segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Artur de Azevedo (Os dentes do Braz)

O Braz era bonito, mas — coitado! —
Tinha maus dentes; quando a boca abria,
Todo o encanto perdia:
Por isso era calado,
E não ria: sorria.

Mas que namorador!... tinha a mania
De acompanhar senhoras; quando via
Passar alguma sem marido ao lado,
Sendo bela, ficava entusiasmado,
E os passos lhe seguia.

Mais de uma dama, tendo reparado
Que tão belo rapaz a perseguia,
Não se mostrava esquiva ao namorado;
Mas quando descobria
Naquela boca um singular teclado
Em que somente — pobre desdentado! —
Sustenidos havia,
Toda a ilusão se lhe desvanecia.

Muita gente dizia:
— É pena que um rapaz tão adamado
Na boca tenha aquela cacaria,
Quando há dentes postiços no mercado,
E um dentista afamado
Em cada rua chama a freguesia!

O Braz bem percebia
Que aquela boca era o seu negro fado,
Porém não se atrevia
A entrega-la ao dentista; a covardia
Era tanta, era tal, que o desgraçado
Só de pensar no boticão, tremia!

No entanto, o Braz, um dia
Apareceu metamorfoseado,
Mostrando, quando os lábios entreabria,
Dentes que um deus do Olimpo invejaria!

Foi um caso engraçado
Que dos contos a Musa desafia,
E em versos maus ei-lo aqui vai contado:

I

Dissimulando os dentes,
Estava o Braz silencioso à porta
De uma alfaiataria onde se corta,
Mais do que o fato, a pele dos ausentes,
Quando passou, ligeira e saltitante,

Uma dama elegante
E desacompanhada.
— Oh, que linda mulher! que anjo! que fada! —
Murmura o Braz consigo, — com que graça
O vestido arregaça
E pega no sombrinha!
Vou atrás dela, porque está sozinha! —

II

Ocioso é dizer-vos
Que a cena representa
A rua do Ouvidor (fere-me os nervos
Dar-lhe outro nome: nenhum mais lhe assenta.)
A dama vai ao largo da Carioca,
Seguida pelo Braz; num armarinho
Entra, e ele, de pé, fica-lhe à coca.

Ela sai afinal; toma um bondinho
Da praça Onze. Ele o bondinho toma,
Disposto a acompanha-la ao fim do mundo.

Embora fique sem jantar nem ceia,
Pois ou bem se conquiste, ou bem se coma!
Mas — oh, felicidade! — ela dá fundo
Na praça Tiradentes.
Do bondinho se apeia
E entra na loja de um joalheiro, enquanto
O Braz fica no canto,
Suspiros a soltar intermitentes.

Sai da loja a mulher, sempre sozinha,
E, desta vez, ligeira se encaminha
Para o largo de São Francisco. Para
Diante de uma vitrine, e então repara
Que é seguida de perto
Pelo Braz, e sorri assim de certo
Modo que o encoraja,
Pois aquele sorriso,
Vago, estranho, indeciso,
Não é de quem reaja.

III

Ele aproxima-se, e ela, resoluta,
Como heroína habituada à luta,
Deste modo lhe fala:
— Que deseja de mim o cavalheiro? —
Ele, a sorrir, pergunta-lhe, gaiteiro:
— Dá-me licença para acompanha-la? —
Ela responde muito amavelmente:
— Pois não! Como quiser! — E incontinente
A caminho se põe. O Braz, ditoso,
Não cabendo na pele de contente,
Vai-lhe seguindo o passo vagaroso.

A rua do Ouvidor atravessaram,
E uma esquina dobraram.

IV

À dama num magnifico sobrado
Entra, e após ela o Braz também, coitado!
Ela, do alto da escada, grita: — Suba!
E ele, com mais denodo
Que um espanhol em Cuba,
Sobe, mas fica todo
Atrapalhado quando vê que um homem
No patamar o espera.
Um lobo, um tigre, ou qualquer outra fera
Dessas que nos atacam e nos comem,
Tamanho susto não lhe causaria;
Mas o dono da casa lhe sorria,
Dizendo: — Queira entrar... tenha a bondade...
O cavalheiro tem necessidade,
Disse minha mulher, dos meus serviços,
Essa boca realmente
Pede uns dentes postiços...
Entre, e lhe afianço: ficará contente!

V
O Braz entrou, e, passeando a vista
Por tudo que o cercava,
Notou então que estava
Em casa de um dentista;

Mas teve que fazer o pobre diabo
Das tripas coração. Sentou-se. Ao cabo
De uma hora de tormentos
E dores excessivas,
Tinham deixado as túmidas gengivas
Os últimos fragmentos
Dos caninos de outrora.
Finda a sessão, disse o dentista: — Agora
Vou fazer-lhe uma rica dentadura. —

VI

E assim foi, realmente:
Pouco tempo depois desta aventura,
Impava o Braz, — não lhe faltava um dente.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público. 

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