os riscos criados por ela mesma. Ciente de que o êxito absoluto depende, principalmente, da confiança em sua própria competência, mesmo que seu valor não seja ainda reconhecido pelos demais. Mas aprendera também que é preciso não subestimar os riscos, para chegar ao sucesso absoluto, com senso de responsabilidade indispensável para dosar impulsos e alcançar a vitória sem traumas.

Afinal, apesar do susto, aquela jovem conseguira o que queria, amparada pela própria determinação, mas, também, com a proteção da Fé, que jamais a abandonou. Como saldo positivo, entendera também, que algumas atitudes podem conter certa aura de vitória, mesmo que o verdadeiro sentido dessa aura tão somente venha a ser reconhecido e usufruído por quem a conquistou.

- Assim sendo, ao tecer estas considerações, embora hoje desaprove aquele ato imprudente, concluo, com um pouco mais de tolerância e até mesmo com benevolente sorriso de vitória, que aquela garota, (tão distante do que sou agora), tinha, sim, certa razão para comemorar tal feito!

Afinal, apesar do susto e com o amparo de Deus, voltara daquela perigosa aventura, não apenas inteira e muito mais amadurecida... E também, o que não pode ser esquecido, literalmente, "sem cair do cavalo!"

Continuando a garimpar no terreno das hipóteses, arrisco ainda uma pergunta para desvendar outro dilema: – Será que aquele olhar significativo de meu pai não incluiria, lá bem no fundo, não apenas susto, mas também, quem sabe, uma pitadinha de surpresa ou, arrisco ir além, até mesmo uma secreta admiração pela façanha da filha?!

Façanha, sim, uma vez que, dentre tantos que a testemunharam, quem se aventuraria a repeti-la?!

Não teria essa pontinha de orgulho sustado os cascudos e também o sermão que aquela inconsequente garota sabia merecer?!

Não indago gratuitamente. Note-se. Meu pai, homem de ação e de poucas palavras, naquela ocasião, não aplaudiu e nem recriminou o acontecido, sem que se pretenda insinuar que o tenha aprovado. Mas... aquele pai bastante severo, agiu como se, de certa forma, minimiza-se a imprudência da filha, que não ouviu dele a reprimenda esperada e, sem dúvida, bastante merecida!

E o peso desta afirmação escuda-se num fato conclusivo:

- Tudo aquilo acontecera num janeiro. Dois meses depois, ou seja, em março, aquela mesma adolescente teria conhecimento de que um dos seus presentes de aniversário de 15 anos, data emblemática, seria, nada mais nada menos, que um lindo cavalo, de nome Expresso, cuja história foi antecipada na crônica - Férias na Fazenda – páginas atrás.

O pretendido presente, embora frustrado pelas circunstâncias já reveladas, não fora cancelado com base no incidente - o que seria o óbvio a acontecer. E mais...As responsabilidades inerentes àquele presente traziam consigo providências a serem tomadas por quem o recebia. Logo, a doação de um cavalo não poderia deixar de ser fruto de um acordo entre os doadores e meu pai. - Sendo que meu pai, por sua vez, já garantira até uma baia para o Expresso, no Clube Hípico de São Vicente. 

Assim, as evidências validam as suspeitas de que havia um complô bastante afetivo, que certamente incluía meu pai, e que, apesar do acontecido, não fora desfeito por ele, como seria lógico esperar.

A própria vida, por si, acabou por decidir o contrário. 

Ou... quem sabe a previdência Divina?!

E aqui fique o registro: - Em minha juventude, foi aquela a última vez, em que banquei a amazona.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 11 –


MISTÉRIO

Sei que tu’alma carinhosa e mansa
Voou, sorrindo, para o azul celeste;
Sei que teu corpo virginal descansa
Aqui da terra num cantinho agreste.

Tudo isto sei: mas tu não me disseste
Se lá no céu, na pátria da Esperança,
Ou aqui no mundo, à sombra do cipreste,
Deixaste o coração, loura criança!

Desceu acaso com o corpo à terra
Ele tão puro e que só luz encerra?
Não creio nisso e ninguém crê decerto...

Entanto, eu cismo que, num vale ameno,
Talvez o seio de um jasmim pequeno
Sirva de berço ao coração de Alberto.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MEU PAI

Desce, meu Pai, a noite baixou mansa.
Nem uma nuvem se vê mais no céu:
Aninharam-se aqui no peito meu,
Onde, chorando, a negra dor descansa.

Quando morreste eu era bem criança,
Balbuciava, sim, o nome teu,
Mas deste rosto santo que morreu
Já não conservo a mínima lembrança.

A noite é clara; e eu, aqui sentada,
Tenho medo da lua embalsamada,
Corta-me o frio a alma comovida.

Se lá no céu teu coração padece,
Vem comigo rezar a mesma prece:
Tua bênção, meu pai, me dará vida!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MATER

Minha mãe! meu amor! Por que voaste, rindo,
Para o país azul e santo da quimera?
Minha mãe! minha mãe! Se o céu é sempre lindo,
Aqui também há sol, também há primavera...

Depois que te partiste e os teus pobres filhinhos,
Pequeninos e sós, deixaste na orfandade,
Ficamos a chorar — implumes passarinhos!
Que os pássaros também soluçam de saudade.

Pobres aves sem ninho, andamos a procura
Do ninho de teu seio imaculado e amigo,
Criancinhas sem berço, em busca de um abrigo
No berço de tu’alma alabastrina e pura.

Não nos deixe sofrer, outrora, quando aflita
Tu nos via chorar — os risos de tu’alma!
Soluçavas também e a tua mão bendita,
Nos enxugando o pranto, o transformava em calma.

Teu seio, ó minha mãe, era a corrente mansa,
Sempre serena e doce em seu gemer eterno,
Onde boiava, a rir, noss’alma de criança
No mimoso batel do coração materno.

Como era bom dormir na curva de teu braço,
Sonhando adormecer ouvindo-te cantar...
Como era bom dormir, ó mãe, em teu regaço,
Dourando-nos o sono a luz de teu olhar!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MORENA

Ó moça faceira,
Dos olhos escuros,
Tão lindos, tão puros,
Qual noite fagueira!

Criança morena,
Teus olhos rasgados
São céus estrelados
Em noite serena!

Que doces encantos
No brilho fulgente,
No brilho dolente
De teus olhos santos!

E eu vivo adorando,
Meu anjo formoso,
O brilho radioso
Que vão derramando.

Em chamas serenas,
Tão mansas e puras,
Teus olhos escuros,
Ó flor das morenas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MANHÃ NO CAMPO

Estendo os olhos pelo prado a fora:
Verdura e flores é o que a vista alcança...
— Bendito oásis onde o olhar descansa
Quando saudades do passado chora.

Escuto ao longe uma canção sonora.
Voz de mulher ou, antes, de criança
Entoa o hino branco da Esperança,
Hino das aves ao nascer da Aurora.

Por toda parte risos e fulgores
E a Natureza desabrochando em flores,
Iluminada pelo Sol risonho,

Recorda um’alma diluída em prece,
Um coração feliz que inda estremece
À luz sagrada do primeiro sonho!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

NO ÁLBUM DE EUGÊNIA

Quanta dor a boiar nos olhos das crianças,
Quanta gota a tremer no cálice das flores...
E aqui neste jardim, plantado de esperanças,
Eu venho inda depor a lágrima das dores.

A lágrima é o meu nome escrito entre as formosas
Páginas de teu livro, um berço de boninas!
Pois não bastava o orvalho a tremular nas rosas,
Nem o pranto a rolar nas faces pequeninas?

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.

Newton Sampaio (Caco de gente)

Na fazenda Ubirajara — situada um pouco além de Japira — ia um rebuliço medonho. Todos se movimentavam. Em tudo se mexia. Aqui, um arranjo melhor nos móveis sem luxo. Uma limpada nas louças antigas, acolá.

— Anda, Tiloca, não seja nhenga.

— Arruma a mesa duma vez, Zita.

E dona Cecília, arrastando seu reumatismo e seus precoces cabelos brancos, não dava trégua às crioulas. Queria tudo em ordem.

Pudera! Logo mais chegaria o primogênito do casal, o Ricardo, mais adulado do que ninguém, e que, justamente por viver quase sempre longe, em estudos superiores, recebia ao chegar os melhores carinhos, os mais desvanecedores agrados. 

O velho Pedro Matoso já partira ao encontro do filho. E, nessa hora, ambos deveriam estar trotando na estrada da fazenda, com toda a certeza. D. Cecília, de minuto em minuto, mandava um moleque à porteira espiar alguma nuvem de pó que acaso se agitasse além, ao lado dos cafezais, denunciando a aproximação dos viajantes.

Algum tempo mais, e saltava no terreiro o vulto guapo do Ricardo. Um longo abraço — desses que parecem espremer toda a saudade do coração — iniciou o rapaz na vida da fazenda onde nascera. Ricardo era um tipo sugestivo. Atleta perfeito. Forte. Corado. Vendendo saúde. E, além do mais, inteligente. De espírito arguto, demonstrado no olhar negro, penetrante.

D. Cecília não se cansava de aconchegá-lo ao peito. Feliz, o amor das mães. E crivava-o de perguntas. Queria saber de tudo. A vida inteira do filho na cidade. Coisas de pensão. Exames. Divertimentos. Estudos...

E Ricardo respondia. Calmamente. Sorrindo. Com aquela maneira toda sua de pesar bem as palavras.

Pedro Matoso andava orgulhoso. O filho saíra-lhe um rapagão. Ufano, contava aos compadres que Ricardo estava para se formar em Direito. Seriam aquelas as suas últimas férias de estudante. Depois, voltaria bacharel. E casado, talvez. Para viver independente. Para exercer a profissão.

Dezembro passou com seu calor insuportável. No céu, onde as nuvens, muito finas, corriam como doidas, andava a mesma claridade estonteante. E em todas as coisas punha o sol prodígios de luz. Um guaretá (planta de folha grande) esguio, chamuscado pela queima de agosto, exibia no alto a pobreza desconsoladora das folhas. E tinha o tronco torto, numa caricatura de desalento.

Janeiro começou. A mesma canícula a prometer chuvas. Ricardo sentara-se num degrau da escada. E alongava a vista, numa cisma insopitável.

Ao canto da casa, mirando fixamente o rapaz, jazia uma figura esquecida. Era a Teca. (Ou, melhor, o “Caco de Gente”, como todos a chamavam). Uma ironia da natureza. Um ser que não deveria ter nascido. O fantasma da sífilis corporizado. Hereditariedade cruel que zombava de suas vítimas. Estatura atrofiada. Um verdadeiro “caco de gente”, mesmo. Mas hipertrofia do resto, quase todo. Mãos enormes. Braços musculosos. Pernas muito inchadas, desiguais. Protuberâncias nas costas — um prodígio de teratologia. No entanto, um rosto sem anormalidades. Iluminado até por dois olhinhos ligeiros, por onde se adivinhava a tragédia íntima. Porque Teca era bem mulher, no espírito. E sedenta de emoções, no passar triste de seus 16 anos.

Recebera-a, por piedade, o velho Pedro Matoso. Havia muito tempo, já. Quando a mãe a abandonara horrorizada com o rebento.

— O que é isso, “Caco de Gente”? Parece que nunca viu o Ricardo? 

Apanhada em flagrante, Teca saiu envergonhada. E desapareceu atrás da casa.

— Escuta mamãe. Tenho muita pena dessa menina. Não gosto mesmo que lhe deem um tal apelido. Eu nunca a chamarei dessa forma. Isso deve desagradar-lhe. Teca tem um espírito, como qualquer outra pessoa. E possui, estou certo, uma sensibilidade aguda. Não vê como ela demonstra pelos olhos o quanto lhe pesa na alma a intuição de sua deformidade?

— Ora, Ricardo. Há mais de 15 anos que me acostumei assim.

“Caco de Gente” ela nasceu, “Caco de Gente” há de ser sempre. Também não sei por que o Pedro ficou com esse bicho... E eu tenho uns pressentimentos com essas coisas...

— Tolices, minha mãe.

— Por que será que o “Caco de Gente” vive a olhar tanto para você? Todos se cansam de surpreendê-la nessa postura de idiota, a examinar, a examinar...

Ricardo levantou-se. Pôs a mão no ombro de dona Cecília.

— Quem sabe a Teca gosta de mim. Isto não me tira pedaço... Os cretinos também sabem amar.

E riu com gosto.

Os cretinos também sabem amar... Ricardo pronunciara essa frase, num assomo de bom humor. E nem lhe dera importância. Enquanto isso, Teca continuava escondida atrás da casa. Não. Ela não era cretina. Era, na verdade, o produto horrendo de entranhas amaldiçoadas. Mas só no corpo. O espírito, ela o conservava esclarecido. Embora não pudesse exprimir as ideias. Produzia sua garganta apenas sons inarticulados.

Teca sofria com isso. Tinha ímpetos de rasgar o peito e mostrar a todos os que dela caçoavam como o seu coração também sabia pulsar, como sua alma podia apreciar as maravilhas da vida.

Quando Ricardo estava para chegar, ninguém notara o seu júbilo. Ia de um lado a outro, manquetolando. Sem definir bem o que sentia. Admirava no rapaz o porte esbelto. A elegância do traje. A maneira de tratar a todos. A delicadeza que lhe dispensava, sem nunca a chamar de “Caco de Gente” — as três palavras que mais a irritavam. E naquele dia quase a surpreenderam em frente ao espelho da filha de dona Cecília, a passar no rosto uma camada de pó de arroz.

O estudante estava em véspera de partir. Na fazenda Ubirajara rondava o espectro das primeiras saudades. Tão vazio iria ficar aquilo sem a bondade do Ricardo, sem as suas risadas francas, sem os inesquecíveis passeios a cavalo, que só ele sabia organizar...

À medida que passavam as horas, Teca se angustiava. Tivera uma conclusão imprevista em seus sentimentos. Imaginava como seria tudo insípido depois que Ricardo voltasse para cidade. E vergava a alma acabrunhada ao pensar que, chegando lá, ele iria tratar do casamento e ceder a sua elegância, a sua grandeza de coração, as suas palavras de afeto, a uma outra mulher que não a ela —miserável “Caco de Gente”.

E Teca, mal acomodada no leito pequeno, resolvia-se insone, sem saber dominar-se. E lhe parecia estar sendo tragada pela bocarra de um destino crudelíssimo, torturante, requintado em angústias sem nome.

A tarde toda “Caco de Gente” andou desaparecida. Também pessoa alguma dera maior importância ao caso. Era hábito do monstrengo, essas fugidas da fazenda...

Na manhã seguinte, resolvera-se o Ricardo a viajar. O cavalo zaino estava à porta, pronto a levá-lo até a próxima estação. Abraçou a todos. E foi com singular emoção que se separou de todas as incontáveis amizades que deixava. Quis dizer adeus também à Teca. Não a encontrou, porém, em casa.

Na estrada orvalhada ainda, pai e filho conversavam, ao trotar dos cavalos.

Num certo momento, para despedir-se dos folguedos da fazenda, Ricardo dispôs-se a galopar um pouco. E logo deixou o velho Pedro Matoso bem para trás.

Naquela altura, o caminho passava por um capão denso. E ziguezagueando em meio das árvores luxuriantes, corria um ribeiro insignificante. Havendo no terreno, porém, um descavado profundo, lá se erguia, em meio à mataria ensombrada, o pontilhão de madeira, construído pela rústica engenharia do sertanejo. Após o pontilhão, que era precedido por uma rampa, tomava a estrada imprevistamente uma subida forte, extensa, para depois continuar sempre amena.

Ricardo percebeu de longe o robusto núcleo de vegetação. Lembrou-se da disposição esquisita do caminho, ali, considerando-o um ótimo ponto para a demonstração de suas qualidades de cavaleiro.

Castigou a ilhargas do animal descansado ainda. E investiu num galope desenfreado. No madeirame tosco do pontilhão, as patas ferradas do cavalo ecoaram fortes. E o estudante fustigou melhor o zaino, frenético de vencer a ladeira num segundo.

Não tinham sido vencidos mais que quatro metros, e esbarrou o busto do rapaz com uma corda estendida de um lado a outro do caminho.

Ricardo não pôde equilibrar-se com o golpe e foi cuspido do lombo do animal. Ao mesmo tempo, um pelotaço de barro ia ferir-lhe impetuosamente a maçã do rosto. Cego de dor, a nuca mergulhada na poeira, o estudante se pôs a espernear.

Imediatamente, saiu do mato, manquitolando nervosa, a figura grotesca da Teca. Ágil como nunca se mostrara, deixou o bodoque na orla do caminho, e, alcançando Ricardo, cravou-lhe no flanco direito a lâmina pontiaguda de uma faca de cozinha.

Ricardo contraiu-se todo, em violento espasmo de dor. De sua garganta partiu um rugido agoniado.

E Teca, os olhos cheios de lágrimas, contrita, enlaçou-lhe a cabeça acariciando-lhe o ferimento do rosto.

Depois procurou os lábios de Ricardo para um beijo selvagem, brutal, onde pôs toda a sua ganância.

Quando o velho Pedro Matoso, ao trote de seu matungo, pôde avistar o pontilhão, Teca já galgava a subida, aos trombalhões, cascalhando risadas histéricas.

E, estendido na estrada, no esforço supremo do derradeiro estertor, o estudante murmurava, acenando ainda com a mão:

— “Caco de Gente... Caco... de... Gente...”

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.