Há muitos anos, o sino de S. Francisco de Paula bateu duas horas. Desde pouco mais de meia noite deixou este rapaz, João Fernandes, o botequim da Rua do Hospício, onde lhe deram chá com torradas, e um charuto por cinco tostões. João Fernandes desceu pela Rua do Ouvidor, na esquina da dos Ourives viu uma patrulha. Na da Quitanda deu com dois caixeiros que conversavam antes de ir cada um para o seu armazém. Não os conhecia, mas presumiu que fossem tais, e acertou; eram ambos moços, quase imberbes. Falavam de amores.
— A Rosinha não tem razão, dizia um; eu conheço muito bem o Miranda...
— Estás enganado; o Miranda é uma besta.
João Fernandes foi até à Rua Primeiro de Março; desandou, os dois caixeiros despediam-se; um seguiu para a Rua de S. Bento, outro para a de S. José.
— Vão dormir! suspirou ele.
Iam rareando os encontros. A patrulha caminhava até o largo de S. Francisco de Paula. No largo passaram dois vultos, ao longe. Três tilburis, parados junto à Escola Politécnica, aguardavam fregueses. João Fernandes, que vinha poupando o charuto, não pôde mais; não tendo fósforos, endireitou para um dos tilburis.
— Vamos, patrão, disse o cocheiro; para onde é?
— Não é serviço, não; você tem fósforos?
O cocheiro esfriou e respondeu calado, metendo a mão no bolso para tinir a caixa de fósforos; mas tão vagarosamente o fez que João Fernandes a tempo se lembrou de lhe cercear o favor, bastava permitir que acendesse o charuto na lanterna. Assim fez, e despediu-se agradecendo. Um fósforo sempre vale alguma coisa, disse ele sentenciosamente. O cocheiro resmungou um dito feio, tornou a embrulhar-se em si mesmo, e estirou-se na almofada. Era uma fria noite de junho. Tinha chovido de dia, mas agora não havia a menor nuvem no céu. Todas as estrelas rutilavam. Ventava um pouco — frio, mas brando.
Que não haja inverno para namorados, é natural; mas ainda assim era preciso que João Fernandes fosse namorado, e não o era. Não são amores que o levam rua abaixo, rua acima, a ouvir o sino de S. Francisco de Paula, a encontrar patrulhas, a acender o charuto na lanterna dos carros. Também não é poesia. Na cabeça deste pobre diabo de vinte e seis anos não arde imaginação alguma, que forceje por falar e verso ou prosa. Filosofia, menos. Certo, a roupa que o veste é descuidada, como os cabelos e a barba; mas não é por filosofia que os traz assim. Convém firmar bem um ponto; a nota de cinco tostões que ele deu pelo chá e pelo charuto foi a última que trazia. Não possuía agora nada mais, salvo uns dois vinténs, perdidos no bolso do colete. Vede a triste carteira velha que ele tirou agora, à luz do lampião, para ver se acha algum papel, naturalmente, ou outra coisa; está cheia de nada. Um lápis sem ponta, uma carta, um anúncio do Jornal do Comércio, em que se diz precisar alguém de um homem para cobrança. O anúncio era da véspera. Quando João Fernandes foi ter com o anunciante (era mais de meio-dia) achou o lugar ocupado.
Sim, não tem emprego. Para entender o resto, não vais crer que perdeu a chave da casa. Não a perdeu, não a possui. A chave está com o proprietário do cômodo que ele ocupou durante alguns meses, não tendo pago mais de dois, pelo que foi obrigado a despejá-lo antes de ontem. A noite passada achou meio de dormir em casa de um conhecido, a pretexto de ser tarde e estar com sono. Qualquer coisa servia, disse ele, uma esteira, uma rede, um canto, sem lençol, mas teve boa: cama e almoço. Esta noite não achou nada. A boa fada das camas fortuitas e dos amigos encontradiços andaria tresnoitada e dormia também. Quando lhe acontecia alguma destas (não era a primeira), João Fernandes só tinha dois ou três mil-réis, ia a alguma hospedaria e alugava um quarto pela noite; desta vez havia de contentar-se com a rua. Não era a primeira noite que passava ao relento; trazia o corpo e a alma curtidos de vigílias forçadas. As estrelas, ainda mais lindas que indiferentes, já o conheciam de longa data. A cidade estava deserta; o silêncio agravava a solidão.
— Três horas! murmurou João Fernandes no Rossio, voltando dos lados da Rua dos Inválidos. Agora amanhece tarde como o diabo.
Abotoou o paletó, e toca a imaginar. Era preciso empregar-se, e bem, para se não expor a não ter onde encostar a cabeça. Em que lugar dormiria no dia seguinte? Teve ideias petroleiras. Do petróleo ao incêndio é um passo. Oh! se houvesse um incêndio naquele momento! Ele correria ao lugar, e a gente, o alvoroço, a polícia e os bombeiros, todo o espetáculo faria correr o tempo depressa. Sim, podia muito bem arder uma casa velha, sem morrer ninguém, poucos trastes, e no seguro. Não era só distração, era também repouso. Haveria um pretexto para sentar-se em alguma soleira de porta. Agora, se o fizesse, as patrulhas poderiam desconfiar, ou recolhê-lo como vagabundo. A razão que o levava a andar sempre, sempre, era fazer crer, se alguém o visse, que ia para casa. Às vezes, não podia continuar, e parava a uma esquina, a uma parede; ouvindo passos, patrulha ou não, recomeçava a marcha. Passou um carro por ele, aberto, dois rapazes e duas mulheres dentro, cantando uma reminiscência de Offenbach. João Fernandes suspirou; uns tinham carro, outros nem cama... A sociedade é madrasta, rugiu ele.
A vista dos teatros azedou-lhe mais o espírito. Passara por eles, horas antes, vira-os cheios e iluminados, gente que se divertia, mulheres no saguão, sedas, flores, luvas, homens com relógio no colete e charuto na boca. E toda essa gente dormia agora, sonhando com a peça ou com os seus amores. João Fernandes pensou em fazer-se ator; não teria talento, nem era preciso muito para dizer o que estivesse no papel. Uma vez que o papel fosse bom, engraçado, ele faria rir. Ninguém faz rir com papéis tristes. A vida de artista era independente; bastava agradar ao público. E recordava as peças vistas, os atores conhecidos, as grandes barrigadas de riso que tivera. Também podia escrever uma comédia. Chegou a imaginar um enredo, sem advertir que eram reminiscências de várias outras composições.
Os varredores das ruas começaram a dificultar o trânsito com a poeira. João Fernandes entrou a desvairar ainda mais os passos. Foi assim que chegou à praia da Glória, onde gastou alguns minutos vendo e ouvindo o mar que batia na praia com força. Seguiu abaixo; ouviu o ganir de um cão, ao longe. Na rua alguns dormiam, outros fugiam, outros latiam, quando ele passava. Invejou os cães que dormiam; foi ao ponto de invejar os burros dos tilburis parados, que provavelmente dormiam também. No centro da cidade a solidão era ainda a mesma. Um ou outro vulto começava a aparecer, mas raro. Os ratos ainda atropelavam o noctâmbulo, correndo de um lado para outro da rua, dando ideia de uma vasta população subterrânea de roedores, que substituíam os homens para não parar o trabalho universal. João Fernandes perguntava a si mesmo por que não imitaria os ratos; tinha febre, era um princípio de delírio.
— Uma, duas, três, quatro, contou ele, parado no Largo da Carioca. Eram as badaladas do sino de S. Francisco. Pareceu-lhe ter contado mal; pelo tempo deviam ser cinco horas. Mas era assim mesmo, disse afinal; as horas noturnas e solitárias são muito mais compridas que as outras. Um charuto, naquela ocasião, seria um grande benefício; um simples cigarro podia enganar a boca, os dois vinténs restantes bastavam-lhe para comprar um ordinário; mas onde?
A noite foi inclinando o rosário das horas para a manhã, sua companheira. João Fernandes ouviu-as de um relógio, quando passava pela Rua dos Ourives; eram cinco; depois outro relógio deu as mesmas cinco; adiante, outro; mais longe, outro. — Uma, duas, três, quatro, cinco, dizia ainda outro relógio.
João Fernandes correu ao botequim onde tomara chá. Alcançou um café e a promessa de um almoço, que pagaria à tarde ou no dia seguinte. Conseguiu um cigarro. O entregador do Jornal do Comércio trouxe a folha; ele foi o primeiro a abri-la e lê-la. Chegavam empregados dos arsenais, viajantes da estrada de ferro, simples vizinhos que acordavam cedo, e porventura algum vadio sem casa. O rumor trazia a João Fernandes a sensação da vida; gentes, falas, carroças, aí recomeçava a cidade e a faina. O dia vinha andando, rápido, cada vez mais rápido, até que tudo ficou claro; o botequim apagou o gás. João Fernandes acabou de ler o Jornal à luz do dia. Espreguiçou-se, sacudiu a morrinha, despediu-se:
— Até logo!
Enfiou pela rua abaixo, com os olhos no futuro cor de rosa: a certeza do almoço. Não se lembrara de procurar algum anúncio no Jornal; viu, porém, a notícia de que o ministério ia ser interpelado nesse dia. Uma interpelação ao ministério! Almoçaria às dez horas; às onze estaria na galeria da câmara. Aí tinha com que suprir o jantar.
Fonte> Publicado originalmente em A Estação, de 15/01/1894. Disponível em Domínio Público
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