terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Lima Barreto (Quase doutor)

A nossa instrução pública cada vez que é reformada, reserva para o observador surpresas admiráveis. Não há oito dias, fui apresentado a um moço, aí dos seus vinte e poucos anos, bem posto em roupas, anéis, gravatas, bengalas, etc. O meu amigo Seráfico Falcote, estudante, disse-me o amigo comum que nos pôs em relações mútuas.

O Senhor Falcote logo nos convidou a tomar qualquer coisa e fomos os três a uma confeitaria. Ao sentar-se, assim falou o anfitrião:

- Caxero traz aí quarqué cosa de bebê e comê.

Pensei de mim para mim: esse moço foi criado na roça, por isso adquiriu esse modo feio de falar. Vieram as bebidas e ele disse ao nosso amigo:

- Não sabe Cunugunde: o véio tá i.

O nosso amigo comum respondeu:

- Deves então andar bem de dinheiros.

- Quá ele tá i nós não arranja nada. Quando escrevo é aquela certeza. De boca, não se cava... O véio óia, óia e dá o fora.

Continuamos a beber e a comer alguns camarões e empadas. A conversa veio a cair sobre a guerra europeia. O estudante era alemão dos quatro costados.

- Alamão, disse ele, vai vencer por uma força. Tão aqui, tão em Londres.

-Qual!

- Pois óie: eles toma Paris, atravessa o Sena e é um dia inguelês.

Fiquei surpreendido com tão furioso tipo de estudante. Ele olhou a garrafa de vermouth e observou:

- Francês tem muita parte...- Escreve de um jeito e fala de outro.

- Como?

- Óie aqui: não está vermouth, como é que se diz "vermute"? Pra que tanta parte?

Continuei estuporado e o meu amigo, ou antes, o nosso amigo parecia não ter qualquer surpresa com tão famigerado estudante.

- Sabe, disse este, quase fui com o dotô Lauro.

- Por que não foi? perguntei.

- Não posso andá por terra.

- Tem medo?

- Não. Mas óie que ele vai por Mato Grosso e não gosto de andá pelo mato.

Esse estudante era a coisa mais preciosa que tinha encontrado na minha vida. Como era ilustrado! Como falava bem! Que magnífico deputado não iria dar? Um figurão para o partido da Rapadura.

O nosso amigo indagou dele em certo momento:

- Quando te formas?

- No ano que vem.

Caí das nuvens. Este homem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tão firmes conhecimentos!

O nosso amigo indagou ainda:

- Tens tido boas notas?

- Tudo. Espero tirá a medáia.

Fonte:
Lima Barreto. Crônicas. Publicado no “Careta”,  em 1915.

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