domingo, 2 de janeiro de 2022

Jaqueline Machado (As veredas do grande sertão)

“Só se pode viver perto de outro e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Diadorim, meu amor! Como posso explicar o poder do amor que eu criei, minha vida o diga: Diadorim tomou conta de mim. E, eu o abracei com as asas de todos os pássaros.”

Com esse belíssimo trecho do célebre livro “Grande Sertão: Veredas”, de 1956, do escritor mineiro João Guimarães Rosa, dou início a um breve desabafo, o qual retiro agora de minhas entranhas, para falar desta obra.

Grande Sertão não foi escrito para ser apenas lido, mas sentido ... Caso contrário, quase nada será compreendido.

Não tive tantas dificuldades em me familiarizar com a sua mensagem, já que se trata de assuntos comuns à minha pessoa. Quem me conhece sabe o quanto me dedico a tentar desvendar as questões sobre o Bem e o Mal que circundam o nosso mundo externo e interior.

“- Nonada”, com essa palavra, que equivale a algo como: “: Que nada” ou “Nada disso” que dá início à narrativa do protagonista, um senhor de idade avançada, que literalmente do nada, passa a contar suas aventuras a um forasteiro, começo o meu relato sobre o livro:

Aos 14 anos, Riobaldo ficou doente e sua mãe fez promessas para o filho ficar bom. Quando o menino voltou a se sentir saudável, foi avisado por sua mãezinha de que precisaria ficar no Porto do Rio de Janeiro, esmolando. Um pouco do dinheiro que conseguisse, seria para pagar uma missa, e a outra parte que sobrasse deveria ser colocada numa cabaça para descer o rio São Francisco abaixo até chegar a um santuário.

No decorrer da missão, ele avista um jovem de expressão suave e olhos verdes, sentado debaixo de uma árvore, pitando um cigarro. Os dois ficam amigos. O menino de expressão doce, compra queijo e rapadura e o convida a um passeio pelo rio. Em certo momento, Riobaldo começa a temer as fortes correntezas. É quando o amigo diz: “Tem que atravessar. “É preciso ter coragem”. Durante o trajeto, essa frase é repetida três vezes como se fosse uma prece ou um mantra de proteção.

Ao completarem a travessia, sentam em um matagal cheio de bambuzais e, ali comem o queijo e a rapadura, aspirando uma certa solenidade divina. Aquela refeição nos remete a uma espécie de festim sagrado, que celebra a “travessia da vida”.

Riobaldo queria cruzar o caminho por uma margem mais simples, mas o novo amigo o fez entender que é preciso exercitar a coragem para estar preparado, pois quando a vida inventa de exigir que se faça um sacrifício, não costuma amenizar o problema.

Os rios possuem três margens: a da embarcação, a da chegada e a do fundo que estrutura as águas. Assim é com nossas vidas, entre o nascimento e a morte: há o meio. O transcorrer de nossas vontades. E o cumprimento, em si, da missão que nascemos para cumprir.

No entanto, por falta de coragem, nós, em sua maioria, nascemos, crescemos, procriamos e morremos sem passar pelas grandes aventuras ou pelos grandes sertões, veredas da vida. Isso acontece, porque fazer escolhas e superar os medos é difícil. É como diz outra frase famosa do livro: “Viver é muito perigoso”...

O protagonista da história bem sabia de tudo isso. Cresceu, virou jagunço, viu coisa que até o “demo” duvida. Ele próprio já fizera coisas erradas e até um pacto com o “coisa ruim”, que na verdade, ninguém sabe ao certo se foi efetuado ou não. E hoje, envelhecido, vive a filosofar sobre a existência.

Na busca pela compreensão da vida, observa a natureza e se utiliza de todas as religiões. Eis aí, vestígios de culpa... O velho protagonista sempre foi homem matuto, mas o tempo a sobrar em sua velhice lhe despertou imensa curiosidade e profunda sabedoria.

Sobre as existências ele diz:

“Se o diabo existe? Se existe é nos crespos do homem (no interior). Pois, como pode o homem ser bom e ao mesmo tempo capaz das maiores atrocidades?...

Ainda refletindo sobre o que existe ou não existe. Cachoeira, é um barranco de chão e água caindo, por ele retumbando. Consumindo a água ou desfazendo o barranco, sobra cachoeira alguma. Então, a cachoeira existe ou não existe? “Viver é um negócio muito perigoso”,


Continua ele no transcorrer dos assuntos: “Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é muito provisório. Eu queria rezar o tempo todo”.

E para encerrar, a frase na qual reconheci a mim mesma e que me fez chorar ... “Por toda minha vida pensei por mim. Forro! Sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo. Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa”...

Nesse diálogo de infinitas sapiências, pude apenas escolher alguns trechos para dizer: João Guimarães Rosa, ao sentar para escrever este livro, tinha como missão despertar nossas almas para sermos o que realmente somos. Sem temores...Não fazendo como o próprio Riobaldo, que apesar de se considerar forro, passou a vida relutando contra o amor que sentia pelo amigo, também jagunço, que futuramente veio a se chamar Diadorim.

Há, mas Diadorim era mulher vestida de homem... No entanto, apenas sua alma sabia disso. Por temer a travessia, só pode abraçá-la com as asas de todos os pássaros quando os olhos de seu amor haviam se fechado para a vida. E o seu tempo para amar havia se encerrado.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

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