Conheci-o no tempo em que trabalhava na Fon-Fon*. Era um homem pequeno, magro, com um reduzido cavanhaque, bem tratado, mas a sua tragédia íntima e interior só a vim conhecer perfeitamente mais tarde. Não foram precisos muitos dias, mas foram precisos alguns.
Andávamos por esse tempo na febre dos melhoramentos, das construções e, a todo momento, ele lembrava a este ou aquele jornal uma ideia.
Um dia, era uma avenida, outro dia, era uma ponte, um jardim e, de tal modo, a mania de ter ideias o tomou, que não se limitava a deixá-las pelos jornais. Ia além. Procurava em ministros, fazia requerimentos aos corpos legislativos, propondo tais e tais medidas.
Era um pingar de ideias diário, constante e teimoso.
É de crer que, após o almoço, ele dissesse à mulher: “Filha, hoje tenho quatro ideias”, e saísse contente a procurar redações, deputados, proprietários, ministros, chefes de serviço, escorrendo ideias.
Nos jornais, ele propunha melhoramentos na folha, sessões, “enquetes”, autores para folhetim.
Os secretários já o temiam e, quando ele apontava na porta da sala, coçava a cabeça e lá diziam consigo: — “Lá vem o homem que tem ideias”.
E ele não tinha nenhuma piedade, abancava-se ao lado do redator e, zás, duas ideias. Para aquela fecundidade, não havia quase tempo de gestação. Certas vezes, mesmo, entre duas ideias, brotava outra e, se esta era de um melhoramento urbano, enquanto a primeira era de coisa jornalística, ele deixava o secretário e corria ao prefeito.
O prefeito e o seu gabinete já conheciam o extraordinário e fecundo homem e, logo que ele se fazia anunciar, o chefe da cidade dizia para o secretário: “Esse diabo! Lá temos o homem das ideias”.
As suas ideias eram as mais disparatadas possíveis. Quase sempre eram inviáveis ou inúteis.
Ele tinha viajado, de modo que queria ver no Rio todas as coisas soberbas do mundo: os jardins do Píncio, a torre Eiffel, o túnel sobre o Tâmisa. E ao acudir-lhe, por exemplo, a ideia de desviar o Paraíba para a baía de Guanabara, corria às nossas autoridades em engenharia e pedia o parecer delas.
Ficaram os mesmos engenheiros atarantados, atordoados, apavorados, diante das extravagantes inutilidades do homenzinho. Mas não se pode executar? Perguntava ele à menor objeção. Se tivesse resposta favorável, a sua fisionomia irradiava. Era de vê-lo nos momentos de concentração ou senão quando expendia as suas cogitações. Tinha então uma poderosa beleza, que empolgava e a tornava simpática.
Para levar os dias a destilar ideias, ele tinha que passar as noites a pensar. Creio que dormia pouco: todo ele se encontrava na função de ter ideias. E era pródigo, e era generoso, e era desperdiçado: pensava, tinha ideias e dava aos outros.
Em sua casa, a sua mania se propagara. A mulher, os filhos, os criados também tinham ideias. Quando lhe faltavam, recorria a eles.
Uma vez, o cozinheiro até lhe dera uma muito interessante: a dos bondes restaurantes; e ele correra logo à Light para lembrar a coisa.
Ocasiões havia que ele ficava desolado, desesperado e aflito: era quando não tinha nenhuma e da família nada podia sacar.
— Ah! Chiquinha — dizia ele —, hoje saio sem nenhuma ideia. Que vão dizer de mim? Estou desmoralizado...
Quando, porém, lhe vinham muitas, que alegria! Que regozijo! A manhã ficava-lhe sorridente, cantarolava, arreliava...
No bonde, logo ao encontrar o primeiro amigo, agitava a conversa e pespegava:
— Aurélio, se o prefeito quisesse, podia fazer um grande melhoramento.
— Qual é? – indagava o amigo.
— Estabelecer um imenso foco elétrico no alto do Corcovado. Devia, por isso, a iluminação da cidade ficar mais perfeita.
E dizia a coisa bem alto, para que os vizinhos ouvissem. Após ter dito, observava uma por uma as fisionomias e tomava-lhes o espanto pela admiração causada pelo arrojo de sua imaginação.
Este homem singular, este homem que, no seu gênero era um Edison ou um Marconi, nunca foi apreciado. Os poderes públicos não tomaram na devida consideração os seus projetos: os jornais não o apontavam à admiração do público, e ele vive hoje — triste, abandonado, desolado, em uma pequena cidade do interior.
Estive com ele há dias, lá, e senti-me confrangido*, diante de sua desolação, do seu abatimento.
Conversamos sossegados debaixo de uma jaqueira úmida, e lembrei-lhe o seu passado e a glória que lhe escapou. Ele me ouviu triste, olhou-me depois longamente e me disse:
— Que se há de fazer? Esta terra não estima seus filhos...
— Não é só aqui. — disse-lhe eu — Em toda a parte é assim.
— Mas nas outras terras, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, há esperança de uma recompensa final, mas, no Brasil, que nos pode sustentar na luta?
E abaixou a cabeça para o chão ingrato da pátria, que o havia criado, mas que não o soubera animar no árduo trabalho de ter ideias. Não era um Mário nas ruínas de Cartago, porque afinal ele estava em sua pátria, era alguma coisa mais angustiosa, como que o próprio desalento em pessoa.
Eu lhe respeitei a dor, fugi ao assunto e tivemos a conversar sobre umas várias e sem importância.
Entardecia e o crepúsculo vinha lentamente, pondo nas coisas a sua poesia dolente e a sua deliquescência*.
Levantei-me para me despedir e ele veio até a porteira. Estivemos ainda parados, a ver a imensa sebe de bambus, curvados em nervuras de ogivas. Uma cigarra começou a estridular e os bambus agitaram-se em pouco, a um leve vento. Despedi-me afinal, mas, quando ia partir de vez, o homem me disse, de repente cheio de contentamento:
— Acabo de ter uma ideia.
— Qual é? — perguntei-lhe.
— O aproveitamento do bambu para encanamento d’água, nas cidades. Há economia e será uma fonte de renda para o Brasil.
Olhei-o atento, nada lhe disse e segui devagar pela estrada afora.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = =
NOTAS
*Confrangido = (sentido figurado) atormentado, aflito.
*Deliquescência = (sentido figurado) estado de decomposição; degeneração, decadência
*Fon-Fon = Revista brasileira ricamente ilustrada, repleta de caricaturas da época, idealizada pelo escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, cujo início da circulação no Rio de Janeiro data de 1907. Lima Barreto foi assíduo colaborador da revista.
Andávamos por esse tempo na febre dos melhoramentos, das construções e, a todo momento, ele lembrava a este ou aquele jornal uma ideia.
Um dia, era uma avenida, outro dia, era uma ponte, um jardim e, de tal modo, a mania de ter ideias o tomou, que não se limitava a deixá-las pelos jornais. Ia além. Procurava em ministros, fazia requerimentos aos corpos legislativos, propondo tais e tais medidas.
Era um pingar de ideias diário, constante e teimoso.
É de crer que, após o almoço, ele dissesse à mulher: “Filha, hoje tenho quatro ideias”, e saísse contente a procurar redações, deputados, proprietários, ministros, chefes de serviço, escorrendo ideias.
Nos jornais, ele propunha melhoramentos na folha, sessões, “enquetes”, autores para folhetim.
Os secretários já o temiam e, quando ele apontava na porta da sala, coçava a cabeça e lá diziam consigo: — “Lá vem o homem que tem ideias”.
E ele não tinha nenhuma piedade, abancava-se ao lado do redator e, zás, duas ideias. Para aquela fecundidade, não havia quase tempo de gestação. Certas vezes, mesmo, entre duas ideias, brotava outra e, se esta era de um melhoramento urbano, enquanto a primeira era de coisa jornalística, ele deixava o secretário e corria ao prefeito.
O prefeito e o seu gabinete já conheciam o extraordinário e fecundo homem e, logo que ele se fazia anunciar, o chefe da cidade dizia para o secretário: “Esse diabo! Lá temos o homem das ideias”.
As suas ideias eram as mais disparatadas possíveis. Quase sempre eram inviáveis ou inúteis.
Ele tinha viajado, de modo que queria ver no Rio todas as coisas soberbas do mundo: os jardins do Píncio, a torre Eiffel, o túnel sobre o Tâmisa. E ao acudir-lhe, por exemplo, a ideia de desviar o Paraíba para a baía de Guanabara, corria às nossas autoridades em engenharia e pedia o parecer delas.
Ficaram os mesmos engenheiros atarantados, atordoados, apavorados, diante das extravagantes inutilidades do homenzinho. Mas não se pode executar? Perguntava ele à menor objeção. Se tivesse resposta favorável, a sua fisionomia irradiava. Era de vê-lo nos momentos de concentração ou senão quando expendia as suas cogitações. Tinha então uma poderosa beleza, que empolgava e a tornava simpática.
Para levar os dias a destilar ideias, ele tinha que passar as noites a pensar. Creio que dormia pouco: todo ele se encontrava na função de ter ideias. E era pródigo, e era generoso, e era desperdiçado: pensava, tinha ideias e dava aos outros.
Em sua casa, a sua mania se propagara. A mulher, os filhos, os criados também tinham ideias. Quando lhe faltavam, recorria a eles.
Uma vez, o cozinheiro até lhe dera uma muito interessante: a dos bondes restaurantes; e ele correra logo à Light para lembrar a coisa.
Ocasiões havia que ele ficava desolado, desesperado e aflito: era quando não tinha nenhuma e da família nada podia sacar.
— Ah! Chiquinha — dizia ele —, hoje saio sem nenhuma ideia. Que vão dizer de mim? Estou desmoralizado...
Quando, porém, lhe vinham muitas, que alegria! Que regozijo! A manhã ficava-lhe sorridente, cantarolava, arreliava...
No bonde, logo ao encontrar o primeiro amigo, agitava a conversa e pespegava:
— Aurélio, se o prefeito quisesse, podia fazer um grande melhoramento.
— Qual é? – indagava o amigo.
— Estabelecer um imenso foco elétrico no alto do Corcovado. Devia, por isso, a iluminação da cidade ficar mais perfeita.
E dizia a coisa bem alto, para que os vizinhos ouvissem. Após ter dito, observava uma por uma as fisionomias e tomava-lhes o espanto pela admiração causada pelo arrojo de sua imaginação.
Este homem singular, este homem que, no seu gênero era um Edison ou um Marconi, nunca foi apreciado. Os poderes públicos não tomaram na devida consideração os seus projetos: os jornais não o apontavam à admiração do público, e ele vive hoje — triste, abandonado, desolado, em uma pequena cidade do interior.
Estive com ele há dias, lá, e senti-me confrangido*, diante de sua desolação, do seu abatimento.
Conversamos sossegados debaixo de uma jaqueira úmida, e lembrei-lhe o seu passado e a glória que lhe escapou. Ele me ouviu triste, olhou-me depois longamente e me disse:
— Que se há de fazer? Esta terra não estima seus filhos...
— Não é só aqui. — disse-lhe eu — Em toda a parte é assim.
— Mas nas outras terras, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, há esperança de uma recompensa final, mas, no Brasil, que nos pode sustentar na luta?
E abaixou a cabeça para o chão ingrato da pátria, que o havia criado, mas que não o soubera animar no árduo trabalho de ter ideias. Não era um Mário nas ruínas de Cartago, porque afinal ele estava em sua pátria, era alguma coisa mais angustiosa, como que o próprio desalento em pessoa.
Eu lhe respeitei a dor, fugi ao assunto e tivemos a conversar sobre umas várias e sem importância.
Entardecia e o crepúsculo vinha lentamente, pondo nas coisas a sua poesia dolente e a sua deliquescência*.
Levantei-me para me despedir e ele veio até a porteira. Estivemos ainda parados, a ver a imensa sebe de bambus, curvados em nervuras de ogivas. Uma cigarra começou a estridular e os bambus agitaram-se em pouco, a um leve vento. Despedi-me afinal, mas, quando ia partir de vez, o homem me disse, de repente cheio de contentamento:
— Acabo de ter uma ideia.
— Qual é? — perguntei-lhe.
— O aproveitamento do bambu para encanamento d’água, nas cidades. Há economia e será uma fonte de renda para o Brasil.
Olhei-o atento, nada lhe disse e segui devagar pela estrada afora.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = =
NOTAS
*Confrangido = (sentido figurado) atormentado, aflito.
*Deliquescência = (sentido figurado) estado de decomposição; degeneração, decadência
*Fon-Fon = Revista brasileira ricamente ilustrada, repleta de caricaturas da época, idealizada pelo escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, cujo início da circulação no Rio de Janeiro data de 1907. Lima Barreto foi assíduo colaborador da revista.
Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Nenhum comentário:
Postar um comentário