O velho João Tibau, que muito bem conheci na praia de Areia Preta, Natal, homem baixo e robusto, de força gigantesca, lenhador, pescador quando nada tinha a fazer, bebedor emérito, contou-me esta história:
Acordou pensando ser madrugada e saiu para fazer lenha e como andasse depressa chegou ao mato verificando ser noite alta, tudo escuro de meter o dedo no olho. Nem mesmo enxergava os paus. Foi indo, bangolando, fazendo tempo, quando ouviu uma música muito bonita e foi indo na direção do som. Era, com certeza, algum baile nas redondezas.
Andou e andou e foi parar perto da praia do Flamengo, além de Ponta Negra, avistando, da ribanceira que descortina o mar, um clarão. Desceu a barreira e empurrou-se para lá. Encontrou um grupo de cavaleiros, com grandes capas compridas, muito bem vestidos, nuns cavalos de raça, lustrosos e gordos, mas João Tibau não identificou ninguém.
Quis acompanhar o grupo e acabou correndo quanto podia, mas tinha a impressão de apenas andar, pois não vencia o terreno. O grupo desapareceu adiante como se fosse fumaça.
A praia estava clara pelas estrelas e o mar muito calmo. Tibau chegou perto da última curva e viu um palácio que era uma Babilônia, várias carreiras de janelas, todas iluminadas com uma luz azul que doía na vista. Chegando mais para perto ouviu as rabecas e as sanfonas, o vozerio do povo se divertindo, e mesmo a bulha compassada dos dançarinos.
Apressou mais o passo e ficou diante do palácio deslumbrante, todo cheio de luzes e músicas, de vozes e de cantigas mas não via vivalma.
Aí, arrepiou-se todo, pensando que fosse coisa encantada e benzeu-se. Deu-lhe um passamento pelo corpo, escureceu-lhe a vista e só recobrou-se pela madrugada, já o céu todo claro, as barras do sol do mar. Viu então que estava diante das Barreiras Roxas.
As Barreiras Roxas são um revestimento de rocha que a erosão deu forma caprichosa e variada de monumento, com salas, antecâmaras e um labirinto de recantos e furnas que o Atlântico escava e bate, mugindo como bicho feroz no preamar. Fica à pique da praia, recobrindo a barreira e dando de longe, a visão confusa de imensas ruínas medievais.
Paulo Martins da Silva, funcionário do Banco do Brasil, narrou-me em 4 de abril de 1938 este episódio, subsídio para as casas encantadas:
Entre Pititinga e Rio do Fogo, na barreira do Zumbi, existe um palácio encantado. Há anos passados um pescador chegando no Tourinho, barreiras que estão entre Touros e o Rio do Fogo, encontrou outro palácio, iluminado, e ali um homem lhe entregou uma carta para a barreira do Zumbi, a duas léguas e meia de distância. O pescador foi entregar a carta e encontrou o palácio em festa, com muita gente, música, rumores de dança. Deu a carta. Deram-lhe de comer e beber. Pela manhã encontrou-se na praia nua. Tudo tinha desaparecido.
No Morro Branco, perto do Natal, na encosta leste, os lenhadores e caçadores viam, outrora, uma casa branca, brilhante de luzes e sonora de vozes festivas, orquestra tocando, gente bebendo e cantando. Quem tinha coragem de se aproximar via a casa sumir no ar e ficar apenas o mato bruto, cheio de sombras, com o murmúrio do vento na folhagem.
No rio Potengi, entre Natal e Guararapes, há um camboa que, nas enchentes, forma uma ilha, coberta de mangues. Esta ilha é assombrada ou mal-assombrada. Aparece uma grande residência, habitada, com vozes humanas que cantam, gritos de alegria, som de vidros entrechocados, rumores dentro e ao redor da morada. Pela madrugada desaparece e fica o mangue verde como habitante único na ilhota misteriosa.
O coronel Quincó (Joaquim Anselmo Pinheiro Filho, 1869-1950) que tantos anos comandou a Polícia Militar do Rio Grande do Norte, comunicou-me este acontecido em dias de sua mocidade na cidade do Natal nos primeiros anos da República:
Vinha da Ribeira para a Cidade-Alta pela Subida-da-Ladeira quando ouviu para o lado da rua São Tomé, paralela, uma valsa linda. Distinguia o fraseado solista das clarinetas e o contracanto dos bombardinos. Apressou-se e, no começo da São Tomé, com raros e espaçados moradores, havia um grupo de árvores maciças. A música cessara e Joaquim Anselmo encontrou apenas uma mulher alta, magra, com um xale. Onde é a festa? perguntou. A mulher indicou o bosque com um estender de lábio, sem palavra. Quincó deu alguns passos e nada vendo, voltou-se. A mulher desaparecera. Músicas, luzes, vozes, dissiparam-se para sempre.
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Estas histórias são incontáveis por todo Brasil. Há pelas províncias, cidades e vilas, povoados e aldeias menores. Toda gente aponta os lugares onde há uma casa misteriosa que aparece e desaparece em determinadas ocasiões. Há mesmo testemunhas, como o velho João Tibau e o coronel Joaquim Anselmo. Em que ponto da Europa estas histórias não existem? vivem em todos os países e regiões, raças e estados de cultura.
O dominicano Etienne de Bourdon, que vivia no tempo do rei Luis IX de França (1215-1270), reuniu muitas histórias da tradição oral francesa do século XIII e outras de fontes impressas, denominando sua coleção Tractatus de diversis materiis predicabilibus. M. Lecoy de la Marche publicou em 1877 um volume contendo os "exemplos" de Etienne de Bourbon, Anecdote historiques, légendes et apologues tirés du recueil inédit D´Etienne de Bourbon. Um destes exemplos, o sob o número 565, fixa muitos elementos das versões brasileiras do Rio Grande do Norte.
Na França estão eles ligados ao ciclo da caça fantástica. Este mito também existe por todo o Brasil mas reduzido aos rumores de uma matilha de cães e caçadores que passam sem vestígios.
Etienne de Bourbon conta que um lenhador de Mont-du-Chat (Mons Cati) ia uma tarde levando sua carga de lenha, ao luar, quando viu um grupo de caçadores a pé e a cavalo, cercados de cães esplêndidos. Perguntando a identidade dos fidalgos, responderam ser cavaleiros do rei Artur e que voltavam para o seu palácio, convidando-o a acompanhar a comitiva. O lenhador seguiu-os e encontrou-se num castelo suntuoso, com damas e cavaleiros ricamente vestidos, comendo e bebendo. O lenhador comeu, bebeu, levaram-no para um leito de príncipe, onde se encontrava uma dama linda. O lenhador deitou-se e adormeceu. Acordou na floresta, em cima do seu feixe de lenha...
Fonte: Luís da Câmara Cascudo. "Casas encantadas". O Estado de São Paulo. São Paulo, 01.06.1958.
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