sábado, 22 de janeiro de 2022

Murilo Rubião (D. José não era)


"Vinde todos, ajuntai-vos,
povos indignos de ser amados."
(Sofonias, II, 1)


Uma explosão violenta sacudiu a cidade. Seguiram-se outras - menores e maiores. Desnorteado, o povo corria de um lado para o outro. Alguém que se conservara calmo no meio de tanta desordem gritou:

-  Não é o fim do mundo!

Eliminada a pior hipótese, surgiram novas conjeturas:

-  Para um bombardeio, faltavam os aviões.

-  Exercícios de artilharia?

-  Muito provável! - apoiaram alguns, apressados em explicar o mistério.

-  E os canhões? - indagaram os mais lúcidos.

Houve quem falasse de uma invasão misteriosa, para em seguida concordarem todos: D. José estava matando a esposa a dinamite.

Os populares hesitaram em aproximar-se do prédio. Após curto silêncio, vários estampidos foram ouvidos. Um vagabundo, que ainda não se emocionara com os acontecimentos, comentou:

-  Será que a dinamite foi insuficiente e ele recorreu ao revólver? Tornaram-se pálidos os rostos e, ansiosos, aguardaram o final do drama.

1  - Tragédia?

Não. D. José estava experimentando fogos de artifício.

Ninguém quis confessar o desapontamento nem o gasto inútil de imaginação que, naquela meia hora de terror, fora exagerado nos espectadores.

- Não a matou desta vez, mas ela não escapará de outra. Seu ódio por D. Sofia é incontrolável.

2 - D. José odiava alguém?

Calúnia! Amava a mulher, os pássaros e as árvores. Ela, sim, detestava-o, irritava-se com os animais.

Infelicidade conjugal?

Nunca! Os esposos combinavam admiravelmente bem.

Mas, entre os habitantes do lugar, não havia quem acreditasse nisso:

- Ela finge amá-lo somente pelo seu dinheiro. Estúpidos! D. José era o homem mais pobre da cidade e tinha uma úlcera no estômago.

3 - A mais leve contestação, contrapunham-se novas acusações:

-  E os meninos, que choram noite adentro, famintos, espancados?

Falso! D. José perdera os filhos (cinco), vítimas da tuberculose. Agora recordava-se deles manipulando um aparelho que imitava o pranto infantil. E comovia muito mais que qualquer choro de criança.

4 - D. José falava sempre de um livro que estava escrevendo. Um livro sobre duendes.

Era um fabulista?

Não. Os duendes habitavam a sua própria casa, ao alcance de seus olhos.

Seria a mulher um deles?

5 - Um dia encontraram-no enforcado. Disseram imediatamente:

- É só fingimento. O nó está pouco apertado.

- Vejam que cara matreira! Está zombando de nós. Infâmia! D. José suicidara-se mesmo.

Por quê?

Todo o mundo fingiu não saber.

6 - Aos que lhe tomaram a defesa, anos após a sua morte, perguntavam:

-  Afinal, o que fazia esse D. José? Se não fumava, não bebia, não tinha amantes?

- Amava o povo.

- E o povo?

- Observava-o com ferocidade.

7 - Mais tarde erigiram-lhe uma estátua. Com um dístico: "D. José, nobre espanhol e benfeitor da cidade".

Derradeira mentira. D. José era um pobre-diabo e não possuía nenhum título de nobreza. Chamava-se Danilo José Rodrigues.

Fonte:
Murilo Rubião. Contos reunidos. Publicado em 1953.

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