segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Acrobacia Inesperada)

Esta aconteceu no pátio da Sorocabana, no tempo em que Itararé era o maior entreposto madeireiro da América do Sul, e os lados da linha férrea eram completamente cercados por pilhas e mais pilhas de tábuas que ofereciam como passagem apenas estreitas e pequenas aberturas entre si.

Minha irmã Linéa e eu saímos numa tarde de domingo para visitar nossa amiga Lídia que morava do outro lado da linha.

O movimento no pátio era intenso e as manobras ininterruptas tornavam o cruzamento dos trilhos um perigo para quem não tivesse algum traquejo.

Por isso mesmo, já de antemão a Lídia se oferecera para orientar-nos na complicada travessia. Ela era filha do chefe da estação e tinha uma habilidade incrível para se locomover no meio daquele inferno de máquinas em constante movimento. À hora marcada, lá estava ela à nossa espera.

Naquele tempo todo mundo gostava de se trajar muito bem, mas nos domingos a coisa era um exagero! Estavamos as três elegantíssimas, os vestidos muito bem ajustados, meias finas e altíssimos sapatos de salto Luis XV que mal nos permitiam manter o equilíbrio. E assim equipadas, fomos enfrentar a difícil operação.

Passamos os trilhos e chegamos a um ponto em que a abertura entre as pilhas de tábuas era mínima. Estávamos justamente procurando o melhor jeitinho de passar para o outro lado sem rasgar a roupa, desfiar a meia, ou até mesmo enroscar o salto e quebrá-lo, danificando toda aquela irrepreensível elegância... quando eu olhei para um lado e a certa distância avistei um grande animal chifrudo.

"Lídia, o que é aquilo?"

"É um bode", respondeu ela com um arzinho entre preocupado e gaiato. "E ele avança na gente..."

"E que tal se ele inventa de avançar na gente agora? Neste lugarzinho mais crítico?"

Parece que o bicho escutou nossa conversa, pois foi eu acabar de falar e ele desembestou para o nosso lado numa velocidade que só avião a jato! Nenhuma de nós viu mais nada... Quando nos demos conta, estávamos as três confortavelmente instaladas, minha irmã e eu em cima de uma pilha, e a Lídia em outra. O bode ficou no meio...

"Venham aqui", chamava ela, rindo meio nervosa.

"Venha você para cá", respondíamos.

Situação mais ridícula era impossível. Apesar do susto, davamos boas risadas. E ali ficamos até que apareceu um garotinho, provavelmente o dono do bicho. Pegou o animal pela cordinha do pescoço e ele o seguiu docilmente, deixando o caminho livre para nós.

"Vamos descer!"

Falar foi fácil. Descer é que foi o diabo! Coisa mais inexplicável era minha irmã encontrar-se ali cm cima, ela que não conseguia subir nem em uma cadeira, que lhe dava tonturas... Quanto a mim, sempre fora chegada a proezas daquele gênero, eternamente enroscada aos galhos mais altos das árvores as quais me identificava como um verdadeiro macaco. Mas de saia justa, salto alto e meias... bem, a coisa em um pouco diferente. Se a escalada fora uma brincadeira, a descida foi uma barra!

Finalmente no chão, ajudei a Linéa, desajeitada para aquele tipo de coisa e medrosa como ela só! Não sei como a Lídia tinha se arranjada, mas já descera.

Estavamos intactas. Nem um fio de meia puxado. Lindas e arrumadinhas chegamos à casa da Lídia para uma tarde gostosa que terminou com chá, biscoitinhos e os deliciosos docinhos de banana que ela tão bem sabia fazer.

E tudo isso apesar de — literalmente - ter dado "bode" no programa...

(Tribuna de Itararé- 10/10/84)


Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

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