quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Hans Christian Andersen (A menina que pisou no pão)


Era uma vez uma menina pobre, mas de natureza rebelde, que revelou más inclinações desde muito cedo. Quando pequenina, seu maior prazer era apanhar moscas e arrancar-lhes as asas, para vê-las depois andar se arrastando. Apanhava besouros e grilos e espetava-os em um alfinete. Punha depois uma folha de livro, ou qualquer pedaço de papel bem próximo dele, para que pudessem segurá-lo com as patinhas - só pelo prazer de vê-los agitaram-se e torcerem-se, na ânsia de se libertar do alfinete.

- O besouro está lendo - dizia a pequena Inger.  - Vejam como ele vira a página!

E, ao passo que ia crescendo, tornava-se cada vez pior. Era muito bonita, mas foi isso a sua infelicidade, sem dúvida.

- Será preciso um rude golpe para te fazer curvar a cabeça. - dizia a mãe - Quando era menor, muitas vezes pisoteaste meu avental. Receio que quando fores grande me pisoteies o coração!

E assim aconteceu.

Inger teve de ir para o campo, para servir em casa de uma família rica. Tratavam-na como se fosse filha e vestiam-na muito bem. Ia ficando cada vez mais bonita, mas o seu caráter não melhorava.

Um ano depois de estar lá, disseram-lhe os patrões:

- Deves ir visitar teu pais, Inger!

Ela foi, mas apenas com a intenção de se mostrar, para que vissem como andava bem vestida. Ao chegar aos portões da cidade, viu alguns moços e moças que conversavam à beira do lago e, sentada entre eles, sua mãe, com um feixe de lenha ao ombro.

Inger deu volta. Sentiu-se envergonhada de a ter por mãe - ela, tão fina! - Aquela velha esfarrapada, que juntava lenha no mato. Não ficou nem de leve compadecida, ao contrário, sentia-se irritada com aquilo.

Passou-se mais meio ano, e sua ama disse-lhe:

- Inger, é preciso que vás visitar teus pais. Leva-lhes este pão de trigo. Hão de ficar bem contente de te ver.

Inger vestiu suas melhores roupas e calçou os sapatos mais finos que tinha. Ergueu as saias, e caminhava com muito cuidado, para não sujar os sapatos. Certamente não merece censura por isso, mas quando chegou àquele ponto em que o caminho atravessa o brejo, e viu que estava todo cheio de lama, atirou no barro o pão que trazia, para passar por cima dele sem sujar os sapatos. Quando estava assim, com um pé sobre o pão e o outro erguido para dar mais um passo, o pão afundou-se, e foi se enterrando cada vez mais, até que desapareceu, levando-a consigo. E nada mais se viu ali a não ser o charco negro e cheio de bolhas.

Mas e a menina? Que foi feito dela?  Inger foi dar onde estava a mulher do brejo, que tem uma cervejaria lá embaixo. A mulher do brejo é irmã do rei dos Duendes, e tia da Bruxas, que são muito conhecidas. Muita gente tem escrito versos a respeito delas, outros pintaram os seus retratos, mas só o que sabemos a respeito da mulher do brejo é que quando o nevoeiro se ergue nos campos, no verão, é que ela está fabricando sua cerveja.

E foi nessa cervejaria que Inger caiu, mas lá ninguém pode permanecer muito tempo. Um carro de lixeiro é coisa suave, comparada com a cervejaria da mulher do brejo. O cheiro dos barris é o quanto basta para deixar uma pessoa doente, e estão tão juntos que não se pode passar entre eles. Além disso, onde há por acaso alguma frestinha, está cheia de sapos asquerosos e cobras viscosas. E foi entre todas estas horrendas imundícies vivas que caiu a pequena Inger. O frio era tão intenso que ela tremia, e já sentia os membros rígidos. O pão aderiu firmemente aos seus pés, e levou-a para baixo.

A mulher do brejo estava em casa. O velho Trasgo e seu bisavô encontravam-se lá de visita. A bisavó é uma mulher venenosa, e nunca está ociosa. Nunca sai sem levar o seu trabalho, e tinha-o à mão naquele dia. Estava ocupada em fabricar couro andejo para por nos sapatos das pessoas, de modo que quem os usasse não podia ter descanso. Bordava mentiras, e juntava todas as palavras inúteis que caíam no chão, para fazer dano com elas. Sim! A velha bisavó pode fazer tricôs e bordados muito finos!

Assim que avistou Inger pôs os óculos e olhou-a de alto a baixo, dizendo logo:

- Esta menina me interessa! Gostaria de levá-la, como lembrança da minha visita. Daria uma boa estátua para o corredor exterior da casa do meu bisneto.

Desse modo Inger foi à Terra dos Trasgos. Nem sempre as pessoas vão lá por esse caminho direto, visto que é fácil ir por caminhos mais extenso.

Era um corredor que nunca se acabava: dava vertigem olhar para diante ou para trás. Lá estava uma multidão ignominiosa, à espera de que se abrisse a porta da misericórdia, mas muito tinham que esperar! Grandes e gordas aranhas agitavam-se, tecendo teias de mil anos ao redor de seus pés, e aquelas teias pareciam parafusos, que a prendiam fortemente, como se estivessem amarradas com correntes de cobre. Além disso, todas as almas padeciam um eterno desassossego, um tormento perpétuo. O infeliz que tinha esquecido a chave do seu cofre, sabia que a deixara na fechadura. Mas seria um nunca acabar, se eu quisesse enumerar todas as torturas daquele lugar.

Inger sofria o tormento de parar em pé como uma estátua, com um pão colado aos pés.

- Foi o que ganhei, por querer conservar os sapatos limpos! - dizia ela consigo - Vejam como eles olham para mim!

Era verdade que todos olhavam para ela, e todas as suas más paixões lhes brotava, dos olhos, falando sem que os lábios se abrissem em palavras. Era uma visão terrível!

- Deve dar grande prazer olhar para  mim! - pensava Inger - Tenho um rosto lindo e belas roupas.

Voltou então os olhos para se ver. O pescoço também estava rígido. Mas oh! como se sujara na cervejaria da esposa do Brejo! Nunca se lembrara de semelhante coisa... A roupa estava coberta de lama viscosa, uma cobra se enroscara no cabelo e caía-lhe pelas costas. De cada prega do vestido espiava um sapo, coaxando sem parar. Era horrível! Mas sentia consolo, pensando:

- Todo os outros que se encontraram aqui embaixo, estão tão medonhos como eu!

Mas o pior era a fome devoradora que sentia, e não podia abaixar-se para tirar um pedaço do pão que tinha nos pés. Não! Não podia. Mãos e braços haviam endurecido, e todo o seu corpo era como um pilar de pedra. Só podia mover os olhos, mas isso, sim! Podia movê-los em redor e olhar para trás. E que visão medonha era aquela! Vieram as moscas, que lhe andavam por cima dos olhos, e por mais que ela pestanejasse, não iam embora. Não, as moscas não podiam sair, porque ela lhes tinha arrancado as asas, virando-as em insetos rastejantes.

Era um grande suplício da fome que a devorara por dentro; parecia-lhe que já estava completamente vazia.

- Se isto durar muito, eu não poderei suportar - pensou Inger.

Mas aquilo continuou, ela teve de suportar.

Foi então que uma lágrima escaldante lhe caiu sobre a fronte, e foi escorrendo pela face e pelo peito abaixo, até cair sobre o pão, e depois outra, e mais outra, e aquilo já parecia uma chuva.

Mas quem estaria chorando pela pequena Inger? Pois ela não tinha uma mãe na terra? As lágrimas de tristeza que uma mãe chora pelo seu filho sempre o alcançam, contudo, não lhe trazem alívio, elas queimam, e tornam o tormento cinquenta vezes pior. E a fome terrível de novo a assaltou, e ela sem poder apanhar o pão que tinha nos pés! Afinal experimentou uma sensação estranha: parecia-lhe que estava a se comer a si própria, e que já nada mais era senão um caniço oco, que conduz todos os sons. Ouvia distintamente tudo o que se dizia na terra a seu respeito, e tudo o que ouvia eram palavras duras.

Sua mãe, é certo, chorava triste e amargurada, mas dizia:

- O orgulho sempre precede a queda! Foi a tua infelicidade, Inger! Como magoaste tua mãe!

Não só sua mãe, mas todos na terra sabiam o que ela havia feito; sabiam que tinha pisado no pão e que submergira no paul. Souberam pelo pastor, que tinha visto tudo de cima do montículo onde se achava.

- Como afligiste tua mãe, Inger! - dizia a pobre mulher - Mas eu bem te avisei!

- Antes eu nunca tivesse nascido! - pensava Inger - Seria muito melhor para mim. As lágrimas de minha mãe não me servem de nada agora!

Ouviu também seus antigos patrões, pessoas tão boas, que tinham sido para ela o mesmo que pais, falando a seu respeito:

- Era uma menina pecadora. Não dava valor aos dons de Deus, e pisava-os aos pés. Será difícil para ela abrir a porta da misericórdia!

Mas Inger pensava lá embaixo;

- Deviam ter-me educado melhor! Deviam ter dominado a minha soberba, se eu a tinha.

Ouviu também uma canção que escreveram e que era cantada por toda a parte:
                 
                               " Menina tão arrogante.
                                 Que caminhou sobre um pão
                                  Pra não sujar os sapatos!"

- E terei de ouvir sempre esta velha história, e sofrer com isso! - pensava ela. - Mas os outros também deviam ser punidos pelos seus pecados. Haveria muito o que castigar! Oh! Como sofro!

E seu coração se endurecia ainda mais que a casca de fora.

– Ninguém poderá melhorar nada nesta companhia em que estou!  E eu não quero mesmo ficar melhor... Oh! Agora estão todos olhando para mim!

E Inge tinha o coração cheio de ódio e má vontade para com todos.

- Agora terão assunto para conversar lá em cima! Que tortura!

Ouvia as pessoas contarem, sua história às crianças, e estas diziam sempre:

- Malvada Inger! Era tão perversa que teve de sofrer tormentos!

E só ouvia da boca das crianças palavras duras.

Mas um dia, quando sentia o ódio e a fome a lhe roerem a casca vazia, ouviu o seu nome. Alguém contava a sua história a uma criancinha inocente, uma menininha, e a criança rompeu a chorar, ouvindo a história da orgulhosa e vaidosa Inger. E perguntou:

- Ela nunca subirá para a terra outra vez?

- Ela nunca tornará a subir para a terra. - disse a outra voz.

- Mas e se ela pedir perdão e prometer não tornar a fazer isso? - perguntou a criança.

- Ela não pedirá perdão. - disseram-lhe.

- Mas eu queria que ela pedisse! - insistiu a criancinha, que não aceitava explicações. - Eu dou a casa da minha boneca, para ela subir outra vez... É horrível o que aconteceu com a pobre da Inger!

Aquelas palavras chegaram ao coração de Inger, e parece que lhe fizeram bem. Era a primeira vez que alguém dizia: "Pobre da Inger!" Sem acrescentar alguma coisa a respeito das sua más ações. Uma criancinha inocente chorava e orava por ela, e aquilo lhe causava uma sensação estranha: desejaria chorar também, mas seus olhos não podiam derramar uma só lágrima, e isso ainda lhe aumentava o tormento.

Assim como os anos iam passando em cima, foram também correndo lá embaixo, sem que coisa alguma se modificasse: Inger já não ouvia falar tanto de si. Mas um dia percebeu um suspiro.

- Inger, Inger, quanto desgosto me causaste! Eu bem sabia que havia de ser assim!

Era sua mãe que estava moribunda.

Ouviu também o seu nome repetido pelos seus antigos patrões, e as palavras menos cruéis que sua ama disse foram estas:

- Chegarei a ver-te outra vez, Inger? A gente nunca sabe para onde irá!

Mas Inger sabia bem que sua ama, tão boa, tão virtuosa, jamais iria ter ao lugar onde ela estava.

Passou-se novo e longo período cheio de amargura. Inger tornou a ouvir o seu nome, e viu acima da sua cabeça duas coisas que pareciam duas estrelas cintilantes. Eram de fato dois olhos que se fechavam na terra, tantos anos se passaram depois que aquela criança tinha chorado tão sentidamente ao ouvir a história da "pobre Inger", que ela era agora uma anciã, a quem o Senhor chamava para o Seu lado. No último momento, quando a vida inteira da criatura lhe volta à memória, ela se lembrou das lágrimas que derramara por causa de Inger. E a impressão era tão clara na hora da morte, que a velhinha exclamou em voz alta:

- Senhor! Oxalá eu não tenha jamais, como Inger, calçados aos pés, sem o saber, teus dons abençoados. Oxalá também eu não tenha jamais nutrido orgulho no coração. Não me abandones agora na minha última hora!

Fecharam-se os olhos da velha dama, e os olhos de sua alma se abriram para ver as coisa ocultas, e como Inger tinha estado tão nitidamente presente nos seus últimos pensamentos, via agora quão profunda fora a queda da menina. E, àquela vista, desatou a chorar. Ficou, feito uma criança, chorando pela pobre Inger, no reino dos Céus.

Suas lágrimas e suas preces ecoaram na casca oca e vazia que encerrava a alma prisioneira e torturada, agora completamente vencida por todo aquele amor vindo de cima. Um anjo de Deus, chorando por ela! Por que lhe era feita esta concessão?

A alma torturada lembrava-se de cada ação terrena que praticara, e afinal desatou a chorar, e Inger chorou, como jamais fizera. Sentia-se agora cheia de tristeza pelos seus atos, chorou como se a grande porta de misericórdia nunca pudesse abrir-se para ela. Mas quando reconheceu isso em humildade e contrição, um raio de luz brilhou no abismo em que caíra.

O poder daquele raio de luz era muito maior do que o da luz do sol que derrete o homem de neve feito pelos meninos no jardim, e mais depressa, muito mais depressa do que se derrete um floco de neve dos lábios quentes de uma criança, dissolveu-se diante dele a forma petrificada de Inger, e como um passarinho voou com a rapidez do relâmpago para o mundo de cima. Estava muito assustado e tinha medo de tudo. Sentia-se vexado, receava encontrar o olhar de qualquer ser vivente, e procurou mais que depressa abrigar-se em uma fenda da parede.

Naquele esconderijo encolheu-se todo, tremendo da cabeça aos pés, não podia articular som algum, porque não tinha voz. E ali ficou muito tempo, antes que pudesse olhar com calma as coisas admiráveis que o cercavam. Sim, era na verdade admiráveis! O ar era tão suave e tão fresco, a lua brilhava com tanto fulgor, as árvores e arbustos exalavam tanto perfume! E além de tudo isso, já tão agradável, ainda suas penas estava limpas, tão brilhantes! Como toda a criação falava de amor e de beleza! O passarinho bem desejaria cantar alegremente, exprimindo todos os sentimentos que lhe brotavam no peito, entretanto não lhe era possível cantar. Teria gorjeado com a maior alegria, como os cucos e os rouxinóis fazem no verão.

O bom Deus, que ouve até os mudos hinos de louvor de um verme, compreendia também aquele cântico de gratidão que tremia no peito do passarinho, da mesma maneira que os salmos de David ecoavam no seu coração antes que tomassem forma em palavras e melodia. Aqueles pensamentos e aqueles cânticos sem voz foram crescendo e foram aumentando durante semanas. Deviam expandir-se, e à primeira tentava para praticar uma boa ação, achariam a saída.

Era o tempo da Festa de Natal. Os camponeses ergueram um mastro contra um muro e amarraram um feixe de aveia na ponta, para que os passarinhos pudessem ter um bom repasto naquele dia feliz.

O sol surgiu brilhante e iluminou o molho de aveia, e os passarinhos cercaram o mastro, pipilando. Foi então que daquela fresta da parede veio um pio fraquinho. Os sentimentos sempre aumentando do passarinho tinham achado uma voz, e aquele débil pipilar era o seu hino de louvor. Tinha despertado nele o pensamento de uma boa ação, e o passarinho voou, abandonando seu esconderijo. No Reino dos Céus era ele bem conhecido.

O inverno corria áspero, e toda  a água estava coberta por uma camada de gelo. Era com grande dificuldade que as aves e os outros animais encontravam alimento. O passarinho voava à beira da estrada, encontrava de vez em quando um grão de trigo nos sulcos dos trenós. Achava também alguns farelos de pão perto das hospedarias, mas comia apenas uma migalha, pois queria deixar bastante alimento para os outros passarinhos que ali aparecessem. Voou então para as cidades e espiava nas cercanias. Onde quer que alguma mão carinhosa tivesse espalhado migalhas de pão para os passarinhos, ele comia apenas uma só e deixava o restante.

No decorrer do inverno o passarinho tinha assim renunciado, em favor dos outros, tantas migalhas de pão que elas já igualavam em peso aquele pão inteiro que a pequena Inger calçara aos pés, para não sujar os sapatos. Então as asas cinzentas do passarinho ficaram brancas e foram se distendendo, e as crianças que viram aquela ave branca disseram:

- Lá anda uma gaivota, voando sobre o mar.

A ave ora mergulhava nas águas, ora voava e remontava muito alto. E, contra a intensa luz que brilhavam no espaço, não foi possível ver que fim levou.

As crianças afirmaram que ela entrou no sol.

Fonte:
Contos de Andersen.  In Contos da Tita.

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