segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Minha Estante de Livros (Estórias da Casa Velha da Ponte, de Cora Coralina)


Decifrar os caminhos da vida de Cora Coralina é adentrar o espaço da memória da cidade de Goiás no estado de Goiás, das suas representações e da complexidade dos deslocamentos entre o passado e o presente da cultura que a constituiu. Falar da obra de Cora Coralina é estabelecer uma conexão forte deste passado, pois ele constituiu a chave fundamental para entender a sua trajetória pessoal e de poetisa.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas chamada de Aninha e pseudônimo Cora Coralina, perdeu o pai aos dois meses de idade e, após este falecimento, sua mãe casou-se novamente. Cresceu no período que corresponde ao fim da Monarquia e a instalação da República no Brasil e foi criada entre nove mulheres.

A vida de Aninha pode ser dividida em três grandes fases: a infância e juventude vivida em Goiás (de 1889 a 1911); o período do casamento, passado em São Paulo (de 1911 a 1955) e a fase da vida madura, na qual Ana voltou a viver em Goiás (de 1956 até o seu falecimento em 1985).

A infância de Aninha transcorreu em um período de restrições materiais, decorrente da decadência da mineração, da abolição da escravidão, das ausências e de lutas pela sobrevivência econômica, social e moral da Villa Boa de Goyaz. Uma época de forte disciplina entre os seus habitantes, herança do período colonial, escravista.

A cidade de Goiás, Patrimônio Mundial e Cultural da Humanidade é o grande personagem dos livros de Cora Coralina. A cidade é apresentada e re-inventada através de uma deliciosa viagem no tempo, promovida pelo texto poético, que inclui simplicidade, odores, cores, sentidos e o movimento cotidiano da vida tranquila e saborosa, coisas boas que perpassam toda a trajetória da sua obra.

O livro Estórias da Casa Velha da Ponte é o quarto dos seus dez livros. Publicado após a morte da escritora possui 109 páginas e transporta o leitor através de dezoito contos pelos mistérios da “Procissão das Almas”, sensações de “… depená o frango na casa da vizinha” e muitos causos da cidade de Goiás. Seus personagens e tradições perpassam as gerações desde o século XIX e a leitura encanta e possibilita uma viagem pelo interior de um Brasil pouco conhecido, “velho documentário de passados tempos, vertente de estórias e de lendas”.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que, segundo W. Benjamim, sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros.

Como toda residência de interior habitada muito tempo pela mesma família, a casa velha da ponte vivia cheia de histórias. Construída "em pedra, madeirame e barro", com as suas "folhas de portas pesadas de árvores fortes descomunais serradas a mão", a sua senzala desativada e seus imensos portais, a própria casa já era uma parte viva da história da cidade de Goiás Velho.

As suas paredes presenciaram histórias de amor e suicídios de escravos, enquanto lagartixas buscavam as brechas para se aquecer. Um dos antigos proprietários, recebedor dos quintos reais, tinha se apossado do dinheiro do Estado. Para fugir da prisão, teria ocultado no porão moedas e barras de ouro, dando origem assim à lenda do tesouro enterrado. Mais tarde, em época de esplendor, a família só "almoçava sua gorda feijoada goiana em pratos e talheres de ouro".

Tradições como essas embalaram a infância de Cora Coralina, criada na velha casa, já então decadente, "cerradas portas e janelas, resguardando de olhar estranho o desmazelo e a pobreza que se instalavam". Essas histórias domésticas e outras vividas na cidade, que impressionavam a menina, são o material vivo e humano do livro, registro de velhas tradições e, ao mesmo tempo, retrato fiel e pitoresco de uma comunidade do Brasil Central no final do século XIX e início do século XX, com as suas prostitutas segregadas, vivendo em becos, capazes de valentias, como a narrada no delicioso Minga, zoio de prata, os famosos raptos de donzelas (“Cortar em Riba do Rasto”), tão frequentes no Brasil antigo, as solteironas (“Quadrinhos da Vida”).

Nem faltam as estórias de assombração e assombramento (“Procissão das Almas”, “O Caso de Mana”), sempre tão vivas no imaginário popular, narradas com aquela insuperável simplicidade e leveza de Cora Coralina, encanto de seus versos, encanto de sua prosa.

Na escrita coralineana se confirma o autobiográfico a partir do título e se efetiva a cada momento do relato. A narradora-personagem traz informações que são passíveis de verificação, outras fazem parte do imaginário popular que ao serem repassadas de geração para geração adquirem feição meio lendária. A questão do ouro enterrado nas paredes da Casa Velha da Ponte foi fato que se popularizou e mesmo Cora Coralina não se furtou à curiosidade de mandar escavar o velho porão em busca do ouro perdido. A Casa Velha da Ponte foi adquirida quando do nascimento de Helena, segunda irmã mais velha de Cora Coralina, pelo seu pai, o Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães, no século XIX.

A Casa Velha da Ponte é elemento provocador de retorno ao passado, de protagonista ela passa a mera coadjuvante dos fatos e dos acontecimentos que fazem parte de sua história. Eles, sem pedirem licença, invadem a cena narrativa e centralizam o motivo da enunciação, depois novamente a Casa volta a ocupar seu espaço e demarca a sua existência em três esferas temporais: no presente, no passado e no mítico.

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