O piloto Alfredo Fagundes de Moura estava casado há pouco mais de seis meses quando, por determinação da companhia de navegação em que era empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo cargueiro alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A travessia, com os submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas monstruosas e invisíveis, o manto verde do oceano, era, naquele tempo, arriscadíssima: o que, porém, mais afligia o jovem marujo, não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples, tão doce, tão amada, e, o que era pior, tão sozinha no mundo, onde não tinha como amparo senão a coluna de ouro do seu amor.
A ordem de partida fora, porém, terminativa: e, uma tarde, lá se foi o "Capanema", barra afora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o infinito rebanho das ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se sucedendo: Lisboa, Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos, monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por imposição arbitrária das flotilhas inglesas de vigilância. E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de saudade, ao fim dos quais ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas proximidades da ilha fiscal.
A alegria do casal não podia ser maior. Beijos, abraços, lágrimas de contentamento, foram os confeitos de coração na doce festa daquele encontro.
- Estás linda, meu amor!
- E tu, forte, corado, bonito!
E novos beijos estalaram.
Um mês depois, porém, começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido pelo martelo de um pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a sua Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois pequenitos miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira salvar.
Aos olhos do piloto, habituado a ver longe, aquilo parecia incompreensível. Se ele estivera em viagem ano e meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o nascimento daqueles pirralhinhos, tão bem conformados, e que tinham vindo de tempo? O melhor, em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi o que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no mesmo quarteirão.
- O meu caso senhor doutor, é este.
E contou o fato, palavra por palavra, sem omitir a menor particularidade. Ao fim de tudo, o médico fitou-o, indagando:
- Quantos meses o senhor passou fora?
- Dezoito, senhor doutor.
- E quantos filhos sua senhora teve, agora?
- Dois, gêmeos.
O especialista endireitou o "pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na cadeira, e inquiriu, sentindo-se vitorioso:
- Diga-me cá: com quantos meses nasce uma criança?
- Nove.
- Então, está aí! - exclamou o médico.
E batendo-lhe na perna:
- Está claro, homem de Deus! Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove para cada uma. De que é que se admira?
O Fagundes sorriu, desafogado. E levando a mão à cabeça, arrancou, satisfeito, num gesto brusco, o doloroso prego daquela dúvida…
Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.
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