domingo, 31 de dezembro de 2023

Geraldo Pereira (Preciosos Alfarrábios)

Este lixo que sai assim, de meu gabinete de trabalho, em casa, na preparação para a mudança, de um velho sobrado para um apartamento novo e bem cuidado, guarda muito das minhas saudades, nostálgicas lembranças de meus ganhos e de minhas perdas! Livros que se desatualizaram na corrida do desenvolvimento da ciência e da técnica, sublinhados ainda, grifados, na importância e na valia das citações e que me serviram de roteiros definitivos, na condução profissional e no magistério. Mas, sobretudo, os meus papéis, que não cabem mais no espaço da acomodação moderna, manifestações de meu espírito, paridas nas horas de meus enlevos e de minhas dores. Aqui e ali expressões dos ardores d'alma, recordações da infância, vivida e revivida, então, da adolescência inquieta e da juventude, do mesmo jeito, irrequieta. Recordações, até, dos amores e dos desamores, de encontros e de desencontros!

Retratos, também, fotografias que o tempo marcou, descolorindo personagens e camuflando paisagens, fisionomias mudadas, agora, recantos transmudados, igualmente, crianças que cresceram e adultos que envelheceram, gente, enfim, sofrendo a metamorfose do tudo. Velhos que se foram, tangidos da vida! Cartões de todo tipo, os de Natal e os de cumprimentos, de aniversários passados e de idades vencidas ou aqueles dos sentimentos e do pesar. 

Convites, os de formatura, a do colégio e a da faculdade ou aqueles do matrimônio, que me trouxe da família a graça! E os afetos das filhas, em letras dos inícios, fazendo do pai o herói que não é, os de agosto e os de outubro, o Dia dos Pais e o natalício. Telegramas e cartas, escusas e saudações, parabéns e congratulações. Nada ou quase nada que possa reanimar traços do sofrimento, reduzido às cinzas, pois!

Mexendo e remexendo esses alfarrábios, alguns carcomidos já, identifico as primeiras de minhas crônicas, escritas à mão, antes da modernidade do hoje, do computador e do teclado, do monitor expondo palavras e juntando vocábulos, armando frases e construindo períodos. Crônicas, inclusive, de um começo tão precoce, que sequer foram publicadas, devaneios, então, dos verdes anos. Resgates, vejo agora, de meus pretéritos, nessa nostalgia de meus tempos. Reflexões daqueles antanhos! Discursos, também, que fiz nos princípios, aqui no Recife, mesmo, no Colégio Nóbrega, de tantas lembranças e em São Paulo, quando fui eleito orador da turma, representando os alunos brasileiros. Um tupiniquim falando para quatrocentões! Coragem que só a juventude deixa expor, em considerações, sobretudo, a propósito da pátria que é o Nordeste, tão injustiçado!

São quatro décadas, pelo menos, de recordações e de lembranças, coisas trazidas de casa, ainda, do sobrado azul onde nasci, onde pontificou meu pai e pontifica a minha mãe, a permearem a vida e as coisas do meu ontem mais recente, de dez ou de vinte anos pra trás, de casa, também, mas da minha do agora! Pedacinhos de saudades que se juntam, então, no grande quebra-cabeças do existir humano, dando por resultado o ganho das vitórias, que suplanta aquele das perdas experimentadas e sentidas. Um quebra-cabeça que ao final, depois de armado e completado, em parte já, mostra uma grande estrada, larga e asfaltada, mas repleta de percalços, de pedras no caminho e de enormes buracos no passeio dos andantes, nos quais os tropeços são inevitáveis e nos quais sucumbem os incautos, penitentes deste mundo de Deus e dos homens! Mas, é possível prever: "Vim, vi e venci!".

Lixo que não é lixo e luxo que não é luxo! Somente aqueles que experimentaram o deleite e o êxtase da existência, na manjedoura ou no dourado leito, mesmo que em momentos mais que efêmeros, podem se permitir o sentimento e as reminiscências. Ninguém resgata-o, inteiramente, pesaroso, senão nas horas do pranto. E ninguém recupera na memória o tempo da aflição, sem que novamente esteja sob os impulsos dos humores pessimistas. Sou assim, gosto de rebuscar o passado e sei de tudo e de todos, até os meus limites! Tenho profundo interesse pelos amigos do outrora, pela gente que comigo foi gente e se os perdi de vista, francamente, não foi pelo querer de meus afetos!

A vida é bela, afinal! Vale a pena, com tudo que é ruim e com tudo que perturba! Viva a vida, então!

Fonte> Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

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