quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Artur de Azevedo (Um Médico da Roça)

Aos vinte e um anos Tolentino Abrantes
Da vida a primavera desfrutava,
Figurando entre os piores estudantes,
Pois que não estudava,
Muito embora na Escola
De Medicina, que ele frequentava,
Dissesse toda a gente
Ter ele muito fósforo na bola,
E ser, talvez, o mais inteligente
Da sua turma. O nosso rapazola,
Que dos paternos cabedais dispunha,
Metendo-lhes a unha
Tão facilmente como se a metesse
Num fofo pão de ló, não conhecia
Da pobreza os açoites,
E, nesta vida tudo lhe sorria.
Antes os conhecesse:
Na pândega não passaria as noites.

O pai, sujeito honrado,
Que no comércio havia enriquecido,
Foi por alguns amigos prevenido
Da vida que levava o seu morgado,
E corrigi-lo quis, mas era tarde,
Porém o velho, sem fazer alarde,
Resolveu, de repente,
Suspender-lhe a pecúnia, declarando
Categoricamente
Que só dinheiro lhe daria quando
Ele quisesse entrar no bom caminho,
E andasse «muito, muito direitinho».
— Um meio há de o fazeres,
O bom pai aduziu: troca essa vida
De festas e prazeres
Pela vida em família. A Margarida,
Filha do meu amigo Castro Motta,
Gosta muito de ti; é moça, é bela,
O pai é rico e certamente a dota.
Serás feliz casando-te com ela.
Esse o meio será de prosseguires
Nos estudos. O meu conselho segue,
E olha: se o não seguires,
Para o diabo vai que te carregue!

Não foi para o diabo o nosso Abrantes,
Que, três meses depois desse conselho,
Sendo embora um fedelho,
Sem conhecer do mundo as cambiantes,
Casado estava e muito bem casado.

Durante meses, no seu novo estado,
Foi dos maridos jovens o modelo:
Fazia gosto vê-lo
Sempre ao lado da sua mulherzinha,

Que uma afeição puríssima lhe tinha;
Mas, depois de formado,
(Sim, porque o moço conseguiu a beca),
Daquele dueto se sentiu cansado
E fez coisas da breca,
— Tantas e tais, que Castro Motta, o sogro,
Observando o malogro
Da ventura da filha amada, um dia
Não quis que ela nem mais uma semana
Vivesse em companhia
Daquele doidejana,
Que a deixava ficar sozinha em casa
Dias e noites, nem perdia vaza
De se exibir escandalosamente,
Com mulheres perdidas, nos lugares
Onde havia mais gente,
Sem dares nem tomares.
Carregou-a dali. — Pois satisfeito
(Podeis acreditar) ficou Abrantes
Quando, ao entrar, com passos vacilantes,
No seu quarto, lá pela madrugada,
Achou vazio o leito
Onde a esposa devia estar deitada,
E sobre o travesseiro
Um papel em que havia este letreiro:
«Vou para casa de meu pai.» Mais nada.

O médico, durante alguns instantes,
Pensou em Margarida...
— Fugiu? Melhor! É’ tão desenxabida! —
Era um patife Tolentino Abrantes.

Mas como o pai do lado o houvesse posto,
E do sogro infeliz secasse a teta,
E doente nenhum fizesse gosto
Em recorrer à sua medicina,
Em breve Abrantes se apanhou sem cheta*,
E passou existência bem mofina.

Não tinha o pobre diabo
O que fazer da vida, e já pensava
Em dela enfim dar cabo,
Quando um roceiro, que na corte estava,
Propôs leva-lo para certa vila
Ignorada e tranquila
Onde faltava um médico; podia,
Se não fazer fortuna,
Pelo menos ganhar grossa maquia**.

A proposta oportuna
Abrantes aceitou; foi para a roça,
Quinze anos respirou, num mundo a parte,
O oxigênio do mato, que remoça,
E, aprendendo a sua arte
No corpo dos escravos, nas fazendas,
Afinal ganhou fama
De haver feito umas curas estupendas,
Moribundos erguendo até da cama!
Regenerou-se. O ver constantemente
As moléstias alheias,
Fez-lhe voltar o coração ausente,
Deu-lhe boas ideias;

Tinha Abrantes agora
Fundos remorsos do viver de outrora.

Sim, quinze anos esteve
Naquela redondeza. Um dia, teve
Desejos de ir à capital do Estado,
Afim de espairecer o seu bocado,
E, indo ao teatro, viu num camarote
Uma linda mulher; impressionado,
Pretendeu dar-lhe um bote:
Subiu ao corredor num intervalo...
Qual foi o seu abalo,
Reconhecendo nela,
Vista de perto, a pobre Margarida,
Que não lhe pareceu desenxabida!
Muito mais gorda, mas também mais bela
Estava. O porte altivo e majestoso,
Lânguido o olhar velado e misterioso...
Tão formosa não era a própria Vênus!...
Que singular acaso!
Surpreso ele ficou; pudera! — o caso
Não era para menos.

— Gosta dela, doutor? disse-lhe rindo,
Um conhecido que passava. — Gosto.
— Não se lhe dava de a apanhar, aposto!
Anjo não há mais lindo!
Pois bem: tire daí o pensamento:
É casada. — Casada? — Sim, casada!

O marido não tarda aí um momento:
É engenheiro da Estrada.
Há dias aqui estão, vindos do Rio. —
Outro indivíduo, tipo de vadio,
Que passava também parou e disse:
— Casada? Que tolice!
Eles não são casados!
O marido era um médico: deixou-a
E nunca mais nem novas nem mandados
Deu da sua pessoa.
Depois de abandonada,
Ela viveu com o pai pura e honrada.
Mas o velho morreu; ela, coitada!
Do engenheiro gostou, e não podendo
Casar-se, ficou sendo
A mais fiel das amantes.

Foi para o hotel Abrantes,
E, na manhã seguinte,
No trem das seis e vinte
Para a roça voltou, bem castigado
De todo o seu passado.

Hoje ele é morto, e é ela a esposa amada
Do engenheiro da Estrada.
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* Cheta = qualquer quantia pequena de dinheiro.
** Maquia = gorjeta; lucro.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

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