sábado, 8 de janeiro de 2022

Minha Estante de Livros (“Viagens na minha terra”, de Almeida Garret)


A obra foi publicada originalmente em folhetins na Revista Universal Lisbonense entre 1845 e 1846, sendo editada em livro apenas em 1846. Tida como obra única no Romantismo português por sua estrutura e linguagem inovadoras, Viagens na minha terra é um marco para a moderna prosa portuguesa e um importante documento de referência para entender a decadência do império português.

Foco narrativo

A obra é narrada em primeira pessoa e o narrador é o que conhecemos por “narrador-protagonista”. Ou seja, a história é contada por um dos personagens principais (no caso, o autor-narrador que viaja pelo país) em primeira pessoa. Dessa forma, a história tem um ponto de vista fixo, centrado nessa personagem. Além disso, esse narrador-protagonista está quase inteiramente confinado a seus pensamentos, sentimentos e percepções.

O que sabemos a respeito das outras personagens (incluindo seus pensamentos e sentimentos), ou nos é passado através dela mesma, ou através de outra personagem que conta algo ao narrador (em Viagens temos Frei Dinis contando o drama de Carlos e Joaninha). Essas informações podem ser, ainda, inferências feitas pelo narrador-protagonista.

A viagem como busca do autoconhecimento

O tema das viagens sempre foi parte integrante da literatura portuguesa, desde o século XIV quando os navegadores portugueses registravam suas histórias de navegação. Eles produziam uma literatura que não ficava restrita aos acontecimentos da viagem, mas que continha também os motivos que os levavam a se deslocar de um local a outro e as descrições em forma narrativa sobre as terras e os homens que encontravam. Assim, pode-se dizer, que a literatura de viagem não fica restrita ao desejo de conquistar novos territórios, mas, através do contato com outros povos e culturas, pensar de uma nova maneira o seu próprio eu.

Almeida Garrett faz parte dessa tradição literária ao escrever Viagens na minha terra. Nessa novela, a viagem não serve apenas para entrelaçar os fatos ali tratados, mas serve em si como elemento temático fundamental. A viagem como tema da obra está assinalada desde o primeiro capítulo, onde o autor-narrador deixa claro que vai “nada menos que a Santarém”, tornando sua novela uma crônica-ensaio. Através da viagem pelo interior do próprio país do autor-narrador, busca-se a fonte do que é ser português em um momento de drásticas mudanças no país.

O pano de fundo em Viagens na minha terra é a Revolução Liberal. Grosso modo, as ideias liberais surgiram como oposição ao monarquismo, ao mercantilismo e ao domínio religioso. Portugal, na época um país monarquista com fortes raízes católicas, via qualquer ideia liberalista como antinacional.

O país já estava enfrentando diversas crises (as invasões de Napoleão e crise do colonialismo no Brasil) e o embate entre Miguelistas (favoráveis ao monarquismo absolutista de então) e Liberais acabou por gerar uma guerra civil, em 1830. O embate terminou com uma vitória dos Liberais e a restauração da monarquia constitucional.

Almeida Garrett, que sempre lutou pelos ideais liberais, mantém nas Viagens este propósito, através da narração de fatos do presente e do passado, sempre denegrindo àquele em favor do outro. Para tanto, brinca-se também com a questão do verossímil, criando-se a ilusão do verdadeiro através do uso de um tom calculadamente coloquial e uma aproximação com o quotidiano.

Dessa forma, as digressões do narrador sobre os mais diversos temas, da literatura à política, servem para demarcar ideologicamente a obra. O discurso do autor-narrador revela o caótico estado em que se encontra Portugal, a corrupção da sociedade, a aristocracia decadente e o modelo familiar burguês corrompido por atitudes individualistas. Assim, pode-se dizer que para o narrador a crise moral coletiva tem origem na moral individual.

A personagem protagonista Carlos, aparece como símbolo deste embate entre tradição (monarquismo) e modernidade (ideias liberais). Carlos não consegue se decidir entre Joaninha (que representa o velho Portugal) e Georgina (representante do novo Portugal). Por fim, o protagonista acaba por desistir de ambas, perdendo sua identidade e sua moral. Carlos termina como uma representação de uma sociedade alienada e degradante.

Assim, a preocupação de Garrett em Viagens na minha terra é tentar despertar na nação portuguesa a consciência da situação em que o país se encontrava e que direção pode ser tomada para tentar mudar o rumo decadente que Portugal estava tomando. Porém, o próprio autor-narrador não vê perspectivas de melhora, pois a imagem que o homem português tem de si mesmo não é positiva. Dessa forma, apesar de conseguir enxergar um caminho para a recuperação de Portugal, Garrett termina a obra com um tom pessimista.

Comentário

Para o professor Marcílio Lopes Couto, do Colégio Anglo, deve-se antes de tudo ficar atento ao próprio estilo da obra. Apesar de ser um livro pertencente ao Romantismo, ele foge um pouco aos padrões dessa escola literária e já anuncia algumas características do Realismo. Além disso, é importante comparar a obra com outras, como, por exemplo, identificar que aspectos ligam “Viagens na minha terra” a outras obras românticas que são pedidas no vestibular (Memórias de um Sargento de Milícias e Til) e que aspectos a ligam a, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O professor destaca também, que o título da obra de Garrett em si já é importante para compreender o texto. Já que o livro trata de apenas uma viagem que vai de Lisboa a Santarém, por que o autor coloca viagem no plural? Estas “viagens” fazem referência a uma série de reflexões políticas, históricas, filosóficas e existenciais que o autor-narrador trabalha no texto. Assim, estas “viagens” não tratam apenas de um deslocamento físico, mas também de um “deslocamento psicológico”.
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Almeida Garrett nasceu na cidade do Porto, Portugal, em 1799, com o nome de batismo de João Leitão da Silva. Durante sua época de estudante de Direito, em Coimbra, passou a adotar o nome que o tornaria célebre: Almeida Garrett. Participou da revolução liberal e ficou exilado na Inglaterra em 1823. Durante esse tempo, casou-se e teve contato com o movimento romântico inglês. Em 1824 mudou-se para França e escreveu Camões e Dona Branca, obras que inauguraram o romantismo português. Ávido defensor do liberalismo, Almeida enfrentou outros diversos exílios ao longo dos anos.

Após retornar definitivamente a Portugal, passa a incentivar a literatura e o teatro, escrevendo inúmeros livros e peças teatrais. É dele, por exemplo, a iniciativa de criar o Conservatório de Arte Dramática e o Teatro Normal (atualmente Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa). Faleceu em Lisboa no dia 9 de dezembro de 1854.

Suas principais obras são: “Camões” (1825), “Dona Branca” (1826), “Romanceiro” (1843), “Cancioneiro Geral” (1843), “Frei Luis de Sousa” (1844), “D’o Arco de Santana” (1845) e “Viagens na minha terra” (1846).


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