«Quando vemos dois grandes povos travando uma guerra longa e obstinada, é muitas vezes uma má política pensar que podemos continuar a ser um espectador silencioso; porque qualquer um dos dois povos que vencer primeiro empreenderá novas guerras, e uma nação de soldados lutará contra povos que são apenas cidadãos»
MONTESQUIEU.
Mestre urso, senhor de toda a parte da montanha que olhava para o norte, fez constar aos seus vizinhos do sul que resolvera e jurara, à fé inquebrantável de urso, não permitir que pisassem a montanha, senão como hóspedes, quaisquer animais de outras regiões, ainda que lhe fosse preciso, para manter a independência daquelas altitudes, deixar a última felpa nas garras do estrangeiro, porque entendia que Deus criara aquela eminência maravilhosa para os animais que nela haviam nascido.
Logo que foi conhecida a resolução do urso poderoso reuniram-se todos os animais da vizinhança e, em festa estrondosa, proclamaram a nobreza e a valentia do senhor do norte, que ousava lançar ao mundo tão atrevido cartel.
Pouco tempo depois um dos animais, cuja toca (que tinha a forma perfeita de um tonel e por tal lhe chamavam — a cuba) fora descoberta por um caçador do ultramar que a cercara convenientemente para garantir-lhe a posse e manter em obediência o morador, resolveu revoltar-se contra as contínuas vexações e pôs-se a roer o cercado pondo abaixo o tapigo (tapume). Veio, porém, o caçador e o animal, posto que fraco, não mostrou arrecear-se do inimigo e esperou-o de frente, com audácia tão grande que mais parecia loucura.
Lutavam os dois quando o urso, que espiava de longe, lambendo as patas, notou que o cansaço e as muitas feridas, pelas quais escorria o sangue de ambos, ia-os enfraquecendo; sorriu, então, e levantou-se descendo vagarosamente para os lados da toca onde o caçador e o animal brigavam com desespero.
Ficou à espreita e, em dado momento, levou sorrateiramente para o lugar do combate uma malga (tigela) de leite e lá a deixou, recolhendo a pata.
Sucedeu o que era de esperar: o caçador, que não dera pelo urso e muito menos pela sua trama, no furor da peleja, deu com o pé na malga e lá se foi o leite.
Levantou-se a fera aos urros protestando contra a afronta. O caçador quis ainda provar-lhe que não vira a malga, escondida, como estava, entre as ervas do campo, mas o urso a nada atendeu e, vendo o adversário arquejante, vermelho de sangue, com as roupas em frangalhos, achou a ocasião excelente para cair-lhe em cima e, assim pensando, logo executou.
O caçador, que era brioso, apesar de reconhecer a grande superioridade do antagonista inopinado, não desertou a liça; travaram-se. Mas que podia fazer o desgraçado, já esgotado e consumido por um longo combater, contra aquele que vinha, fresco e bem nutrido, dos alcantis da montanha. Foi subjugado e teve de abandonar o campo onde o urso logo espichou o corpo a pretexto de descansar um bocado.
Os animais vizinhos alvoroçaram-se de alegria vendo que o urso cumpria a promessa que fizera, só o da cuba não via com bons olhos aquele corpanzil imenso estirado ali, logo à entrada da sua moradia, tirando-lhe o ar e a luz. Foi então que resolveu falar, primeiro para agradecer-lhe o socorro, depois para pedir que lhe deixasse livre o terreno.
Ouviu o urso a reclamação lambendo vagarosamente as patas, ao fim disse:
«Amigo, se eu aqui não viesse, tu ainda estarias a lutar com o caçador. Para livrar-te dele sacrifiquei uma malga de leite e tu não levas em conta o meu prejuízo. Queres que me vá embora e se o caçador tornar? Então, deixa-me ficar por aqui, e dá-me alguma coisa, porque estou com fome».
E dizendo assim, espichou-se mais diante da cuba, como senhor na varanda da sua casa. Entraram, porém, os vizinhos a murmurar contra aquela ocupação :
«Afinal, que lucrava o animal? Passar de um senhor a outro; isso pouco valia e, se o urso não se intrometesse na luta, talvez que o animal já se houvesse libertado do caçador que o mantinha sob o seu domínio, não porque dele o tirasse proventos, que só despesas lhe dava, mas por amor próprio e hábito».
O urso não andava bem e, crescendo as murmurações, resolveu a fera arredar-se da cuba, antes, porém, de partir, chamou o animal e disse-lhe :
«Eu parto, volto à minha montanha, mas fico de lá com os olhos em ti; não te movas, não vás longe — não quero histórias com vizinhos nem negócios sem o meu consentimento. O mundo está cheio de perfídias e tu és ainda inexperiente. Eu cuido de ti, descansa».
E foi-se.
Lá trepou à montanha e, deitado, tem os olhos no animalejo que vai e vem timidamente como o ratinho que o gato deixa em liberdade, mas que lhe sente o peso bruto das patas e os ferrões das presas se vai a entrar no buraco ou se se aproxima de alguma fresta.
Um dia o guanaco, que vivia em litígio com o tapir por causa de uma nesga de terra, estava a pensar nas suas finanças desbaratadas, quando avistou mestre urso no alto da montanha. O guanaco, que não é covarde, mas que é prudente, desconfiou daquela visita e pôs-se em guarda ; o urso, porém, sorrindo, chamou-o com um aceno da pata, pedindo que chegasse à fala, porque tinha a dizer-lhe grandes coisas, coisas de alto interesse. O guanaco foi indo, vagaroso e matreiro, e, na ponta havia um abismo fundo na montanha, deixou-se ficar á margem, pedindo ao urso que falasse. E o urso disse :
— Amigo guanaco, eu sei que andas muito preocupado com essa questão de terras que o teimoso tapir insiste em afirmar que são dele. Não sei se são, sei que tens os olhos nelas porque te convém e como eu simpatizo contigo, que és um excelente guanaco, venho dar-te um conselho. Tu não podes entrar em contenda com o tapir que, apesar de andar magro, é ainda animal de força ; há um meio, porém, e magnífico, de arranjarmos isso. Os meus ursinhos são muito expansivos, nem há no mundo animais tão expansivos como eles e, como a borracha é também expansiva, eles andam com a mania da borracha. Pois bem, a pretexto de expansão, eu organizo uma companhia que arrendará as ditas terras litigiosas. Depois de arrendadas e habitadas pelos ursos, tu lavas as patas e eu fico à espera. É natural que o tapir invoque os seus direitos, silve, dê saltos ; não te importes — eu estou lá em cima para o que der e vier. Se a coisa for adiante — o que não é provável, porque eu conheço o tapir : aquilo é só parola e guincho — descerei dos meus alcandores e procurarei acalmar a questão, mostrando que os meus ursos empataram grossos cabedais na empresa e que não os podem perder. Demos que o tapir se enfune e queira reagir — contra um guanaco um tapir é um tapir, mas que é um tapir quando lhe surge pela frente um urso ? Pensa e resolve, mas não digas que falaste comigo. Torno para o cimo da montanha e lá fico às tuas ordens. Adeus, respeitos à senhora.
E bambo, lá se foi mestre urso sorrindo, muito contente com a sua ideia. Mestre guanaco desceu para os seus campos pensando na proposta generosa ao vizinho quando, detendo-se à margem de uma fonte clara, ouviu uma voz que o chamava :
— Guanaco amigo.
Guanaco levantou a cabeça e deu com um grande e alteroso condor pousado no píncaro de um penedo.
— Que queres de mim, irmão condor ?
— Ouvi toda a conversa que tiveste com o vizinho da outra banda e venho dar-te um conselho: Não te fies no urso. O que ele te propôs, a título de benefício, é uma traição e não queiras servir de porta à ganância insaciável desse animal que, por muito jurar, já nos não merece confiança. O que ele quer é meter uma cunha nos domínios que nos pertencem para depois, facilmente, separá-los e absorvê-los. Juntos poderemos resistir à sua ambição desmedida e ai de nós, porém, se ele conseguir colocar em nossas terras um só urso! No dia seguinte os campos que percorres, os alcantis, em que tenho o meu ninho, serão covas de feras e nós não teremos terras, nem águas, tudo será do urso que lá tem cativo, preso por uma corrente à sua penha, o animal que ele pretendeu libertar das mãos do caçador. Se o tapir não tem razão vamos chamá-lo à razão, mas com calma e estou certo de que virá; não queiras porém que, mais tarde, quando a montanha despejar sobre os nossos vales e campos a avalanche ambiciosa, os nossos irmãos bradem contra o traidor que franqueou as terras livres ao invasor insaciável. Diz o urso que a montanha é dos montanheses... Acautela-te, guanaco! palavras de urso não aproveitam a guanacos. Lembra-te da fábula do leão. Hoje será a companhia estabelecida nas terras litigiosas, amanhã serão os teus terrenos, depois os meus, depois os dos nossos irmãos e ele ficará senhor da montanha e nós seremos escravos vis dentro da pátria que pretende trair. Eu falo como condor: vejo longe. Lá da altura passeio os olhares pela terra e sei o que nela se faz. Se queres o cativeiro deixa entrar o urso.
Ouviu o guanaco e ficou a pensar mirando-se na corrente e mirava-se quando do alto o urso, que espreitava, rugiu :
— Então, guanaco amigo ? Vai ou não vai?
E o condor, que levantava o voo, bradou do espaço :
— Olha o truste do território! Olha o truste da montanha, amigo guanaco. Não abras a fenda à cunha da perfídia. Cuidado!
Foi-se e o urso, lambendo as patas, ficou a olhar o guanaco, que pensava.
— Então, amigo guanaco ?
— Espera um instante, amigo urso.
Fonte: Coelho Neto. A bico de penna: fantasias, contos e perfis. Porto/Portugal: Livraria Chardron, 1925. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.
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