Balão encerraria a lista dos cavalos que enfeitaram minha juventude, mas... ainda há um outro cavalo, cujo nome rima com o dele, e que não pode deixar de ser mencionado: - o Avião.
E, ao cita-lo, humilde e antecipadamente confesso: – o Avião foi o único cavalo que, em qualquer tempo, cheguei a temer!... Foi ele que quase roubou a fama de boa amazona que me era atribuída desde pequenina!
Por quê? - Bem... É que o Avião tinha fama de bicho bravo... coisa que seus antecedentes confirmavam de sobejo.
Fora rejeitado pela Força Pública, por indisciplinado.
- Depois disto, algo mais precisará ser dito?!
Mesmo aquele que tivera a ousadia de compra-lo para explora-lo comercialmente, somente o alugava para rapazes que comprovassem saber montar... e muito bem!
Mesmo assim, o seu proprietário fazia questão de, antecipadamente, eximir-se de qualquer responsabilidade, em caso de possível acidente.
E bastou que eu tomasse conhecimento disto, para que o Avião entrasse no rol de minhas juvenis utopias. A irresponsabilidade dos meus catorze anos sentiu-se desafiada. Embora guardasse segredo, eu queria porque queria dar uma voltinha naquele mal afamado "avião"!
Mas... como e quando poderia isso acontecer?!
Para a adolescência, barreiras praticamente não existem. O perigo induz ao desafio. E a irresponsabilidade, em geral, é quem comanda as ações!
As férias daquele ano terminavam dali a alguns dias. Com apenas catorze anos, eu aparentava ser já uma mocinha - embora com miolo de menina. O que, em última análise, poderia significar que juízo e senso de responsabilidade talvez não tivessem acompanhado, palmo a palmo, o desenvolvimento daquela meninota, que, embora tímida, não tirava do rol de suas ambições um passeio, ainda que ligeiro, naquele calamitoso Avião proibido.
Mas... o que fazer para vencer tantas barreiras?!
Sábado. A turma jovem preparava-se para nova cavalgada no dia seguinte. Cada um escolhia a sua montaria, reservando-a, de véspera, pelo telefone.
- Não tive dúvidas! Seria agora, ou nunca! - Pedi o Avião!
A resposta, como de esperar, veio bastante responsável, do outro lado da linha: - Esse cavalo é perigoso! Só o alugamos para quem saiba montar... E muito bem! E também não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer.
Apesar do aviso, confirmei:
- Pode mandar o Avião - "a pessoa" sabe montar...
Creio ter sido essa uma das raríssimas vezes em que desmenti as palavras de minha mãezinha, que sempre afirmava com orgulho: - Minha filha não mente... nem quando sabe que a verdade a prejudicará! - palavras que procuro honrar, até hoje, apesar daquela exceção.
Contudo, em última análise, eu não mentira, sabia montar mesmo, com destemor, com técnica e até mesmo com certa experiência, desde garotinha, o que me levava àquela audácia, dando preferência aos cavalos rejeitados por serem fogosos, ariscos, ou velozes em demasia. Coisas de jovem - quem já o foi me entenderá.
Meu pai havia chegado a Campos do Jordão na véspera, para levar de volta minha mãe e eu. Seria a minha última chance.
Cedo, na manhã seguinte, lá estavam os cavalos no pátio, prontos para o passeio à espera dos respectivos cavaleiros.
Sem perda de tempo, cheguei-me ao Avião. Embora com certa dificuldade, consegui monta-lo sem ajuda. Não houve tempo hábil para que aquele que trouxera os cavalos vencesse o pasmo, ao notar a minha imprudência. Muito menos, para tentar corrigi-la.
- Assim que se sentiu cavalgado, o fogoso Avião provou logo quem era. - Arremeteu "voo", num galope aceso, sem respeitar sequer o que tinha à frente, e, muito menos quem tinha no lombo.
Surpresa geral! Ante o ímpeto do animal, todos se afastaram dando-lhe passagem. E, em galope aceso, aquele Avião, "a jato", ganhou a estrada.
Foi o início do Deus nos acuda! Quem disse que aquela garota atrevida colada ao lombo daquele cavalo doidão, tinha força suficiente para domar o dorso de um ciclone?!
Entreguei-me a Deus e, a única coisa que consegui, com a ajuda d'Ele, foi não permitir que aquele cavalão maluco me atirasse ao chão e me pisoteasse sem dó (castigo até que merecido!).
No mais, o tal Avião fez o que bem quis! Foi por onde bem entendeu e fez o que lhe deu na telha, enquanto aquela moleca irresponsável, nele grudada como um carrapato, prometia a si mesma que só sairia de cima daquele cavalão doido, se lhe levasse o couro junto.
Não sei quando... e não sei como, mas... depois de dar as voltas que bem quis, o Avião resolveu ceder ao meu empenho para que retomasse a mesma estrada que nos levaria de retorno ao ponto de partida, embora mantendo sempre aquele galope infernal que não permitia a menor tentativa de ser freado.
Creio mesmo que Deus teve pena de mim! Apenas por interferência divina, aquele cavalão indomável acataria afinal, minha derradeira tentativa de comando, dignando-se a dar aquela meia volta de retorno, pondo a salvo, assim, os brios de quem, a esse tempo, apenas aspirava por manter-se na sela.
À chegada, pude ver, de longe, uma corrente de mãos formada por várias pessoas, inclusive meu pai. Tentavam fechar a estrada a ver se o corcel desvairado diminuía a marcha. Tudo inútil! A corrente foi rapidamente desfeita, antes que o brutamontes a rompesse e atropelasse todo o mundo com sua audácia.
Ao entrar no pátio da pensão, o Avião como que desligou os "motores". Parou, resfolegante, naquele mesmíssimo lugar de onde atabalhoadamente partira.
Eu ainda estava como que grudada nele, quando meu pai chegou junto a nós, rosto suado e lívido. Nos seus olhos severos, havia uma expressão indefinida, que me assustou... Mais, talvez, do que o medo causado pelo desvario do Avião!
Não o consegui encarar. Ele já estaria a par de toda a história daquele cavalão. Meu sentimento de culpa era grande! Bem maior do que eu!
Entretanto, para surpresa minha, apesar do seu gênio forte, meu pai não me dirigiu uma palavra sequer de reprimenda.
Com certeza, naquele espaço de tempo, ele já tomara conhecimento da fama daquele cavalo indisciplinado, e, intuíra o perigo que a filha enfrentara, concluindo que as proporções do susto bastariam como lição.
Por minha vez, depois de tantos anos passados, analiso, com olhos de hoje, aquela situação. O que pretenderia aquela garota adolescente, com a audaciosa atitude que lhe poderia ter roubado a vida?!
Questiono-me, invadindo retroativamente meus próprios sentimentos, procurando entender o que teria movido àquela menina tímida que eu realmente era, a expor-se perigosamente de tal forma?!
A conclusão uma só: - Necessidade de afirmação, coisa inerente às ações de qualquer adolescente. Não para mostrar a alguém do que é capaz, mas, tão somente, para provar a si mesmo que é alguém.
Perante os demais, entretanto, tudo não passou, certamente, de mera traquinagem e de um susto merecido, que pedia em resposta alguns petelecos paternos, já que, naquele tempo, palmadas corretivas, quando merecidas, eram válidas.
Contudo, ao relembrar, hoje, a cena e o consequente susto, eu ironicamente reconheça que, no final de tudo e apesar dos pesares, no fundo da alma daquela menina-moça, mais menina do que propriamente moça, deveria persistir aceso, ainda por muito tempo, o rastilho daquela vitória, a suplantar tudo o que de negativo acontecera, E que fora justificado pela realização de tão ousado sonho!
Embora tímida, e apesar do susto, aquela menina provara a si mesma que, mesmo com todo antagonismo à sua volta, lograra por si só dar um passo à frente, rumo à conquista daquele equilíbrio e confiança indispensáveis para chegar ao amanhã à sua espera. E que já lhe batia à porta.
Aprendera a assumir e a defender-se dos próprios erros. Aprendera a enfrentar com coragem os riscos criados por ela mesma. Ciente de que o êxito absoluto depende, principalmente, da confiança em sua própria competência, mesmo que seu valor não seja ainda reconhecido pelos demais. Mas aprendera também que é preciso não subestimar os riscos, para chegar ao sucesso absoluto, com senso de responsabilidade indispensável para dosar impulsos e alcançar a vitória sem traumas.
Afinal, apesar do susto, aquela jovem conseguira o que queria, amparada pela própria determinação, mas, também, com a proteção da Fé, que jamais a abandonou. Como saldo positivo, entendera também, que algumas atitudes podem conter certa aura de vitória, mesmo que o verdadeiro sentido dessa aura tão somente venha a ser reconhecido e usufruído por quem a conquistou.
- Assim sendo, ao tecer estas considerações, embora hoje desaprove aquele ato imprudente, concluo, com um pouco mais de tolerância e até mesmo com benevolente sorriso de vitória, que aquela garota, (tão distante do que sou agora), tinha, sim, certa razão para comemorar tal feito!
Afinal, apesar do susto e com o amparo de Deus, voltara daquela perigosa aventura, não apenas inteira e muito mais amadurecida... E também, o que não pode ser esquecido, literalmente, "sem cair do cavalo!"
Continuando a garimpar no terreno das hipóteses, arrisco ainda uma pergunta para desvendar outro dilema: – Será que aquele olhar significativo de meu pai não incluiria, lá bem no fundo, não apenas susto, mas também, quem sabe, uma pitadinha de surpresa ou, arrisco ir além, até mesmo uma secreta admiração pela façanha da filha?!
Façanha, sim, uma vez que, dentre tantos que a testemunharam, quem se aventuraria a repeti-la?!
Não teria essa pontinha de orgulho sustado os cascudos e também o sermão que aquela inconsequente garota sabia merecer?!
Não indago gratuitamente. Note-se. Meu pai, homem de ação e de poucas palavras, naquela ocasião, não aplaudiu e nem recriminou o acontecido, sem que se pretenda insinuar que o tenha aprovado. Mas... aquele pai bastante severo, agiu como se, de certa forma, minimiza-se a imprudência da filha, que não ouviu dele a reprimenda esperada e, sem dúvida, bastante merecida!
E o peso desta afirmação escuda-se num fato conclusivo:
- Tudo aquilo acontecera num janeiro. Dois meses depois, ou seja, em março, aquela mesma adolescente teria conhecimento de que um dos seus presentes de aniversário de 15 anos, data emblemática, seria, nada mais nada menos, que um lindo cavalo, de nome Expresso, cuja história foi antecipada na crônica - Férias na Fazenda – páginas atrás.
O pretendido presente, embora frustrado pelas circunstâncias já reveladas, não fora cancelado com base no incidente - o que seria o óbvio a acontecer. E mais...As responsabilidades inerentes àquele presente traziam consigo providências a serem tomadas por quem o recebia. Logo, a doação de um cavalo não poderia deixar de ser fruto de um acordo entre os doadores e meu pai. - Sendo que meu pai, por sua vez, já garantira até uma baia para o Expresso, no Clube Hípico de São Vicente.
Assim, as evidências validam as suspeitas de que havia um complô bastante afetivo, que certamente incluía meu pai, e que, apesar do acontecido, não fora desfeito por ele, como seria lógico esperar.
A própria vida, por si, acabou por decidir o contrário.
Ou... quem sabe a previdência Divina?!
E aqui fique o registro: - Em minha juventude, foi aquela a última vez, em que banquei a amazona.
Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário