A formiga entrou no cinema porque achou a porta aberta e ninguém lhe pediu bilhete de entrada. Até aí, nada de mais, porque não é costume exigir bilhete de entrada a formigas. Elas gozam de certos privilégios, sem abusar deles.
O filme estava no meio. A formiga pensou em solicitar ao gerente que fosse interrompida a projeção para recomeçar do princípio, já que ela não estava entendendo nada; o filme era triste, e os anúncios falavam de comédia. Desistiu da ideia; talvez o cômico estivesse nisso mesmo.
A jovem sentada à sua esquerda fazia ruído ao comer pipoca, mas era uma boa alma e ofereceu pipoca à formiga. — Obrigada — respondeu ela —, estou de luto recente. — Compreendo — disse a moça —, ultimamente há muitas razões para não comer pipoca.
A formiga não estava disposta a conversar, e mudou de poltrona. Antes não o fizesse. Ficou ao lado de um senhor que coleciona formigas, e que sentiu, pelo cheiro, a raridade de sua espécie. Você será a 7001a da minha coleção, disse ele, esfregando as mãos de contente. E abrindo uma caixinha de rapé, colocou dentro a formiga, fechou a caixinha e saiu do cinema.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
ONDE NINGUÉM ENTRA
Na casa do rei, que é um palácio de corindo e pórfiro vermelho antigo, não posso entrar, mas nos jardins do rei, abertos à visitação pública, eu e meus amigos e os amigos de meus amigos temos direito de passear e até de fazer piquenique.
Vivemos de olhos cravados nas janelas da casa do rei, pois há expectativa de ele assomar e saudar-nos ou fazer um gesto qualquer. Até agora isto não aconteceu. Começamos a suspeitar que o rei não mora, nunca morou em sua casa.
Então onde mora o rei, e se não mora ali, por que não nos franqueiam a entrada da casa? O guarda explicou-nos que seria contra o protocolo, e não pode haver rei sem protocolo. E que não fazia mal o rei, por hipótese, não morar ali ou mesmo em nenhum lugar, pois o rei não é propriamente uma pessoa, mas uma instituição, ao passo que nós, seus súditos, somos pessoas físicas e em geral não nos comportamos bem nos paços.
Um dia destes alguém, desconhecido de nós todos, tentou forçar a entrada na casa do rei e foi dissuadido com bons modos. Como insistisse, removeram-no à força. Meu filho de oito anos, que assistiu à cena, perguntou: “Quem sabe se era o rei que queria entrar?”.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
O PERGUNTAR E O RESPONDER
O espelho recusou-se a responder a Lavínia que ela é a mais bela mulher do Brasil. Aliás, não respondeu nada. Era um espelho muito silencioso. Lavínia retirou-o da parede e colocou outro, que emitia sons ininteligíveis, e foi também substituído.
O terceiro espelho já fazia uso moderado da palavra, porém não dizia coisa com coisa.
Um quarto espelho chegou a pronunciar nitidamente esta frase:
“Vou pensar”. Ficou pensando a semana inteira, sem chegar à conclusão.
Lavínia apelou para um quinto espelho, e este, antes que a vaidosa senhora fizesse a interrogação aflita, perguntou-lhe:
— Mulher, haverá no Brasil espelho mais belo do que eu?
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Nenhum comentário:
Postar um comentário