sábado, 29 de janeiro de 2022

Carolina Ramos (O Horror de uma Queimada!)

Nota do Blog: Este conto foi publicado dia 27, contudo por nossa falha faltou uma explicação da Carolina sobre o conto, especificando que apesar do texto estar no livro dela, o verdadeiro autor é anônimo. Seguem, portanto, o preâmbulo... e o conto novamente.
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MAIS UM DEDO DE PROSA COM O LEITOR:

Há coisas que, uma vez chegadas, se acoplam à nossa mente e não saem nunca mais. No meu caso, a imagem das queimadas é uma delas.

Quando ainda muito jovem, li, com olhos atônitos, num dos meus primeiros livros de leitura, o relato de um grande escritor que descrevia com extremo realismo uma queimada. As tintas que coloriam as imagens eram tão vivas que, de modo indelével, gravaram aquele horror em minha mente para que não mais fosse esquecido.

Foge-me o nome do autor. Aliás, naqueles tempos de leitora iniciante, o nome do autor era o que menos importava. Não sei por que, ao relembrar o fato, acode-me sempre o nome augusto de Monteiro Lobato. Pesquisei e não posso assegurar seja dele o tal texto, do qual guardo apenas a emoção, que resumo em poucas palavras: - a pequena onça, ou, quem sabe, outra fêmea qualquer, fugida às labaredas, novamente as enfrenta e sucumbe, ao tentar salvar a cria.

A partir deste desfecho e com base na triste imagem resguardada por minha memória juvenil, reproduzi, posteriormente, aquela história. E este mesmo texto vi-me tentada a selecionar, agora, para publicá-lo aqui, uma vez que se casa, perfeitamente, com o espírito deste "Canta... Sabiá!", embora a assegurar de antemão que o enredo, hoje burilado, absolutamente, não me pertence. E que esta publicação seja como que uma homenagem ao autor desconhecido, cujo texto mergulhou fundo em minha alma adolescente permanecendo em mim até hoje.

Portanto, repito, conto, aqui, o que já foi contado e naturalmente melhor do que o faço agora, uma vez que a intensa emoção despertada acompanhou-me desde sempre, possibilitando que a guardasse viva em minha memória, a ponto de me permitir recompô-la e repassá-la aos netos e bisnetos que a vida me daria.

Precedido por esta ressalva e, em homenagem ao verdadeiro autor, aqui vai "o horror de uma queimada", eco longevo de um protesto contido desde criança, em repúdio à incúria humana.

O HORROR DE UMA QUEIMADA

Queimando em silente chama,
a floresta, em triste sina,
caindo ao chão, ainda clama
pela vida… que termina…!
Mara Melinni
(Caicó/RN)


Línguas do morro estalavam de gozo ao lamber gulosas a encosta do morro. A subir sempre, deixavam para trás o estigma desolador da calcinada e negra mortalha do nada, a identificar o terror de uma queimada!

Ante a tórrida investida, a própria atmosfera reverberava de medo enquanto as árvores do bosque vizinho estremeciam de horror, na cruel expectativa de serem as próximas vítimas.

Já o dia avançara em horas quando a mão irresponsável, ou mais que isso, criminosa, ateara a primeira fagulha.

A imprudência de uma ponta de cigarro atirada da estrada fora o bastante.

- A chama bruxuleante aprumara-se como vela a arder, silenciosa, num prenúncio de
velório a curto prazo.

Fera encurralada a pressentir perigo, a natureza eriçava-se num brado de alerta enquanto pássaros assustados flechavam o espaço em ruidosa fuga! A algazarra das cigarras calara-se. Por todo lado, prevalecia a angustiante sensação de catástrofe iminente.

Mercê da prolongada estiagem, nada mais a relva seca poderia fazer do que responder ao estímulo daquela brasa de cigarro e ardia ligeira como rastilho de pólvora, logo a alcançar tufos de capim mais volumosos - por sua vez a estenderem o desastre à aba da floresta.

Resinas múltiplas em combustão embalsamavam a atmosfera. E um aroma indefinido resguardava, no fundo, o terrível cheiro de morte!

Ligeira, a jaguatirica ultrapassou em pânico a barreira incandescente, atirando-se, em desespero, para fora da mata esbraseada. Só, então, parou ofegante, olhos esgazeados, presos ao fogaréu, como que imantados pelo inferno do qual por instinto haviam, milagrosamente, escapado! No pelo chamuscado, as marcas do horror vencido.

Trêmula, a oncinha permaneceu imóvel por mais alguns instantes, eletrizada pelo terror que deixava transparecer a luta íntima em que se debatia! Decidiu-se, por fim. E, num impulso suicida, arremeteu de volta, invadindo a cortina rubra que cercava a floresta incendiada!

Cada instante ganhava proporções gigantescas!

Quando a pequenina onça, personagem heroica deste drama, deixou o trágico picadeiro, trazia nos dentes o corpo desfalecido da cria, sofrida e indefesa. Longe do perigo e com a insuperável esperança das mães, a fragilizada fêmea depositou na relva sã a cria inerte, a tentar reanimá-la com todos os recursos ditados pelo instinto materno. Num esforço desesperado, lambia sôfrega as pequeninas patas crestadas, penteando com a língua macia o pelo fumegante do filhote.

Prosseguiu, sem interrupção, até que as forças lhe fugiram... tombando, enfim, inerte, junto ao filho morto.

A queimada, com fúria assassina, prolongava feroz a sua obra devastadora, enquanto no
rol dos desmandos humanos mais duas inocentes vítimas eram somadas.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.
- Trova de Mara Melinni inserida no texto, por José Feldman.

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