O meu jardineiro era um homem de feio aspecto, todo coberto de pelos eriçados, vermelhaço de pele e de olhar desconfiado e sombrio.
Toda a gente me dizia:
– Olha que aquele sujeito compromete a tua casa! Põe-no fora!
Mas, como ele era calado, metido consigo, e porque, principalmente, tratava muito bem das minhas flores, eu levantava os ombros:
– Não era tanto assim! O pobre homem! Aqueles modos de animal bravio, não os tinha decerto por culpa sua!
E assim íamos vivendo.
Uma tarde, em setembro, desci ao jardim. Que crepúsculo aquele! No céu, esgarçado de nuvens, a lua, em foice, brilhava já, e com tamanha doçura, que dava vontade na gente de não fazer outra coisa senão olhar para ela! Havia também no ar, transparente e calmo, tal delicadeza de colorido, que a minha alma ficaria nela estática, se os olhos, percorrendo tudo, não vissem logo a infinidade de rosas, que as minhas roseiras prometiam.
– Quantos botões, Mãe do Céu!
– Tudo isto abre esta noite. – resmungou com voz soturna o jardineiro... – Amanhã haverá centenas de rosas no jardim!
A minha fantasia desencadeou-se. Centenas de rosas frescas, todas abertas, deveriam dar uma graça nova àquele recanto, pouco acostumado a semelhante fartura de flores.
Eu mesma iria querer colhê-las ainda frescas de orvalho: mandaria um ramalhete a minha mãe, cobriria de rosas a sepultura de minha filha, encheria de rosas a minha casa...
E, usando de uma forma imperativa e severa, pouco comum em mim, disse ao medonho e hirsuto jardineiro que não tocasse nenhuma flor! Seria eu quem as colhesse todas!
Ele curvou-se, em obediência.
Nessa noite, fui cedo para a cama, preparando-me para madrugar no dia seguinte. E tal era o meu propósito, que peguei logo num sono doce e tranquilo.
Eram seis horas e já eu estava no jardim. Como quem desperta de um sonho, apatetada, olhei à roda e só vi folhas... folhas e mais folhas verdes! Nem uma flor!
Gritei pelo jardineiro, e ele veio, como por encanto, num momento, mas com tal jeito e tão demudadas feições, que tive medo.
Os olhos, de vermelhos, eram só sangue; a barba áspera, longa e ruiva estava revolvida como por um vento de loucura, e nos grossos braços tisnados tinha sinais fundos de unhadas...
– As minhas rosas?! – perguntei-lhe, disfarçando o pavor que a sua figura estranha me infundia.
– Estão aqui! – disse ele, com voz grossa, como um baixo de órgão de catedral; e caminhou para o quarto.
Fui atrás dele, espantadíssima, mal segurando a saia do vestido, que se não molhasse na relva – cheia de raiva e curiosa ao mesmo tempo.
O quarto do jardineiro era ao fundo, entre a horta e o jardim, ao pé de dois limoeiros da Pérsia, de gostoso cheiro. Ensombrando a porta, havia uma latada de maracujás e, à esquina, encostados à parede, estavam os utensílios de jardinagem.
– Que irá querer ele? – perguntava a mim mesma. De repente, estaquei:
– Não entro! – respondi, a um gesto que me fazia.
– Então, olhe daí! – replicou o homem bruscamente, escancarando a porta.
Encostei-me ao umbral para não cair. No meio do quarto, sob uma avalanche de rosas perfumadíssimas, entrevi o corpo de uma mulher.
– Era minha filha – disse o jardineiro, entre soluços que mais se assemelhavam a uivos que a dor humana; – Um dia abandonou-me, correu por esse mundo... Esta noite, veio bater ao portão, muito chorosa... que o amante lhe batera... Ouviu bem, senhora?! Quis fazê-la jurar que desprezaria agora esse bandido, para viver só no meu carinho... só no meu carinho!... Eu havia de tratá-la com todo o mimo, como se fora uma criancinha... Fiz-lhe mil promessas, de joelhos, com lágrimas... Sabe o que me respondeu, a tudo?! Que amava ainda o outro! Cego de raiva, matei-a; ah! matei-a e não me arrependo... Antes morta por um pai honrado do que batida por um cão qualquer... Depois de morta... achei-a linda, linda! mas, coitadinha! vinha miserável, quase nua... tive pena, e para fazê-la aparecer bem a Nossa Senhora, vesti-a de rosas!...
Toda a gente me dizia:
– Olha que aquele sujeito compromete a tua casa! Põe-no fora!
Mas, como ele era calado, metido consigo, e porque, principalmente, tratava muito bem das minhas flores, eu levantava os ombros:
– Não era tanto assim! O pobre homem! Aqueles modos de animal bravio, não os tinha decerto por culpa sua!
E assim íamos vivendo.
Uma tarde, em setembro, desci ao jardim. Que crepúsculo aquele! No céu, esgarçado de nuvens, a lua, em foice, brilhava já, e com tamanha doçura, que dava vontade na gente de não fazer outra coisa senão olhar para ela! Havia também no ar, transparente e calmo, tal delicadeza de colorido, que a minha alma ficaria nela estática, se os olhos, percorrendo tudo, não vissem logo a infinidade de rosas, que as minhas roseiras prometiam.
– Quantos botões, Mãe do Céu!
– Tudo isto abre esta noite. – resmungou com voz soturna o jardineiro... – Amanhã haverá centenas de rosas no jardim!
A minha fantasia desencadeou-se. Centenas de rosas frescas, todas abertas, deveriam dar uma graça nova àquele recanto, pouco acostumado a semelhante fartura de flores.
Eu mesma iria querer colhê-las ainda frescas de orvalho: mandaria um ramalhete a minha mãe, cobriria de rosas a sepultura de minha filha, encheria de rosas a minha casa...
E, usando de uma forma imperativa e severa, pouco comum em mim, disse ao medonho e hirsuto jardineiro que não tocasse nenhuma flor! Seria eu quem as colhesse todas!
Ele curvou-se, em obediência.
Nessa noite, fui cedo para a cama, preparando-me para madrugar no dia seguinte. E tal era o meu propósito, que peguei logo num sono doce e tranquilo.
Eram seis horas e já eu estava no jardim. Como quem desperta de um sonho, apatetada, olhei à roda e só vi folhas... folhas e mais folhas verdes! Nem uma flor!
Gritei pelo jardineiro, e ele veio, como por encanto, num momento, mas com tal jeito e tão demudadas feições, que tive medo.
Os olhos, de vermelhos, eram só sangue; a barba áspera, longa e ruiva estava revolvida como por um vento de loucura, e nos grossos braços tisnados tinha sinais fundos de unhadas...
– As minhas rosas?! – perguntei-lhe, disfarçando o pavor que a sua figura estranha me infundia.
– Estão aqui! – disse ele, com voz grossa, como um baixo de órgão de catedral; e caminhou para o quarto.
Fui atrás dele, espantadíssima, mal segurando a saia do vestido, que se não molhasse na relva – cheia de raiva e curiosa ao mesmo tempo.
O quarto do jardineiro era ao fundo, entre a horta e o jardim, ao pé de dois limoeiros da Pérsia, de gostoso cheiro. Ensombrando a porta, havia uma latada de maracujás e, à esquina, encostados à parede, estavam os utensílios de jardinagem.
– Que irá querer ele? – perguntava a mim mesma. De repente, estaquei:
– Não entro! – respondi, a um gesto que me fazia.
– Então, olhe daí! – replicou o homem bruscamente, escancarando a porta.
Encostei-me ao umbral para não cair. No meio do quarto, sob uma avalanche de rosas perfumadíssimas, entrevi o corpo de uma mulher.
– Era minha filha – disse o jardineiro, entre soluços que mais se assemelhavam a uivos que a dor humana; – Um dia abandonou-me, correu por esse mundo... Esta noite, veio bater ao portão, muito chorosa... que o amante lhe batera... Ouviu bem, senhora?! Quis fazê-la jurar que desprezaria agora esse bandido, para viver só no meu carinho... só no meu carinho!... Eu havia de tratá-la com todo o mimo, como se fora uma criancinha... Fiz-lhe mil promessas, de joelhos, com lágrimas... Sabe o que me respondeu, a tudo?! Que amava ainda o outro! Cego de raiva, matei-a; ah! matei-a e não me arrependo... Antes morta por um pai honrado do que batida por um cão qualquer... Depois de morta... achei-a linda, linda! mas, coitadinha! vinha miserável, quase nua... tive pena, e para fazê-la aparecer bem a Nossa Senhora, vesti-a de rosas!...
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
Nenhum comentário:
Postar um comentário