quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Ubirajara Godoy Bueno (Aparelhinho)

Um simples exame de rotina, mas foi quando tudo começou.

— A pressão está oscilando, vamos ter que usar o  holter — disse-me o médico enquanto prescrevia a recomendação.

— O que é isso, doutor?

— Significa que sua pressão arterial vem apresentando diferentes valores a cada medição.

— Isso eu sei, estou perguntando sobre esse tal...  holter.  

— Ah! Um aparelhinho pra checar essas variações durante vinte e quatro horas — respondeu-me com a simplicidade de quem receita uma aspirina.      

Chamo a atenção dos leitores para o termo “aparelhinho”, a sugerir algo simples, inocente, com o qual não devemos nos preocupar. O diminutivo nos tranquiliza diante das situações que desperta, por razões justas, o nosso senso de alerta: volto num minutinho, vai doer só um pouquinho, custa baratinho, e assim por diante. Desnecessário dizer que devemos desconfiar dessas expressões e logo mais ratificarei o que estou dizendo.

Voltemos ao consultório:

— Vou ter que ficar com ele esse tempo todo? — perguntei, com o pressentimento de que alguma coisa não ia dar certo.

— Será necessário, mas fique tranquilo, trata-se de um monitoramento bastante simples.  

Duas ou três horas depois, lá estava eu na clínica (não muito tranquilo), para uma nova experiência em minha vida.

Um estojo preto de plástico, com botões coloridos e um visor digital, foi preso à minha cintura   através   de uma correia de couro,   sugerindo um imenso  walkman. Segundo a enfermeira que me auxiliava na instalação, o aparelho era equipado com um avançado sistema eletrônico e uma potente bomba injetora. Um tubo flexível de borracha, conectado ao estojo, subia pelo meu tórax sob a camisa, contornava o pescoço e descia pelo braço esquerdo. Nessa extremidade havia um bracelete inflável, o qual circundava meu braço pouco acima do cotovelo. A intervalos de 10 minutos, a bomba seria acionada automaticamente para injetar ar no bracelete, inflando-o e comprimindo meu braço. A pressão arterial era então medida e o valor armazenado na memória do equipamento. No dia seguinte, os resultados seriam avaliados.

Finalizado o trabalho de instalação, a enfermeira recomendou-me, repetidas vezes, que eu não me movesse durante as medições. Um simples movimento de cabeça ou o mero ato de falar poderiam prejudicar as leituras.

Mesmo com a camisa fora da calça e as mangas estendidas, numa tentativa de camuflar aquela parafernália, saí da clínica um pouco constrangido. Para agravar ainda mais a situação, eu estava sem carro.

Carregava minha valise de serviço, mas tinha desistido de voltar ao trabalho. Iria para casa o mais rápido possível.

Segui pela calçada em direção ao ponto de ônibus procurando manter a naturalidade.  

Mal eu tinha percorrido dois quarteirões, senti o aperto no braço. A primeira medição estava sendo feita. Lembrei-me da recomendação e estanquei os movimentos. Durante 10 ou 15 segundos mantive-me imóvel, no meio da calçada, olhando para um poste e sentindo-me um verdadeiro idiota. Após a despressurização do bracelete, continuei meu caminho. Mais dois quarteirões e lá estava eu, feito uma estátua, olhando desta vez para uma banca de jornais. Diante dos meus olhos, uma série de revistas pornográficas.   O jornaleiro, supondo um especial interesse de minha parte pelo material exposto, cochichou em meu ouvido: “disponho de artigos mais quentes”. Procurando não me mexer, voltei os olhos em sua direção, enquanto esboçava um sorriso de lado, meio torto, como se maliciosamente agradecesse pela preciosa informação. Minha postura poderia ser atribuída a um maníaco sexual.

Cheguei ao ponto de ônibus com um sério problema a ser resolvido: como permanecer normalmente entre os passageiros com o bíceps avolumando-se dentro da camisa a cada 10 minutos?   Numa decisão ousada, desvencilhei-me de todo equipamento e guardei-o dentro de minha valise. Em casa eu recolocaria o aparelho. Uma pequena interrupção no monitoramento não iria prejudicar o exame.

Dentro do ônibus, acomodei-me no único lugar disponível, ao lado de uma senhora que me dirigiu um sorriso amável. Após dois ou três pontos o coletivo ficou apinhado.  

Mas o pior estava por acontecer: o aparelho começará a funcionar dentro da minha bolsa. Na falta dos sinais da corrente sanguínea para orientar o bloqueio da bomba, o ar estava sendo injetado continuamente e, com efeito, o bracelete inflava-se sem cessar. Ao me dar conta desse fato, entrei em desespero. A bolsa começava a avolumar-se e já chamava a atenção da senhora de sorriso amável e dos passageiros em pé ao meu  lado.

Ruídos estridentes revelavam que meus acessórios de trabalho e pertences pessoais estavam sendo esmagados no interior da bolsa pela força brutal daquele equipamento  atroz.

A bolsa continuava a crescer e já atingia dimensões gigantescas. Não se podia descartar a possibilidade que viesse a explodir a qualquer momento. Minha vizinha de banco mantinha agora uma expressão de horror enquanto se benzia. Entre os burburinhos dos passageiros, pareceu-me que alguém rezava. Tive um impulso de jogar minha bolsa pela janela ou então abandonar o ônibus gritando: salve-se quem puder.

Felizmente o processo foi interrompido e o ar do bracelete liberado. Minha bolsa voltou ao tamanho normal, embora um pouco disforme, e a paz reinou de novo no coletivo.

Vou poupar os leitores dos próximos acontecimentos que me sucederam até a manhã do dia seguinte, mesmo porque acredito terem sido suficientes os fatos até aqui narrados para alertá-los sobre os perigos dos tais aparelhinhos, concebidos pela nossa moderna, idolatrada e infalível tecnologia.

A propósito, vocês já ouviram falar num outro aparelhinho... ?

Fonte:
Sorocult. 24.11.2003. Site desativado. Acesso em 2016.
https://www.sorocult.com/el/view.php-cod=1897.htm

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