segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Versejando 99

 

Sammis Reachers (Ele não queria ser motorista...)

Alcemir 'Maricá' trampava há 25 anos como cobrador da Ingá. Era homem de baixa estatura e corpo magro, conservado apesar da idade. Rosto sempre de sobrancelhas franzidas, como se fosse um cara 'brabo'.

Mas de brabo só mesmo a cara, e acerta o ditado quando diz que quem vê cara, não vê coração...

Entre lutas e dívidas, certo dia sua mulher, morena forte e enfezada, de estatura bem maior que a dele, mandou esse recado na cara do pequeno Alcemir:

- Agora chega, Alcemir! Com esse seu salário de fome não dá pra gente viver! Ou você vira motorista, ou eu largo de você e arrumo um!

No dia seguinte lá foi o nosso Alcemir, triste e amuado, falar com a chefia da empresa. Antigo e bom funcionário, ele imediatamente conseguiu uma chance na garagem, ou 'escolinha',

- Hoje à tarde mesmo você pode vir fazer o teste.

E assim, à tarde lá estava o assustado Maricá. O chefe da garagem era o lendário 'Seu' Joel, excelente, mas muito, muito exigente profissional. Um verdadeiro sargentão. Após as apresentações, Joel diz:

- Bem senhor Alcemir, sei que o senhor já sabe dirigir, pois possui carteira de motorista, categoria B. Está vendo aquele ônibus ali? Vá até lá, ligue o carro e saia bem devagarinho.

Missão dada é missão cumprida; Maricá entrou no veículo, sentou-se no 'cockpit', limpou o suor do rosto tenso. Girou então a chave na ignição e ligou o motor; mas em seguida, ao invés de liberar o freio de mão e passar a marcha à ré. Maricá levantou-se do banco e desceu do veículo bem, mas bem devagar (afinal Seu Joel não lhe mandara ligar o carro e sair bem devagarinho?), na ponta dos pés e olhando assustado para o Seu Joel, que não acreditava no que via...

Hoje o Alcemir, conformado, é um ótimo profissional do volante e continua a prestar serviços para a mesma casa, com ótima conduta e presteza.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Acrobacia Inesperada)

Esta aconteceu no pátio da Sorocabana, no tempo em que Itararé era o maior entreposto madeireiro da América do Sul, e os lados da linha férrea eram completamente cercados por pilhas e mais pilhas de tábuas que ofereciam como passagem apenas estreitas e pequenas aberturas entre si.

Minha irmã Linéa e eu saímos numa tarde de domingo para visitar nossa amiga Lídia que morava do outro lado da linha.

O movimento no pátio era intenso e as manobras ininterruptas tornavam o cruzamento dos trilhos um perigo para quem não tivesse algum traquejo.

Por isso mesmo, já de antemão a Lídia se oferecera para orientar-nos na complicada travessia. Ela era filha do chefe da estação e tinha uma habilidade incrível para se locomover no meio daquele inferno de máquinas em constante movimento. À hora marcada, lá estava ela à nossa espera.

Naquele tempo todo mundo gostava de se trajar muito bem, mas nos domingos a coisa era um exagero! Estavamos as três elegantíssimas, os vestidos muito bem ajustados, meias finas e altíssimos sapatos de salto Luis XV que mal nos permitiam manter o equilíbrio. E assim equipadas, fomos enfrentar a difícil operação.

Passamos os trilhos e chegamos a um ponto em que a abertura entre as pilhas de tábuas era mínima. Estávamos justamente procurando o melhor jeitinho de passar para o outro lado sem rasgar a roupa, desfiar a meia, ou até mesmo enroscar o salto e quebrá-lo, danificando toda aquela irrepreensível elegância... quando eu olhei para um lado e a certa distância avistei um grande animal chifrudo.

"Lídia, o que é aquilo?"

"É um bode", respondeu ela com um arzinho entre preocupado e gaiato. "E ele avança na gente..."

"E que tal se ele inventa de avançar na gente agora? Neste lugarzinho mais crítico?"

Parece que o bicho escutou nossa conversa, pois foi eu acabar de falar e ele desembestou para o nosso lado numa velocidade que só avião a jato! Nenhuma de nós viu mais nada... Quando nos demos conta, estávamos as três confortavelmente instaladas, minha irmã e eu em cima de uma pilha, e a Lídia em outra. O bode ficou no meio...

"Venham aqui", chamava ela, rindo meio nervosa.

"Venha você para cá", respondíamos.

Situação mais ridícula era impossível. Apesar do susto, davamos boas risadas. E ali ficamos até que apareceu um garotinho, provavelmente o dono do bicho. Pegou o animal pela cordinha do pescoço e ele o seguiu docilmente, deixando o caminho livre para nós.

"Vamos descer!"

Falar foi fácil. Descer é que foi o diabo! Coisa mais inexplicável era minha irmã encontrar-se ali cm cima, ela que não conseguia subir nem em uma cadeira, que lhe dava tonturas... Quanto a mim, sempre fora chegada a proezas daquele gênero, eternamente enroscada aos galhos mais altos das árvores as quais me identificava como um verdadeiro macaco. Mas de saia justa, salto alto e meias... bem, a coisa em um pouco diferente. Se a escalada fora uma brincadeira, a descida foi uma barra!

Finalmente no chão, ajudei a Linéa, desajeitada para aquele tipo de coisa e medrosa como ela só! Não sei como a Lídia tinha se arranjada, mas já descera.

Estavamos intactas. Nem um fio de meia puxado. Lindas e arrumadinhas chegamos à casa da Lídia para uma tarde gostosa que terminou com chá, biscoitinhos e os deliciosos docinhos de banana que ela tão bem sabia fazer.

E tudo isso apesar de — literalmente - ter dado "bode" no programa...

(Tribuna de Itararé- 10/10/84)


Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Adega de Versos 68: Reginaldo Albuquerque

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 42 -

Na minha opinião existem dois tipos de viajantes: os que viajam para fugir e os que viajam para buscar.
Érico Veríssimo (Cruz Alta/RS, 1905 – 1975, Porto Alegre/RS)

E as viagens? E aquele sujeito com a bonomia na intimidade, possuído pelos demônios das viagens?

Há tempo viajou para outras paragens nas planuras do universo. Deve estar junto ao Quintana, lá na estrela Aldebarã.

O escriba da póvoa de Cruz Alta nos deixou tanta coisa boa - os escritos, a cordialidade, o bom papo junto à sua Mafalda, sempre divertida. Ficaram também seus livros de viagens - México, Gato Preto em Campo de Neve, Israel em Abril, A Volta do Gato Preto - , além das vilegiaturas em forma de romances nos caminhos do tempo e o vento, escritos junto a solos de clarineta.

Livros e viagens se misturam quando estamos na estrada. Caminhos e destinos.

Embrenhar nas leituras é entrar no mundo das viagens. Cada livro é uma viagem. Cada viagem, um livro aberto.

Que deleite andejar pelas leituras, trilhando por tantos livros. Que delícia ser obsessionado pelo demônio das viagens.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (Esperando...)

– Fecha aquela janela que deita para a rua... assim; abaixa o estore*... agora abre as duas do jardim.

– Está bem?

– Está bem. Vai arranjar-te; põe o avental branco bordado, que eu te fiz, e vê lá se levantas esse cabelo da testa; gosto das testas nuas!

A criada saiu. A dona da casa, moça, gentil, alegre, começou a dar uns retoques na mesa, cantarolando, na sua meia voz de soprano, um romance novo. Agora punha ao lado da mesa o canário favorito sobre uma corbeille* de flores naturais, daí a pouco temperava a salada, escolhendo com as pontas dos dedos, muito delicadamente, as folhinhas mais tenras; revistava as garrafas de cristal, os talheres, os pratos, escondia dentro do guardanapo do marido uma hastezinha mimosa de avenca, onde espetara um cartão com esta palavra: “– Adoro-te!”

Modificava, sob o musgo fresco da fruteira, a posição das uvas e dos pêssegos vermelhos, mudava para outro lado o galheteiro; alisava as coberturas das cadeiras, descia ainda mais o store de cretone branco, e, debruçando-se das janelas do jardim, puxava para dentro os galhos floridos das trepadeiras. Depois, relanceou por toda a sala os seus olhos vivos de burguesinha feliz. Notou que um quadro estava ligeiramente inclinado para a esquerda e deu pela ausência da geleira sobre a étagère*.

Correu a reparar as duas faltas e saiu. Foi à cozinha.

– Então, André, a sopa está boa?... e o peixe... deixa-me ver o peixe...

E, avançando o narizinho arrebitado, ela cheirava as panelas, fazendo os seus comentários:

– Olha, ó André, o rosbife não me parece bom...

O cozinheiro franziu a testa, indignado; ela continuava:

– Ora! as ervilhas estão com bispo; logo as ervilhas, de que Luís gosta tanto!

– Perdão, minha senhora, as ervilhas não estão queimadas!

– Não estão queimadas! E que cheiro é este?

– É mesmo o cheiro das ervilhas.

– Onde viu você ervilhas com cheiro a fumo?

– Prove-as, minha ama.

Para convencer-se ela provou as ervilhas; achando-as deliciosas, murmurou disfarçadamente: está bom, está bom... e os bolinhos, fez?

– Esqueci-me: também há tanta coisa!...

Foram novos ralhos; mas, afinal, certa de que o jantar agradaria ao marido, ao seu amado Luís, com quem se casara havia apenas um ano, ela voltou para dentro.

Foi pedir conselhos ao seu psyché*. Estava pálida. “Isto há de ser, pensou, por causa das fitas verdes.”

Trocou-as por fitas azuis... estudou-se: continuava feia... “Bem! agora, fitas cor-de-rosa... hão de me ir melhor...” Mas as fitas cor-de--rosa desagradaram-lhe tanto como as azuis e as verdes. Lembrou-se do colar de coral. Os colares de coral passaram de moda... mas que importa! são bonitos! Atou sobre o pescoço alvo e roliço um fio de coral, abriu um pouco mais o vestido, e afogou entre as rendas do peito a flor cor de sangue de uma orquídea nova.

“São quase seis horas! Luís não tarda! vou esperá-lo ao piano!”

Tocou várias peças, ora um idílio, ora uma sonatina; mas, impaciente, descaiu a dedilhar polcas e valsas.

De vez em quando levantava-se, ia à janela. Viu passar um vizinho, o Ramos, carregado de embrulhos, e calculou:

“A mulher do Ramos é mais feliz do que eu... ele tem mais pressa de a ver do que Luís de me ver a mim!...”

Após o Ramos, passou um velho gordo, que vinha habitualmente depois do marido, logo no bonde imediato; viam-no quase sempre passar através das grades do jardim, onde ela descia para receber Luís.

O relógio marcava já seis e um quarto! Ela não voltou para o piano: instalou-se na janela. Começou a sentir fome; a impaciência cresceu. Parecia que iria devorar todo o rosbife! “Decididamente, Luís, supunha ela, teve algum negócio grave a prendê-lo até mais tarde... aposto em como vem naquele bonde...” Mas o bonde passou. “Vamos a ver! se o primeiro carro que passar for tilburi, é porque ele vem antes das seis e meia; se for coupé é porque só vem às sete.” O primeiro carro a passar foi uma caleça. Às sete horas Luís não tinha chegado.

A copeira veio perguntar-lhe se podia tirar o jantar; a infeliz rapariga, em pouca harmonia com o cozinheiro, estorcia-se de fome. A ama repreendeu-a: quando for ocasião, eu saberei mandar servi-lo! disse.

Ela já não tinha vontade de comer: passada a hora habitual, o estômago não sentia necessidade de alimento. Entretanto, continuava à janela.

Eram já sete e meia! A casa do Ramos iluminava-se; apareciam vultos na sala de visitas; uma das filhas ia para o piano e ela adivinhava o Ramos, palitando os dentes, recostado no sofá, ao lado da esposa, que estava de casaco branco e saias engomadas. “São velhos, e são mais felizes do que eu”, suspirava.

Deram oito horas. Voltava muita gente para a cidade, de onde os bondes vinham agora quase vazios. Por que será que Luís não veio? conjecturava a triste esposa. Saiu da janela, e, caindo em uma poltrona, começou a chorar.

Erguia-se no seu espírito uma suspeita: a infidelidade de Luís!

“Ele ama outra, ama outra com certeza! a estas horas ri-se a seu lado... logo virá com uma desculpa qualquer!” Lembrou-se de fugir para a casa da mãe; sim, lá ao menos teria companhia, carinhos, alegria! E Luís, quando chegasse, compreenderia não ter por esposa uma mulher passiva, de quem pudesse zombar! Levantou-se, foi ao seu quarto e, tendo vestido uma capa, ia colocar o chapéu, quando foi ferida por uma ideia horrorosa: Um desastre! “Meu Deus! exclamou a pobrezinha: Luís foi pisado por algum trem!...”

Aterrorizada, hirta, no meio do quarto, ela assistia a toda a cena. O marido atravessava a rua, correto, distinto, elegante... súbito, esbarra-se nele um indivíduo, cai-lhe a luneta; Luís curva-se para erguê-la; nisto ouve gritos, é atropelado, cai, e uma enorme carroça, carregada de pedras, roda-lhe pesadamente por sobre o ventre! Apitos, agrupamento de povo, muito sangue na calçada, e o adorado Luís é tirado em braços, esfacelado, inerte, morto!

Correu de novo à janela, debruçou-se: ninguém! A rua estava silenciosa. Teve vontade de gritar: Luís, Luís! e as lágrimas rolavam-lhe grossas pelas faces pálidas. Era a primeira vez que tal lhe acontecia; evidentemente sucedera ao esposo um desastre qualquer! Lembrou-se de ter visto no escritório, uma vez que lá fora surpreendê-lo no trabalho, um revólver sobre a secretária. Aquilo fizera-lhe impressão, a ponto de rogar ao marido que se desfizesse dessa arma tão perigosa... Quem lhe diria que não fosse esse maldito revólver que, por qualquer acaso, matasse o esposo!? Ele era distraído e míope: puxando uns papéis, tateando a mesa, à procura de algum objeto, poderia bater no gatilho e a bala ter partido!

A cada carro que se aproximava ela estremecia: “É ele, vem-no trazer desfigurado... moribundo... Ó meu Luís! meu Luís!!

Nisto uns passos conhecidos esmagam a areia do jardim, ela levanta-se e escuta... sobem a escada, tocam de uma maneira especial a campainha; e ela, reconhecendo o sinal, dá um grito de alegria e corre para a porta, indo abraçar o esposo, comovida e trêmula!

– Que é isso, Mimi? perguntou ele, atônito; como estás transtornada!

– Oh! Luís! por que tardaste tanto?! Que susto que eu tive! Meu Deus! Deixa-me ver-te bem! Que te sucedeu?!

– Mas, filha! não me sucedeu nada de extraordinário! Tolinha! É preciso acostumares-te!

– Acostumar-me...

– Terás muitas vezes de jantar sozinha...

– Ah!

Enquanto ele lhe expunha o motivo da sua ausência, ela via, magoada, extinguir-se o inolvidável período da sua lua de mel!

Como badaladas fúnebres, soavam e ressoavam aos seus ouvidos as frases do marido:

– É preciso acostumares-te... Terás muitas vezes de jantar sozinha!
= = = = = = = = = = = = =
Notas:
Corbeille = Coroa.
Estore = tipo de persiana ou cortina.
Étagère = Aparador.
Psyché = Espelho


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXVII

VINHO


MOTE:
O sol engravida a chuva,
e a terra se faz seu ninho,
no ninho se faz a uva,
e a uva desfaz-se em vinho!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
O sol engravida a chuva,

com carinho, gota a gota,
como se fosse uma luva
na mão da Chuva Garota!

Produz-se morna umidade
e a terra se faz seu ninho,
e em grande fertilidade
vai nascendo o seu carinho!

O Sol, então, coadjuva,
formando um ninho de amor...
no ninho se faz a uva,
de delicioso sabor!

Numa simbiose preciosa
vemos, aberto o caminho,
nascer a uva gostosa...
e a uva desfaz-se em vinho!
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TUA CARTA

MOTE:
Tua carta inesperada
tantas lembranças me trouxe,
que eu vivi de um quase nada,
um quase tudo tão doce!...
Analice Feitoza de Lima
(Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP)


GLOSA:
Tua carta inesperada

me chegou fazendo alarde;
era tão apaixonada,
que coloriu minha tarde!

Essa carta, em minha mão,
tantas lembranças me trouxe,
que um temporal de emoção,
em minha alma triste, armou-se!

A quimera idealizada
no real foi se tornando,
que eu vivi de um quase nada,
o amor que vinha chegando!

E a minha ânsia de amar,
não ligou que um sonho fosse,
pois, a mim, fez vivenciar
um quase tudo tão doce!…
= = = = = = = = = = = = =

RENASCER

MOTE:
Na vida tem melhor sorte
quem consegue vislumbrar
não um fim dentro da morte
mas um novo despertar!
Arlindo Tadeu Hagen
(Juiz de Fora/MG)

GLOSA:
Na vida tem melhor sorte

aquele que tem, na fé,
seu verdadeiro suporte
e enfrenta a vida de pé!

É bem mais feliz, verdade,
quem consegue vislumbrar
essa doce realidade,
sempre a nos acompanhar!

Entender que é um transporte
a uma outra dimensão,
não um fim dentro da morte,
pois a morte é evolução!

Nascer, morrer, renascer!
E pra sempre continuar,
pois um fim não vai haver,
mas um novo despertar!
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QUANDO MORRE…

MOTE:
Quando morre um trovador,
o céu fica mais bonito.
– Mais uma estrela do amor
a cintilar no infinito!
Benedito Vieira Telles
(Maringá/PR)

GLOSA:
Quando morre um trovador,

só a Terra fica triste,
pois perdeu um grande amor,
que, agora, não mais existe!

Mas o céu, fica radiante,
o céu fica mais bonito,
ele fica mais brilhante,
e acolhe o filho bendito!

Nasce no céu, com fulgor,
unindo, então, suas trovas,
– Mais uma estrela do amor
entre as estrelas mais novas!

Trovador, a tua luz
lançada aos céus, como um grito,
é a estrela que reluz
a cintilar no infinito!
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MINHAS LÁGRIMAS

MOTE:
Amanhece… e eu me agasalho
na mais fria solidão,
porque o sol enxuga o orvalho
mas minhas lágrimas... não!
Edmar Japiassú Maia
(Nova Friburgo/RJ)

GLOSA:
Amanhece… e eu me agasalho

no sonho que me restou,
nesse meu sonho grisalho
que em meu coração ficou!

Mas eu me sinto sozinho,
na mais fria solidão,
é gelado o meu caminho,
cheio de pedras no chão!

O Sol faz o seu trabalho,
mas não brilha para mim,
porque o sol enxuga o orvalho
mas nem me vê triste, assim!

O Sol acarinha o mundo
em profunda inspiração,
abranda um penar profundo,
mas minhas lágrimas... não!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. julho de 2005.

sábado, 29 de janeiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 28: Orlando Brito

 

Machado de Assis (A Cena do Cemitério)

Não mistureis alhos com bugalhos; é o melhor conselho que posso dar às pessoas que leem de noite na cama. A noite passada, por infringir essa regra, tive um pesadelo horrível. Escutai; não perdereis os cinco minutos de audiência.

Foi o caso que, como não tinha acabado de ler os jornais de manhã, o fiz à noite. Pouco já havia que ler, três notícias e a cotação da praça. Notícias da manhã, lidas à noite, produzem sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que aparecem. A cotação da praça, conquanto tivesse a mesma feição, não a li com igual indiferença, em razão das recordações que trazia do ano terrível (1890-91). Gastei mais tempo a lê-la e relê-la. Afinal pus os jornais de lado, e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakespeare. O drama era Hamlet. A página, aberta ao acaso, era a cena do cemitério, ato V. Não há que dizer ao livro nem à página, mas essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom. Eram alhos com bugalhos.

Sucedeu o que era de esperar, tive um pesadelo. A princípio, não pude dormir, voltava-me de um lado para outro, vendo as figuras de Hamlet e de Horácio, os coveiros e as caveiras, ouvindo a balada e a conversação. A muito custo, peguei no sono. Antes não pegasse! Sonhei que era Hamlet, trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma cor. Tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. Até aí nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José. Achei natural, ele não o achou menos. Saímos de casa para o cemitério, atravessamos uma rua que nos pareceu ser a Primeiro de Março e entramos em um espaço que era metade cemitério, metade sala. Nos sonhos há confusões dessas, imaginações duplas ou incompletas, mistura de coisas opostas, dilacerações, desdobramentos inexplicáveis; mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Horácio, tudo aquilo devia ser cemitério. Tanto era que ouvimos logo a um dos coveiros esta estrofe:

 Era um título novinho,
Valia mais de oitocentos;
Agora que está velhinho
Não chega a valer duzentos.


Entramos e escutamos. Como na tragédia, deixamos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ofélia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e papéis. A um deles ouvia bradar que tinha trinta ações da Companhia Promotora das Batatas Econômicas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil réis por elas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horácio, que me respondeu, pela boca de José: "Meu senhor, as batatas desta companhia foram prósperas enquanto os portadores dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez que o plantassem era indício certo da decadência e da morte."

Não entendi bem, mas os coveiros, fazendo saltar caveiras do solo, iam dizendo graças e apregoando títulos. Falavam de bancos, do Banco Único, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, e os respectivos títulos eram vendidos ou não, segundo oferecessem por eles sete tostões ou duas patacas. Não eram bem títulos nem bem caveiras; eram as duas coisas juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos de olhos, dentes por assinaturas. Demos mais alguns passos, até que eles nos viram. Não se admiraram; foram indo com o trabalho de cavar e vender. - Cem da Companhia Balsâmica! - Três mil réis. - São suas. - Vinte e cinco da Companhia Salvadora! - Mil réis! - Dois mil réis - Dois mil e cem! - E duzentos! - E quinhentos! - São suas.

Cheguei-me a um, ia a falar-lhe, quando fui interrompido pelo próprio homem: "- Pronto Alívio! meus senhores! Dez do Banco Pronto Alívio! Não dão nada, meus senhores? Pronto Alívio! senhores... Quanto dão? Dois tostões? Oh! não! não! valem mais! Pronto Alívio! Pronto Alívio!" O homem calou-se afinal, não sem ouvir de outro coveiro que, como alívio, o banco não podia ter sido mais pronto. Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakspeare. Um deles, ouvindo apregoar sete ações do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto à reticência. Como espírito, não era grande coisa; daí a chuva de tíbias que caiu em cima do autor. Foi uma cena lúgubre e alegre ao mesmo tempo. Os coveiros riam, as caveiras riam, as árvores, torcendo-se aos ventos da Dinamarca, pareciam torcer-se de riso, e as covas abertas riam, à espera que fossem chorar sobre elas.

Surgiram muitas outras caveiras ou títulos. Da Companhia Exploradora de Além-Túmulo apareceram cinquenta e quatro, que se venderam a dez réis. O fim desta companhia era comprar para cada acionista um lote de trinta metros quadrados no Paraíso. Os primeiros títulos, em março de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível? Esta dúvida entrou no espírito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatlântico, para ir consultar um teólogo europeu, levando consigo tudo o que havia mais cognoscível entre os valores. Foi um coveiro que me contou este antecedente da companhia. Eis aqui, porém, surdiu uma voz do fundo da cova, que estavam abrindo. Uma debênture! uma debênture!

Era já outra coisa. Era uma debênture. Cheguei-me ao coveiro, e perguntei que era que estava dizendo. Repetiu o nome do título. Uma debênture? - Uma debênture. Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia:

- "Alas, poor Yorick!" Eu o conheci, Horácio. Era um título magnífico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontório de marfim velho lavrado; eram de nácar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca saíam as mais sublimes promessas em estilo alevantado e nobre. Onde estão agora as belas palavras de outro tempo? Prosa eloquente e fecunda, onde param os longos períodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de cristal, as almofadas de cetim? Diz-me cá, Horácio.

- Meu senhor...

- Crês que uma letra de Sócrates esteja hoje no mesmo estado que este papel?

- Seguramente.

- Assim que, uma promessa de dívida do nobre Sócrates não será hoje mais que uma debênture escangalhada?

- A mesma coisa.

- Até onde podemos descer, Horácio! Uma letra de Sócrates pode vir a ter os mais tristes empregos deste mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda valha menos que esta debênture.

- Saberá Vossa Senhoria que eu não dava nada por ela.

- Nada? Pobre Sócrates! Mas espera, calemo-nos, aí vem um enterro.


Era o enterro de Ofélia. Aqui o pesadelo foi-se tornando cada vez mais aflitivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o séquito, o caixão. Tudo se me fez turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o jovem Laertes saltou dentro da cova, saltei também; ali dentro atracamo-nos, esbofeteamo-nos. Eu suava, eu matava, eu sangrava, eu gritava...
 
- Acorde, patrão! acorde!

Fonte:
Machado de Assis. Páginas recolhidas. 1894.

Baú de Trovas XLI


O amor, para ser gostoso,
jamais deve ser pamonha!
Tem de ser escandaloso,
cego, surdo e sem-vergonha...
A. A. DE ASSIS

Lá vêm os noivos chegando!
Assisto a festa... e depois,
fico invejoso pensando
na festa só deles dois...
ADAUTO GONDIM

A caminho do cartório,
ante o fado me prosterno:
— perto dela... é o purgatório!
E longe dela... o inferno!
ANTÔNIO TORTATO

De tanto falar asneira,
com franqueza, o Dr. Caio
mais parece uma toupeira
com ares de papagaio...
APARÍCIO FERNANDES

Quem da sogra fala mal,
naturalmente se esquece:
neste mundo cada qual
tem a sogra que merece.
AUGUSTO ASTÉRIO DE CAMPOS

Fui ao cinema contigo
e ficamos de mão dada.
Do nosso amor eu sei tudo,
do filme não soube nada!...
CECIL RAMON MODESTO

Quando o doutor Serafim
deixou, rico, a medicina,
a Morte gemeu assim:
— Como vou ficar mofina!
CELSO FURTADO DE MENDONÇA

O boquinha, volta e meia,
bebendo pela cidade,
é sempre de cara cheia
que enfrenta a cara metade...
COLBERT RANGEL COELHO

Apesar de tão variável
em beleza e sentimento,
a mulher é incomparável
naquele certo momento...
DAMIÃO MENDONÇA DE SANTANA

Se a mulher é admirável,
tome um bom chá de cautela,
— pois ela será variável
na proporção em que é bela!...
DIOMEDES SANTOS

De tua boca engraçada,
fonte de loucos desejos,
eu nunca esperei mais nada
senão tolices e beijos.
DJALMA ANDRADE

Engraçado, mas profundo,
não sei se já percebeste:
hoje, as almas do outro mundo
têm medo das almas deste.
DURVAL MENDONÇA

— Doutor, desejo cortar
do cão o rabo que agita.
Não quero vê-lo abanar
quando a sogra me visita...
ÉDISON RUIVO DE SOUZA

Quando eu era gato novo,
miava pelos telhados.
Hoje, que sou gato velho,
ninguém ouve meus miados...
EDSON MACEDO

Minha sogra não reclama
o tratamento que eu dou.
Até de filho me chama
— só não diz que filho eu sou...
ÉLTON CARVALHO

O meu guarda-chuva tem
este mistério tamanho:
— Se o levo, a chuva não vem,
mas se o deixo... tomo um banho!
HERALDO LISBOA

Tinha a sogra falecido
e ele triste se mostrou.
Surgiu breve um desmentido,
e o coitado, então, chorou.
ILDEFONSO DE PAULA

É tão feio e gordo, eu creio
que não se chega a um acordo:
se ele é mais gordo que feio,
se ele é mais feio que gordo.
J. DIAS DE MORAES

Do jeito em que a moda vai,
de uma coisa eu me convenço:
— não demora, e a mulher sai
de bota, peruca... e lenço!
JORGE ROCHA

— Mamãe, a nossa empregada,
desse jeito, assim, não vai!
Após beijar meu irmão,
correu e abraçou papai!...
JOSÉ MARIA DO VALLE E SILVA

Jurou eterna viuvez...
Chorou tanto e ~ quem diria...
durou apenas um mês
a solidão de Maria!...
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA

Um homem muito magrinho
não pode, em boa verdade,
casando com mulher gorda,
chamar-lhe "cara metade".
LÍDIA CORREIA SERRAS PEREIRA

São tão caros, atualmente,
os remédios, seu Doutor,
que não fazem bem à gente...
fazem bem ao vendedor.
MAGDALENA LÉA

Passei os olhos, ligeiro,
no seu olhar proibido,
e sobre mim vi primeiro
os olhos do seu marido.
MURILO G. LOPES

Desquitadas mãe e filha,
tem a nota igual fadário.
Conclusão: nessa família,
o desquite é hereditário.
NELSON VA2

A mulher, ou por vaidade,
ou por ser demais esperta,
depois de uma certa idade,
não tem mais idade certa!
NERO DE ALMEIDA SENA

Neste mundo interessante
há muito doutor de beca,
que, em vez de mente brilhante,
tem o brilho na careca.
PAULO EMÍLIO PINTO

Certos críticos se impõem
como mestres de poesia...
Mas os versos que compõem,
Santo Deus, que porcaria!
RODRIGUES CRÊSPO

Não tendo de quem falar,
cuspindo infâmias a esmo,
costuma se confessar
pra falar mal de si mesmo!...
SYLVIO MACHADO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Carolina Ramos (O Horror de uma Queimada!)

Nota do Blog: Este conto foi publicado dia 27, contudo por nossa falha faltou uma explicação da Carolina sobre o conto, especificando que apesar do texto estar no livro dela, o verdadeiro autor é anônimo. Seguem, portanto, o preâmbulo... e o conto novamente.
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MAIS UM DEDO DE PROSA COM O LEITOR:

Há coisas que, uma vez chegadas, se acoplam à nossa mente e não saem nunca mais. No meu caso, a imagem das queimadas é uma delas.

Quando ainda muito jovem, li, com olhos atônitos, num dos meus primeiros livros de leitura, o relato de um grande escritor que descrevia com extremo realismo uma queimada. As tintas que coloriam as imagens eram tão vivas que, de modo indelével, gravaram aquele horror em minha mente para que não mais fosse esquecido.

Foge-me o nome do autor. Aliás, naqueles tempos de leitora iniciante, o nome do autor era o que menos importava. Não sei por que, ao relembrar o fato, acode-me sempre o nome augusto de Monteiro Lobato. Pesquisei e não posso assegurar seja dele o tal texto, do qual guardo apenas a emoção, que resumo em poucas palavras: - a pequena onça, ou, quem sabe, outra fêmea qualquer, fugida às labaredas, novamente as enfrenta e sucumbe, ao tentar salvar a cria.

A partir deste desfecho e com base na triste imagem resguardada por minha memória juvenil, reproduzi, posteriormente, aquela história. E este mesmo texto vi-me tentada a selecionar, agora, para publicá-lo aqui, uma vez que se casa, perfeitamente, com o espírito deste "Canta... Sabiá!", embora a assegurar de antemão que o enredo, hoje burilado, absolutamente, não me pertence. E que esta publicação seja como que uma homenagem ao autor desconhecido, cujo texto mergulhou fundo em minha alma adolescente permanecendo em mim até hoje.

Portanto, repito, conto, aqui, o que já foi contado e naturalmente melhor do que o faço agora, uma vez que a intensa emoção despertada acompanhou-me desde sempre, possibilitando que a guardasse viva em minha memória, a ponto de me permitir recompô-la e repassá-la aos netos e bisnetos que a vida me daria.

Precedido por esta ressalva e, em homenagem ao verdadeiro autor, aqui vai "o horror de uma queimada", eco longevo de um protesto contido desde criança, em repúdio à incúria humana.

O HORROR DE UMA QUEIMADA

Queimando em silente chama,
a floresta, em triste sina,
caindo ao chão, ainda clama
pela vida… que termina…!
Mara Melinni
(Caicó/RN)


Línguas do morro estalavam de gozo ao lamber gulosas a encosta do morro. A subir sempre, deixavam para trás o estigma desolador da calcinada e negra mortalha do nada, a identificar o terror de uma queimada!

Ante a tórrida investida, a própria atmosfera reverberava de medo enquanto as árvores do bosque vizinho estremeciam de horror, na cruel expectativa de serem as próximas vítimas.

Já o dia avançara em horas quando a mão irresponsável, ou mais que isso, criminosa, ateara a primeira fagulha.

A imprudência de uma ponta de cigarro atirada da estrada fora o bastante.

- A chama bruxuleante aprumara-se como vela a arder, silenciosa, num prenúncio de
velório a curto prazo.

Fera encurralada a pressentir perigo, a natureza eriçava-se num brado de alerta enquanto pássaros assustados flechavam o espaço em ruidosa fuga! A algazarra das cigarras calara-se. Por todo lado, prevalecia a angustiante sensação de catástrofe iminente.

Mercê da prolongada estiagem, nada mais a relva seca poderia fazer do que responder ao estímulo daquela brasa de cigarro e ardia ligeira como rastilho de pólvora, logo a alcançar tufos de capim mais volumosos - por sua vez a estenderem o desastre à aba da floresta.

Resinas múltiplas em combustão embalsamavam a atmosfera. E um aroma indefinido resguardava, no fundo, o terrível cheiro de morte!

Ligeira, a jaguatirica ultrapassou em pânico a barreira incandescente, atirando-se, em desespero, para fora da mata esbraseada. Só, então, parou ofegante, olhos esgazeados, presos ao fogaréu, como que imantados pelo inferno do qual por instinto haviam, milagrosamente, escapado! No pelo chamuscado, as marcas do horror vencido.

Trêmula, a oncinha permaneceu imóvel por mais alguns instantes, eletrizada pelo terror que deixava transparecer a luta íntima em que se debatia! Decidiu-se, por fim. E, num impulso suicida, arremeteu de volta, invadindo a cortina rubra que cercava a floresta incendiada!

Cada instante ganhava proporções gigantescas!

Quando a pequenina onça, personagem heroica deste drama, deixou o trágico picadeiro, trazia nos dentes o corpo desfalecido da cria, sofrida e indefesa. Longe do perigo e com a insuperável esperança das mães, a fragilizada fêmea depositou na relva sã a cria inerte, a tentar reanimá-la com todos os recursos ditados pelo instinto materno. Num esforço desesperado, lambia sôfrega as pequeninas patas crestadas, penteando com a língua macia o pelo fumegante do filhote.

Prosseguiu, sem interrupção, até que as forças lhe fugiram... tombando, enfim, inerte, junto ao filho morto.

A queimada, com fúria assassina, prolongava feroz a sua obra devastadora, enquanto no
rol dos desmandos humanos mais duas inocentes vítimas eram somadas.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.
- Trova de Mara Melinni inserida no texto, por José Feldman.

Estante de Livros (Antígona, de Sófocles)


Sinopse:

Antígona é uma peça teatral escrita por Sófocles em 441 a.C. cujos fatos aconteceram por volta de 1.250 a.C., em Tebas na Ásia Menor, na qual exalta a coragem de uma princesa que enfrenta o rei arriscando a própria vida em defesa de um princípio.

Numa das mais belas e dramáticas tragédias já escritas, Sófocles devassa em toda a sua profundidade o amor, a lealdade, a dignidade.

O confronto entre Creonte e Antígona encena rivalidades centrais da experiência humana, a justiça e a injustiça, o direito natural e o direito positivo, a sociedade e o indivíduo, o Estado e a consciência, a prática e a moral, a submissão e a rebeldia, o masculino e o feminino, o velho e o jovem.

O enredo

A intriga da história começa com uma alusão à guerra dos Sete contra Tebas, na qual os dois irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, se confrontam em lados opostos na disputa pelo trono.

Ambos morrem no campo de batalha, mas aos olhos de Creonte, tio daqueles, Polinices é considerado traidor de Tebas e, por isso, não lhe são concedidas honras fúnebres.

A Decisão

Creonte, com a morte dos dois sobrinhos Etéocles e Polinices, torna-se rei de Tebas.

A sua primeira decisão como regente, foi enterrar o sobrinho Etéocles com todas as honras funerárias e deixar o corpo de Polinices insepulto. Para que se cumpra a sua decisão, decreta que a pena para a desobediência, é a morte.

A Contestação

Antígona, apesar do interdito do rei Creonte, quer sepultar o irmão Polinices e evoca para tanto um princípio da lei não escrita.

Antígona diz a Creonte que acima da Lei da Cidade existe a Lei Divina e que está acima das leis cósmicas incorporadas na ordem social.

A Desobediência

Antígona recusa-se a cumprir a ordem de Creonte e, considerando tratar-se de um dever sagrado dar sepultura aos mortos, infringe a ordem do soberano e realiza os rituais fúnebres a que o irmão tem direito.

As Consequências

Devido a este ato de piedade, Antígona é condenada à morte pelo rei de Tebas e encarcerada viva no túmulo dos Labdácidas, de quem descende.

A ação impiedosa do rei será punida no final da tragédia: ao tomar conhecimento da morte de Antígona, Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, suicida-se.

Por consequência deste segundo suicídio, é a vez de Eurídice, mãe de Hêmon, decidir "morar eternamente no Hades".

O Impasse


Abre-se aqui um abismo entre a consciência do indivíduo que está aberta para a Lei Divina supra-cósmica e a consciência do meio social que está presa no meio da ordem cosmológica.

Este abismo gera um conflito entre a Lei dos Céus (dos deuses) que ela defende e a Lei da Terra (dos homens) que Creonte precisa fazer cumprir. Cria-se assim um impasse, resultante da contraposição entre duas esferas de poder: A Lei dos deuses e a Lei humana.

O Dilema

Todo o enredo da tragédia de Tebas gravita em torno desse dilema moral que dura mais de 3 mil e 250 anos e que faz de Antígona uma das mais importantes obras que dá os princípios basilares para o cristianismo:

Cumpre-se a Lei do Céu ou a Lei da Terra?

Considerações importantes

1. A falta de Antígona foi o de desrespeitar uma ordem do rei.

2. Creonte tinha razão quanto a defesa da Lei da Terra (Poder temporal), todavia sua decisão interferiu sobre a Lei dos Céus (Princípio espiritual). Logo, qual das leis deve ser cumprida?

3. Este dilema já dura 3.250 anos porque as duas posições são imprescindíveis para a humanidade.

4. Creonte era um governador e não um estadista* esse foi o seu maior problema.

* Estadista é aquele que consegue sacrificar a Lei da Terra em prol da Lei dos Céus.

5. É preciso considerar a hierarquia das leis divinas sobre as disposições humanas.

6. Imaginar que o humanismo é a solução para os problemas humanos é de uma ingenuidade incrível. Equipara-se ao raciocínio de uma criança de 8 anos.

7. Perder a noção do sagrado é a pior coisa que pode acontecer ao ser humano. Foi o que aconteceu com Creonte quando toda uma tragédia se abateu sobre a sua regência e sua família.

Conclusão

1. O ser humano pela sua condição de dualidade (Divina e Terrena), viverá permanentemente em conflito entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal de cuja ambiguidade não conseguirá sair jamais. Por essa razão que o problema já dura mais de três milênios.

2. Não há solução coletiva para o problema. A solução para conflito resultante da dualidade humana será sempre individual, pois não há solução fora do indivíduo, porque nada substitui a sua consciência individual das coisas.

Sobre o autor:

Sófocles (495 a.C. – 406 a.C.) nasceu e morreu em Atenas, na Grécia, e foi um dos maiores intelectuais da Antigüidade clássica. Autor prolífico e consagrado em seu tempo produziu cerca de 120 peças das quais restaram conservadas apenas 7, entre as quais Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, Ájax e Electra.

Fonte:
Texto de Anatoli Oliynik, em seu blog Anatoli: um blog cultural.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Varal de Trovas n. 545

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 50, 51 e 52


EXCESSO DE COMPANHIA


Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.

Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

— Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
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EXPERIÊNCIA

O arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e cassetete
eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.

Contudo, a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente, não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo, onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos, que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:

— Daqui por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher dele.

O arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e fazia coisas sem sentido.
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FURTO DE FLOR

Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava, e eu furtei a flor.

Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida. Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem.

Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via morrer.

Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:

— Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Rosani Abou Adal (Álbum de Poemas)

A BELEZA

Não tenhas medo
de te olhares no espelho
Ainda que seja meia-noite...
Não és nenhum lobisomem
Não és um Drácula, ou vampiro.
mesmo que fosses, não haveria
Nenhum terror
em ver tua imagem...
 
apenas iria resplandecer
tua beleza!...
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CONQUISTAS DA VAMPIRESA

És uma metuendo*-vampiresa
que recebeu título de Duquesa
por teres conquistado os mais nobres
Capas-pretas do Reino Vamp...
 
Os Presidentes da alta Cúpula
consagraram-te Marquesa...
Por teres conquistado
todo o exército canino...
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* Metuendo = que causa temor, que mete medo
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DRÁCULA PAIXÃO

A lua cheia vestiu-se
com uma capa de vampiro
Penteou seus cabelos
e fez um topete com gumex
Escovou os dentes
com o creme dental
“Amor-Vampírico”
E passou um perfume
hipnotizante
para conquistar
sua Drácula-Paixão
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LOUCA VIAGEM

És o bruxo que me enfeitiça
e ouriça minhas veias.
És o mago, que me fascina
com olhos alucinantes...
És o dragão que me conduz
a uma louquíssima viagem...
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LUA CHEIA DOS VAMPIROS

Sou o sol que nasce nas montanhas
A neblina das cordilheiras
Sou o vento que limpa os campos
Dos vampiros, a lua cheia...

Vou te atacar com meus dentes
e tu provarás o néctar
venenoso-transcendental
que carrego comigo.

E arderás em febre...
E eu serei a febre
que te mata.
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VÉRTICE DO APOCALIPSE

Sou a coruja perdida
da noite erótica-lunar.

A noite se está se pondo...
E a bruxa faz a poção mágica
em seu caldeirão-feiticeiro...
 
Ao tomar a essência dessa magia
adentrarei a noite misteriosa
em busca do amor
que se encontra
no vértice do apocalipse...
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Rosani Abou Adal, nasceu em 1960, na capital de São Paulo. Formada em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo e Publicidade e Propaganda - pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Especialização na USP - Artes Plásticas e Música, o enfoque multidisciplinar da sociologia e da arte. Edita com Adriano Nogueira (1928-2004) o jornal literário mensal Linguagem Viva, que circula mensalmente, desde setembro de 1989.
 
Exerce o cargo de vice-presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo. Autora dos livros de poemas Manchetes em Versos, Catedral do Silêncio, De Corpo e Verde e Mensagens do Momento.

Entre os diversos prêmios recebidos:
Prêmio “Ribeiro Couto” da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro com o livro Catedral do Silêncio - 1998;  
Melhor Jornal Literário do Brasil - IWA - International Writers and Artists - Buffton College - EUA - 1996;
Moção Honrosa da Câmara dos Vereadores de Piracicaba pelos Serviços Prestados à Cultura - 1987;
Prêmio Mulheres no Mercado – Categoria Literatura – promovido pela Secretaria Municipal de Cultura e Casa de Cultura de Santo Amaro – 2004;
Diploma em comemoração aos 200 Anos da Imprensa Régia pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 2008;
Diploma de Mérito Cultural e medalha do  Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais - MG - InBrasCI - Minas Gerais, em 2008.

 
Fonte:
Dados e poemas enviados por Isabel Furini.

Lima Barreto (Ele e suas ideias)

Conheci-o no tempo em que trabalhava na Fon-Fon*. Era um homem pequeno, magro, com um reduzido cavanhaque, bem tratado, mas a sua tragédia íntima e interior só a vim conhecer perfeitamente mais tarde. Não foram precisos muitos dias, mas foram precisos alguns.

Andávamos por esse tempo na febre dos melhoramentos, das construções e, a todo momento, ele lembrava a este ou aquele jornal uma ideia.

Um dia, era uma avenida, outro dia, era uma ponte, um jardim e, de tal modo, a mania de ter ideias o tomou, que não se limitava a deixá-las pelos jornais. Ia além. Procurava em ministros, fazia requerimentos aos corpos legislativos, propondo tais e tais medidas.

Era um pingar de ideias diário, constante e teimoso.

É de crer que, após o almoço, ele dissesse à mulher: “Filha, hoje tenho quatro ideias”, e saísse contente a procurar redações, deputados, proprietários, ministros, chefes de serviço, escorrendo ideias.

Nos jornais, ele propunha melhoramentos na folha, sessões, “enquetes”, autores para folhetim.

Os secretários já o temiam e, quando ele apontava na porta da sala, coçava a cabeça e lá diziam consigo: — “Lá vem o homem que tem ideias”.

E ele não tinha nenhuma piedade, abancava-se ao lado do redator e, zás, duas ideias. Para aquela fecundidade, não havia quase tempo de gestação. Certas vezes, mesmo, entre duas ideias, brotava outra e, se esta era de um melhoramento urbano, enquanto a primeira era de coisa jornalística, ele deixava o secretário e corria ao prefeito.

O prefeito e o seu gabinete já conheciam o extraordinário e fecundo homem e, logo que ele se fazia anunciar, o chefe da cidade dizia para o secretário: “Esse diabo! Lá temos o homem das ideias”.

As suas ideias eram as mais disparatadas possíveis. Quase sempre eram inviáveis ou inúteis.

Ele tinha viajado, de modo que queria ver no Rio todas as coisas soberbas do mundo: os jardins do Píncio, a torre Eiffel, o túnel sobre o Tâmisa. E ao acudir-lhe, por exemplo, a ideia de desviar o Paraíba para a baía de Guanabara, corria às nossas autoridades em engenharia e pedia o parecer delas.

Ficaram os mesmos engenheiros atarantados, atordoados, apavorados, diante das extravagantes inutilidades do homenzinho. Mas não se pode executar? Perguntava ele à menor objeção. Se tivesse resposta favorável, a sua fisionomia irradiava. Era de vê-lo nos momentos de concentração ou senão quando expendia as suas cogitações. Tinha então uma poderosa beleza, que empolgava e a tornava simpática.

Para levar os dias a destilar ideias, ele tinha que passar as noites a pensar. Creio que dormia pouco: todo ele se encontrava na função de ter ideias. E era pródigo, e era generoso, e era desperdiçado: pensava, tinha ideias e dava aos outros.

Em sua casa, a sua mania se propagara. A mulher, os filhos, os criados também tinham ideias. Quando lhe faltavam, recorria a eles.

Uma vez, o cozinheiro até lhe dera uma muito interessante: a dos bondes restaurantes; e ele correra logo à Light para lembrar a coisa.

Ocasiões havia que ele ficava desolado, desesperado e aflito: era quando não tinha nenhuma e da família nada podia sacar.

— Ah! Chiquinha — dizia ele —, hoje saio sem nenhuma ideia. Que vão dizer de mim? Estou desmoralizado...

Quando, porém, lhe vinham muitas, que alegria! Que regozijo! A manhã ficava-lhe sorridente, cantarolava, arreliava...

No bonde, logo ao encontrar o primeiro amigo, agitava a conversa e pespegava:

— Aurélio, se o prefeito quisesse, podia fazer um grande melhoramento.

— Qual é? – indagava o amigo.

— Estabelecer um imenso foco elétrico no alto do Corcovado. Devia, por isso, a iluminação da cidade ficar mais perfeita.

E dizia a coisa bem alto, para que os vizinhos ouvissem. Após ter dito, observava uma por uma as fisionomias e tomava-lhes o espanto pela admiração causada pelo arrojo de sua imaginação.

Este homem singular, este homem que, no seu gênero era um Edison ou um Marconi, nunca foi apreciado. Os poderes públicos não tomaram na devida consideração os seus projetos: os jornais não o apontavam à admiração do público, e ele vive hoje — triste, abandonado, desolado, em uma pequena cidade do interior.

Estive com ele há dias, lá, e senti-me confrangido*, diante de sua desolação, do seu abatimento.

Conversamos sossegados debaixo de uma jaqueira úmida, e lembrei-lhe o seu passado e a glória que lhe escapou. Ele me ouviu triste, olhou-me depois longamente e me disse:

— Que se há de fazer? Esta terra não estima seus filhos...

— Não é só aqui. — disse-lhe eu — Em toda a parte é assim.

— Mas nas outras terras, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, há esperança de uma recompensa final, mas, no Brasil, que nos pode sustentar na luta?

E abaixou a cabeça para o chão ingrato da pátria, que o havia criado, mas que não o soubera animar no árduo trabalho de ter ideias. Não era um Mário nas ruínas de Cartago, porque afinal ele estava em sua pátria, era alguma coisa mais angustiosa, como que o próprio desalento em pessoa.

Eu lhe respeitei a dor, fugi ao assunto e tivemos a conversar sobre umas várias e sem importância.

Entardecia e o crepúsculo vinha lentamente, pondo nas coisas a sua poesia dolente e a sua deliquescência*.

Levantei-me para me despedir e ele veio até a porteira. Estivemos ainda parados, a ver a imensa sebe de bambus, curvados em nervuras de ogivas. Uma cigarra começou a estridular e os bambus agitaram-se em pouco, a um leve vento. Despedi-me afinal, mas, quando ia partir de vez, o homem me disse, de repente cheio de contentamento:

— Acabo de ter uma ideia.

— Qual é? — perguntei-lhe.

— O aproveitamento do bambu para encanamento d’água, nas cidades. Há economia e será uma fonte de renda para o Brasil.

Olhei-o atento, nada lhe disse e segui devagar pela estrada afora.
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NOTAS

*Confrangido = (sentido figurado) atormentado, aflito.

*Deliquescência = (sentido figurado) estado de decomposição; degeneração, decadência

*Fon-Fon = Revista brasileira ricamente ilustrada, repleta de caricaturas da época, idealizada pelo escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, cujo início da circulação no Rio de Janeiro data de 1907. Lima Barreto foi assíduo colaborador da revista.


Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 19

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVI

DEIXO AO CEGO E AO SURDO  

Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,  
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
 
Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,  
Olho-os com inocência :
Nada que vejo é meu.  
 
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
 
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.
 
E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.
 
Ah. tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.
 
Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
 
Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?
 
Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.
 
Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
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DEPOIS QUE TODOS FORAM  

Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e minha agonia.
 
A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.
 
Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as  sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.
 
Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não  ser.
= = = = = = = = = = = = =

DESFAZE A MALA FEITA PRA A PARTIDA!  

Desfaze a mala feita pra a partida!
Chegaste a ousar a mala?
 Que importa?  Desesperar ante a inda
Pois tudo a ti iguala.
 
Sempre serás o sonho de tim mesmo.
Vives tentando ser,
Papel rasgado de um intento, a esmo
Atirado ao descrer.
 
Como as correias cingem
Tudo o que vais levar!
Mas é só a mala e não a ida  
Que há de sempre ficar!
= = = = = = = = = = = = =

DESPERTO SEMPRE ANTES QUE RAIE O DIA  

Desperto sempre antes que raie o dia
E escrevo com o sono que perdi.
Depois, neste torpor em que a alma é fria,
Aguardo a aurora, que já quantas vi.
 
Fito-a sem atenção, cinzento verde
Que se azula de galos a cantar.
Que mau é não dormir?  A gente perde
O que a morte nos dá pra começar.
 
Oh Primavera quietada, aurora,
Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria,
O que é que na alma lívida a colora
Com o que vai acontecer no dia.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Aparecido Raimundo de Souza (Irrefutável)


A PRISCILA CHEGA PARA O PAI assim que ele coloca os pés em casa e, na sua inocência dos onze anos, manda os questionamentos sem pensar duas vezes no que obterá como esclarecimentos às suas indagações:

— Pai, paizinho... posso lhe perguntar umas coisas?

— Claro, minha filha.

— O senhor me ama?

— Muito, Priscila. Você nem imagina o quanto!...

— Tem certeza, pai?

— Está duvidando do seu velho pai?

Priscila insiste, com certa veemência:

— Me ama como ama a mamãe?

— Amo as duas da mesma maneira, ou melhor, amo de maneiras e formas iguais. Só que, embora sendo amores iguais, são amores com perfis e sentidos diferentes.

— Como é lá isso, pai, se o senhor acabou de dizer que embora sendo amores iguais, têm sentidos diferentes?

— Vou tentar explicar de modo bem simples. O meu amor por você Priscila, é um amor de pai para filha. É aquele amor paternal, fantástico, puro, sem manchas, que está guardadinho, num cantinho oculto, escondidinho bem aqui dentro do meu peito. Que aflora no sopro do menor movimento que eu faça quando lhe beijo e lhe abraço. Em igual intensidade, o que sinto por sua mãe não se descreve... é verossímil.

— É o que, pai? Não entendi... vero... vero o quê?!

— Verossímil, filha. É aquele amor que parece verdadeiro e, na verdade é. Em outras palavras: o amor de seu pai pela sua mãe é um amor bonito e sincero, de um homem que ama uma só mulher e não a troca por outra, nem quer se desgrudar dela. Pede à Deus que seja para sempre. E que Ele proteja a união, e permita que fiquem juntos até que a morte os separe...

— O senhor tem certeza disso, pai? É de fato verdadeiro ou não?

— Claro que sim, filha. Vou dar um exemplo prático. O amor que sinto por sua mãe é como o amor que você nutria por aquela bonequinha Barbie que você carregava pra baixo e pra cima. Você a amava incondicionalmente, ou seja, não ficava sem ela. Onde você ia, a levava com você, como se fizesse parte do seu corpo. Tenho certeza que se perdesse ou esquecesse, morreria de tédio e de solidão. Diga sinceramente para seu pai: você, três ou quatro anos passados, ficaria um minuto sem a sua bonequinha?

Priscila faz uma carinha triste. Concorda:

— Não, pai. A Barbie que o senhor me deu está comigo até hoje.

— Pois então, minha filha. Igual a você, eu não seria completo sem o amor da sua mãe. Ela é essencial. É dela... ou melhor, é dela que sai a minha felicidade e que me mantém vivo e respirando. Em outras palavras: é do coração de Virgínia que brota todo o amor imensurável que preenche a minha vida. Sem a sua mãe, seu papito aqui não seria ninguém... Por falar nisso, me ajuda a colocar os pratos na mesa para o jantar! Nossa Deusa está quase chegando do hospital. Não sei de onde tirou a ideia maluca de ser enfermeira...

De repente, Priscila muda completamente o rumo da conversa. A mesa quase pronta, faltando apenas as panelas, segue a curiosa com os questionamentos, todavia, agora, mais impertinentes e obsessivos:

— O senhor sabe que o pai da minha amiga Débora foi embora?

O sujeito treme imperceptível. Finge um espanto momentâneo, tipo assim, estranho:

— Ele foi embora? Desconhecia esse fato... acaso você atinou com o motivo, minha princesa?

Priscila fuzila o pai, muito rígida. De antemão conclui que ele está mentindo de forma descarada:

— Paizinho, todo mundo aqui no bairro comenta. Até os cachorros...

— De onde você tirou essa ideia maluca?

— Não é maluca, pai. Há duas semanas que o seu Murilo se separou da dona Iolanda e se mandou e o senhor é o responsável. A Débora me falou que foi por sua causa. Ela me segredou que dia sim, dia não, antes de “vim embora pra casa”, o senhor passa ou melhor, ainda continua passando na lanchonete deles e bebendo vários copos de cerveja. Depois você mais dona Iolanda despistam, somem lá pros fundos e trocam afagos... e se beijam... e num desses trololós, seu Murilo chegou mais cedo do trabalho e filmou vocês dois...

O pai da garota quase tem um piripaque brusco e inopinado. Perde a cor natural, se prostra branco, carece se sentar às carreiras, como se tivesse o corpo, dos pés à raiz dos cabelos, girando desordenadamente em torno do próprio eixo. Protesta:

— Mentira, minha filha. Sua amiguinha Débora é uma grande loroteira. Desculpa! Uma tremenda fofoqueira de mão cheia. Não dê trela ao que ela lhe conta. Se essa desgraça de conversa fiada chega aos ouvidos da sua mãe... Jesus, Maria, José... pelo amor de Deus, filha, esquece esse assunto... seu pai lhe pede por tudo quanto é sagrado.

Priscila, apesar dos poucos anos, tem uma cabeça à todo vapor e cheia de pensamentos coerentes e claros, bem coordenados e maduros para a sua idade. Examina o pai, o observa de uma maneira dura e decidida, como se, ao derradeiro, previsse a pior desgraça num tempo não muito distante:

— Não tem como pai. Tarde demais. Seu Murilo descobriu toda a verdade e puxou o carro para, segundo ela, não lhe “cortar na bala...”.

— Como foi que disse filha? Me cortar na bala? E por que o Murilo faria tal coisa?

A menina se posiciona ainda mais impenetrável. Seus traços se amuam num semblante de quase mulher adulta. Do nada, começa a chorar. Entre lágrimas, esclarece, a voz completamente embargada:

— Pai, eu não quero assustar o senhor. Mas olha: pega aqui o meu celular e assiste as filmagens que a Débora me mandou ontem a tarde, pelo WhatsApp...

—... Filmagens? Que filmagens, filha?

— Por favor, pai, veja os vídeos... e se prepara para a bomba. Como o senhor continua passando por lá, como se nada tivesse acontecido, dona Noca, irmã do seu Murilo ficou de saco cheio e viralizou as provas. Não sei como vai acabar essa confusão toda entre o senhor e minha mãe. O que sei, é que a tia da Débora, a maldita dona Noca, postou as sacanagens entre o senhor mais dona Iolanda para todo o grupo da família dela e da nossa, incluindo a mamãe... por falar em mamãe não deve ter visto ainda essas bandalheiras, apesar do tempo, porque tem mania de desligar o telefone quando está de plantão no hospital. Não fosse por isso e por conta dos infectados da Covid-19, que ela está cuidando, o senhor estaria no mato sem cachorro...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Mundo Interno)

Diariamente, portais, jornais e TVs exibem grandes legendas de centenas de milhares de casos sobre pessoas em suas diversas atividades, lícitas e ilícitas. Tais fatos, normalmente, chamam muito a atenção da maioria que faz questão de reproduzir os fatos.

Os assuntos relativos à vida externa, são muito abordados nas plataformas de mídias predominantes no mundo de agora, que nada deixam escapar. Já as questões internas são pouco exploradas.

Pensando nisso, Virginia Woolf, no seu livro, Ao Farol, que é considerada por muitos como sendo uma obra estranha, pois o foco do livro não está atento às ações dos personagens, mas sim, aos seus pensamentos, debruça-se sobre esse tema.

O romance se passa no período da primeira guerra mundial. Tudo começa com uma introspectiva família inglesa e seus amigos, que costumavam passar as férias numa casa de praia. A primeira cena descreve a matriarca da família, dona Julia Stephen, conversando com um dos seus oito filhos. O menino declara o desejo de ir visitar o farol, que ficava numa ilha isolada. A mãe diz que, se no dia seguinte o tempo estiver ensolarado, nada impedirá o passeio. O garotinho dá pulos de alegria, mas, infelizmente, o tempo amanhece nublado, prestes a chover, e o passeio precisa ser adiado.

No decorrer da primeira parte do livro, a história se baseia num único acontecimento: um jantar. Um evento simples, aparentemente banal, mas em seus interiores, os personagens pensam, sentem e respiram seus universos particulares.

Ao presenciar uma dona de casa à beira do fogão, logo perguntamos: “O que teremos de bom para o almoço ou jantar de hoje". E lá vai a mulher explicar o cardápio, no entanto, ninguém ou quase ninguém busca saber o que se passa na mente daquela pessoa enquanto cozinha. O mesmo acontece com todo mundo em suas outras tarefas. Mesmo que, concentrados em seus trabalhos, os indivíduos não cessam por completo os seus pensamentos, tampouco, repreendem o que estão sentindo.

Nesses momentos o fluxo do imaginário corre solto e, cada um vive a sua vida paralela a vida dos outros, amando, se conformando ou odiando suas realidades. O ser humano é riquíssimo por dentro. E seus pensamentos e sentimentos, deveriam ser mais respeitados e abordados.

Trecho do livro:

“Sentia, muitas vezes, que não passava de uma esponja encharcada de emoções humanas”.

Hei, você aí que está a pensar sobre assuntos exclusivamente seus, independente se o sentimento é bom ou ruim. Ame o seu universo, e tudo o que não for suportável, entregue nas asas do vento.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 13

 

A. A. de Assis (O lambuzento mimeógrafo do Príncipe)

Meados de 1965. Do hotel onde eu estava, de passagem pelo Rio de Janeiro, telefonei para Luiz Otávio*. Ele, desejando encompridar a prosa, convidou-me para jantar em sua casa, em Vila Isabel. Encontrei-o embrulhado num avental de borracha, todo sujo de tinta. Explicou: estava na lida em seu famoso mimeógrafo, imprimindo um boletim do GBT – Grêmio Brasileiro de Trovadores, precursor de nossa atual UBT.

Os que têm mais de 50 anos certamente se lembram do velho mimeógrafo a álcool, uma complicada engenhoca muito usada então nas escolas e escritórios. A correspondência de Luiz Otávio era tão volumosa que ele precisou instalar em sua biblioteca uma daquelas rústicas impressoras. Ficava ali às vezes até de madrugada preparando o material que pelo correio enviava aos trovadores de todo o Brasil e de outros países.

Hoje me ponho a matutar sobre o que aquele extraordinário apóstolo da trova faria se tivesse podido contar com os recursos do computador e da internet. Se com a pachorrenta maquininha de escrever e o lambuzento mimeógrafo conseguiu fazer da trova o maior sucesso literário do século 20, imagine se tivesse à sua disposição as facilidades com que agora contamos...

Ah, sim... mas o que eu queria mesmo dizer era que durante aquele jantar discutimos os primeiros detalhes com vistas à realização do I Festival Brasileiro de Trovadores, megaevento que em abril de 1966 reuniu em Maringá os mais badalados craques da trova de todo o Brasil na época.
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*Luiz Otávio = Príncipe da Trova.