domingo, 2 de janeiro de 2022

Murilo Rubião (A noiva da casa azul)


"A figueira começou a dar os seus primeiros figos; as vinhas, em flor, exalam o seu perfume. Levanta-te, amiga minha, formosa minha, e vem."
(Cântico dos Cânticos, II, 13)


Não foi a dúvida e sim a raiva que me levou a embarcar no mesmo dia com destino a Juparassu, para onde deveria ter seguido minha namorada, segundo a carta que recebi.

Sim, a raiva. Uma raiva incontrolável, que se extravasava ao menor movimento dos outros viajantes, tornando-me grosseiro, a ponto dos meus vizinhos de banco sentirem-se incomodados, sem saber se estavam diante de um neurastênico ou débil mental.

A culpa era de Dalila. Que necessidade tinha de me escrever que na véspera de partir do Rio dançara algumas vezes com o ex-noivo? Se ele aparecera por acaso na festa, e se fora por simples questão de cortesia que ela não o repelira, por que mencionar o fato?

Não me considero ciumento, mas aquela carta bulia com os meus nervos. Fazia com que, a todo instante, eu cerrasse os dentes ou soltasse uma praga.

Acalmei-me um pouco ao verificar, pela repentina mudança da paisagem, que dentro de meia hora terminaria a viagem e Juparassu surgiria no cimo da serra, mostrando a estaçãozinha amarela. As casas de campo só muito depois, quando já tivesse desembarcado e percorrido uns dois quilômetros a cavalo. A primeira seria a minha, com as paredes caiadas de branco, as janelas ovais.

Deixei que a ternura me envolvesse e a imaginação fosse encontrar, bem antes dos olhos, aqueles sítios que representavam a melhor parte da minha adolescência.

Sem que eu percebesse, desaparecera todo o rancor que nutrira por Dalila no decorrer da viagem. Nem mesmo a impaciência de chegar me perturbava. Esquecido das prevenções anteriores, aguardava o momento em que eu apertaria nos braços a namorada. Cerrei as pálpebras para fruir intensamente a vontade de beijá-la, abraçá-la. Nada falaria da suspeita, da minha raiva. Apenas diria:

- Vim de surpresa para ficarmos noivos.

O chefe do trem arrancou-me bruscamente do meu devaneio:

- O senhor pretende mesmo desembarcar em Juparassu?

- Claro. Onde queria que eu desembarcasse?

- É muito estranho que alguém procure esse lugar.

Não sabendo a que atribuir a impertinência e a estranheza do funcionário da estrada, resmunguei um palavrão, que o deixou confuso, a pedir desculpas pela sua involuntária curiosidade.

Juparassu! Juparassu surgia agora ante os meus olhos, no alto da serra. Mais quinze minutos e estaria na plataforma da estação, aguardando condução para casa, onde mal jogaria a bagagem e iria ao encontro de Dalila.

Sim, ao encontro de Dalila. De Dalila que, em menina, tinha o rosto sardento e era uma garota implicante, rusguenta. Não a tolerava e os nossos pais se odiavam. Questões de divisas dos terrenos e pequenos casos de animais que rompiam tapumes, para que maior fosse o ódio dos dois vizinhos.

Mas, no verão passado, por ocasião da morte de meu pai, os moradores da Casa Azul, assim como os ingleses das duas casas de campo restantes, foram levar-me suas condolências, e tive dupla surpresa: Dalila perdera as sardas, e seus pais, ao contrário do que pensava, eram ótimas pessoas.

Trocamos visitas e, uma noite, beijei Dalila.

Nunca Juparassu apareceu tão linda e nunca as suas serras foram tão azuis.

Logo que desci na estaçãozinha solícito, o agente tomou-me as malas:

- O senhor é o engenheiro encarregado de estudar a reforma da linha, não? Por que não avisou com antecedência? Arrumaríamos o nosso melhor quarto.

- Ora, meu amigo, não sou engenheiro, nem pretendo ver obra alguma.

- Então, o que veio fazer aqui?

Refreei uma resposta malcriada, que a insolente pergunta merecia, notando ser sincero o assombro do empregado da estrada.

- Tenciono passar as férias em minha casa de campo.

- Não sei como poderá.

- É coisa tão fantástica passar o verão em Juparassu? Ou, quem sabe, andam por aqui temíveis pistoleiros?

- Pistoleiros não há, mas acontece que as casas de campo estão em ruínas.

Tive um momento de hesitação. Estaria falando com um cretino ou fora escolhido para vítima de desagradável brincadeira? O homem, entretanto, falava sério, parecia uma pessoa normal. Achei melhor não insistir no assunto:

- Quem me alugaria um cavalo, para dar umas voltas pelas vizinhanças?

A resposta me desconcertou: não existiam cavalos no lugar.

- E para que cavalos, se nada há de interesse para ver nos arredores?

Procurei tranquilizar o meu interlocutor, pois pressentia estar sob suspeita de loucura. Menti-lhe, dizendo que há muitos anos não vinha àquelas paragens. O meu objetivo era apenas de rever lugares por onde passara em data bem remota.

O agente sentiu-se aliviado:

- O senhor me assustou. Pensei que conversava com um paranóico. - E, amável, se prontificou a me acompanhar no passeio. Recusei o oferecimento. Necessitava da solidão a fim de refazer-me do impacto sofrido por acontecimentos tão desnorteantes.

Não caminhara mais de vinte minutos, quando estaquei aturdido: da minha casa restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado caído, o mato invadindo tudo.

Apesar das coisas me aparecerem com extrema nitidez, espelhando uma realidade impossível de ser negada, resistia à sua aceitação. Rodeei a propriedade e encontrei, nos fundos, um colono cuidando de uma pequena roça. Aproximei-me dele e indaguei se residia ali há muito tempo.

- Desde menino - respondeu, levantando a cabeça.

- Certamente conheceu esta casa antes dela se desintegrar. O que houve? Foi um tremor de terra? - insisti, à espera de uma palavra salvadora que desfizesse o pesadelo.

- Nada disso aconteceu. Sei da história toda, contada por meu pai.

A seguir, relatou que a decadência da região se iniciara com uma epidemia de febre amarela, a se repetir por alguns anos, razão pela qual ninguém mais se interessou pelo lugar. Os moradores das casas de campo sobreviventes nunca mais voltaram, nem conseguiram vender as propriedades. Acrescentou ainda que o rapaz daquela casa fora levado para Minas com a saúde precária e ignorava se resistira à doença.

- E Dalila? - perguntei ansioso.

Disse que não conhecera nenhuma pessoa com esse nome e foi preciso explicar-lhe que se tratava da moça da Casa Azul.

- Ah! A noiva do moço desta casa?

- Não era minha noiva. Apenas namorada.

-  Não? Será que... - deixou a frase incompleta: - É o senhor, o jovem que morava aqui?

Para evitar novas perguntas, preferi negar, insistindo na pergunta anterior:

- E Dalila?

- Morreu.

Fiquei siderado ao ver ruir a tênue esperança que ainda alimentava. Sem me despedir, retomei a caminhada. Os passos trôpegos, divisando confusamente a vegetação na orla da estreita picada, subi até uma pequena colina. Do alto da elevação, avistei as ruínas da Casa Azul. Avistei-as sem assombro, sem emoção. Cessara toda a minha capacidade emocional. Os meus passos se tornaram firmes novamente, e de lá de dentro dos escombros eu iria retirar a minha amada.

Descolorida e quieta a Casa Azul está na minha frente. Caminho por entre os seus destroços. A escadinha de tijolos semidestruída. Aqui nos beijamos. Beijamo-nos no alpendre, cheio de trepadeiras, cadeiras de balanço, onde, por longas horas, ficávamos assentados. Depois do alpendre esburacado, o corredor. Dalila me veio fortemente. Subo a custo os degraus apodrecidos da escada de madeira. Chego ao quarto dela: teias de aranha. Vazio, vazio, meu Deus! Grito: Dalila, Dalila! Nada. Corro aos outros quartos. Todos vazios. Só teias de aranha, as janelas saindo das paredes, o assoalho apodrecendo.

Desço. Grito mais: Dalila, Dalila! Grito desesperado: Dalila, minha querida! O silêncio, um silêncio brutal responde ao meu apelo. Volto ao quarto dela: parece que Dalila está lá e não a vejo. O seu corpo miúdo, os olhos meigos, os cabelos dourados. Abraça-me e não sinto os seus braços.

A noite já estava aparecendo por entre o teto fendido. Grito ainda: Dalila, Dalila, meu amor! Corta-me a agonia. Corro desvairado.

Fonte:
Murilo Rubião. Contos reunidos. Conto publicado originalmente em 1947.

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