terça-feira, 30 de novembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 11

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 37 –

Sabemos que a vida é feita de dualidades situações avessas, contrárias, antípodas, constantemente. Assim é que temos manhãs radiosas e manhãs sem sol, dias refulgentes e dias escuros, vidas imensas e vidas nanicas, dias de boas notícias e dias de más notícias, dias ventaneiros e dias serenos, dias alegres e dias tristes.

Similitudes acontecem com a prosa e o verso, que também têm o seu dia sim e o seu dia não. Acordamos pensando em escrever um texto e nada flui, a inspiração e a transpiração ausentes,, os pensares vagos.

Estamos no dia não da escrita. Eis que neste antagonismo surgiu um dia sim abrigando uma croniquinha não.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cristovão Tezza (Aula de reforço)

Estava distraída e quase deixou queimar o pão, olhando pela janela da cozinha, quando o telefone tocou — uma, duas, três vezes. Correu, pegou o fone e voltou a tempo de salvar o pão.

— É a professora Beatriz?

Demorou a responder — o “professora” soou repentinamente estranho, como se não fosse ela.

— Sim?

— É o meu filho. Ele vai fazer vestibular. Não é que ele escreva mal, ele é muito inteligente. Mas precisa de um reforço. De um reforço em tudo — é muito dispersivo. Falaram muito bem de você! Disseram que você faz milagres. Você faz milagres? — e a mulher riu.

Beatriz arriscou um diagnóstico prévio: mãe dominadora, com um certo humor invasivo, o que duplica o perigo. Mas ela estava mesmo precisando de aulas extras.

— A gente tenta fazer milagres. Às vezes não dá certo — acrescentou, arrependendo-se em seguida. Mas a mulher não ouviu: — Você está disponível? Poderia começar hoje mesmo?

Beatriz preferia quando perguntavam antes o preço da aula. Falar de dinheiro é sempre desagradável — as pessoas baixam a voz, olham para os lados, disfarçam, cheias de dedos. Parece que somos todos traficantes nesta vida, pessoas sujas que escondem o dinheiro na bolsa e só o mostram olhando para os lados, suspeitosas — e era como se Beatriz visse a imagem que pensava. Mas algo lhe dizia, pelo tom de voz, que essa mulher pagaria bem, sem chiar. Essas pessoas que querem tudo para ontem e bancam a exigência.

— Só um minutinho, senhora.

Colocou o telefone na pia, tirou o pão da frigideira, com capricho, e colocou sobre um pires. Parecia bom, tostadinho sem queimar. Retomou o fone:

— Pode ser à tarde? À tarde estou livre. Às duas, está bem?

Estava.

— Mas talvez fosse bom nós duas conversarmos antes sobre o meu filho. Eu poderia lhe dar uma orientação. Ele é um menino... como dizer?

Não diga.

— Tudo bem, só que... o seu nome? Ah, dona Sara, a gente conversa, sim, é claro. Mas agora tenho de sair correndo. A senhora me passaria o endereço?

Desceu do ônibus próximo da rua transversal que cruzava a avenida Batel — região de gente rica, principalmente naquela sequência de três prédios para onde ela estava indo, procurando o número, 227, é ali, o prédio do meio. Pensou que talvez devesse ter vindo com uma roupa menos informal, aquele uniforme jeans, tênis azul, blusa branca, laço no pescoço, a pasta com os textos na mão, mas subindo a rampa da portaria se distraiu, bobagem, estou muito bem, mentiu, lembrando da farmácia em que teria de passar na volta. Estava deprimida. Diante do porteiro, ficou muda, uma impaciência não localizada na cabeça. Parece que a minha vida é me identificar com porteiros — sou uma vendedora de pizzas, e a ideia de que disse isso em vez do “Beatriz” suspirante que de fato confessou acabou por distraí-la novamente. O porteiro falava baixo no interfone; talvez ela fosse recusada e voltaria para a rua sem jamais conhecer o garoto dispersivo (hiperativo? déficit de atenção?) que precisava de um reforço, mas o porteiro agitou-se, levantando-se como quem súbito descobre que está diante de alguém realmente importante, o médico na urgência, o encanador que vai resolver o dilúvio no banheiro, o técnico da televisão cinco minutos antes do penúltimo capítulo da novela.

— Por aqui, senhora!

Solícito — a espinha já se curvando, os passos rápidos até o elevador, no qual se atirou em três passadas para abrir a porta antes que, vindo da garagem, ele se fosse para o alto, é no sétimo andar, uma mesura respeitosa diante da senhora, Beatriz sorriu, senhora, e desejou ardente um espelho para avaliar os 28 anos incompletos, mas deu de cara com um cãozinho repolhudo que latiu três vezes, um latido fino, agudo, irritante, aliás como a dona, esta sim uma senhora, que gentil pediu desculpa:

— Desculpe, mocinha. Essa menina aqui é muito espevitada!

Muito es-pe-vi-ta-di-nha! — esfregava o focinho no focinho do bicho:

— Sua bagunceirinha! Fica latindo para as visitas! Que feio!

Será essa a mulher? — assustou-se Beatriz, mas não; no quinto andar a senhora pediu licença e saiu do elevador; o cãozinho latiu de novo, quase pulando do colo da mulher para morder Beatriz. A porta se fechou e ela ouviu mais repreensões da mãe para a filhinha, que sumiram em fade out até que o sétimo céu, o sétimo andar, corrigiu-se ela, estou maluca, se abrisse e uma mulher grande lhe estendesse os braços que também pareciam enormes:

— Professora Beatriz!? — Parecia uma velha tia, vendo a sobrinha cinco anos depois; só faltava dizer como você cresceu, mas chegou perto: — Você é uma gracinha de menina! — e os braços se esticavam, as mãos nos ombros de Beatriz, avaliando a peça. — Eu não sabia que você era tão nova! — Puxava-a pela mão: — Venha por aqui, vamos conversar.

Atravessou o breve hall cheio de peças douradas, plantas e quadros, percebendo que no prédio havia um só apartamento por andar, e em seguida passou pela porta imensa que dava a uma sala igualmente imensa com uma profusão de tapetes, mesas, poltronas, cores, luminárias, cortinas, tudo muito limpo e sólido, nenhum livro nas paredes, mas o olhar não conseguia se deter, a mulher era rápida — num momento, viu um vulto que apareceu na moldura de uma porta, e sumiu em seguida, como quem se esconde. E agora estava sentada diante da mulher, numa mesa de uma outra sala, menor.

— Que bom que você veio — e sorriam os olhinhos miúdos da mulher, os cabelos vermelhos em torno de um rosto redondo como uma bolacha recheada, bochechas salientes logo acima de dois queixos discretos acima de um pescoço curto. Havia entretanto uma perquirição residual no olhar, alguém que ainda precisa se convencer de que está fazendo um bom negócio.

Tímida, Beatriz restou desconfortável naquele breve momento, em busca do que dizer; a ideia de que provavelmente seria bem paga (na mesa nua, havia apenas um silencioso talão de cheques com uma caneta atravessada, a um palmo da mão direita, gordinha, de dona Sara) contrabalançava-se com a ideia de que aquilo seria muito chato.

— O Eduardo (a gente chama ele de Dudu), o Dudu é muito dispersivo. Rapaz inteligente. — Ela baixou a voz: — É filho do meu primeiro casamento. Você é solteira? Ele...

Seria o vulto da porta? Aliás, com todas as portas escancaradas, o Duduzinho estaria ouvindo a interminável metralhadora. A clássica mãe superprotetora com sentimento de culpa. Isso cansa. Num lapso, Beatriz lembrou o aborto que fez, sete meses depois de casada, e levantou-se, súbita, olhando para o relógio, ainda tentando ser gentil:

— Dona Sara, eu tenho outra aula às quatro. Talvez a gente deva começar.

— Isso mesmo! — concordou dona Sara imediatamente, levantando-se também, decidida, como se fosse dela a ideia de começar logo.

— Faça uma avaliação e conversamos!

De volta à sala maior, ela se viu enfim diante de Dudu, ao centro de uma mesa humilhante de tão pesada e bonita, um de cada lado, como numa conferência da ONU. Um garoto bonito, delicado, inseguro e tímido, as mãos enormes sobre a mesa, pontas visíveis de uma alma ainda incompleta; custou a olhar para ela; quando olhou, ela imaginou ver lá no fundo dos olhos azuis um pedido de socorro, mas isso era só uma transferência do sentimento dela, quando enfim dona Sara desapareceu dali, ainda que deixando todas as portas abertas; não parecia uma casa; parecia um conjunto de salões e corredores.

Uma aula particular é uma consulta médica, ela fantasiou — é preciso privacidade. Praticamente cochichavam:

— Eduardo, vamos fazer alguns exercícios, só para eu conferir como você está. Tudo bem?

Percebeu nela mesma o tom quase severo da professora, o breve peso da autoridade que compensa a insegurança diante de uma situação nova; talvez o menino se sentisse traído, imaginou. De qualquer modo, sentiu-se bem: estava no seu papel, e era sempre um prazer descobrir o que as pessoas sentem quando escrevem, o que elas escrevem, o mistério daquelas palavras sofridas em sequência. Cada caso era mesmo sempre um caso, negando o chavão com um chavão. Vamos ao trabalho, disse ela, apresentando-lhe uma folha impressa que tirou da pasta: junte as duas sentenças em uma única frase, fazendo as modificações necessárias. Primeiro: O homem fugiu. O casaco do homem era verde. Segundo: Estava chovendo. Ele saiu sem guardachuva. (Use “embora”).

Dudu era canhoto. Enquanto ele escrevia um tanto penosamente — a letra quase ilegível, Beatriz avaliou, de ponta-cabeça, enquanto as linhas saíam da caneta esferográfica que ele tentava esmagar com os dedos —, ela chegou a ver mais uma vez a cabeça de dona Sara lá adiante, como uma aparição, desaparecendo em seguida. Talvez ela queira que a gente fale mais alto, para poder nos ouvir. Conferiu o resultado, que o garoto estendeu lentamente, talvez temendo a resposta:

- O homem que o casaco era verde fugiu. Embora chovendo, ele saiu sem guarda-chuva. Ela sorriu, estimulante. Ele não conhece o cujo e não sabe usar subjuntivo. Em duas frases, o retrato inteiro para um estudo de caso. A segunda frase não estava tecnicamente errada, ainda que ambígua. Ficou tranquila: teria serviço para alguns meses. Estavam em abril, o vestibular é em dezembro. Estendeu para ele uma outra folha, com um texto informativo de três parágrafos sobre o desmatamento na Amazônia.

— Leia em voz alta esse texto. Eu vou fazer algumas perguntas, a gente conversa um pouco, e então você escreve um resumo usando 50 palavras. Tudo bem?

— Você não quer um cafezinho? — a voz da mulher reapareceu lá de longe, alta, como quem chama alguém no outro lado da rua.

— Não, obrigada, dona Sara. É melhor a gente se concentrar na aula.

Uma ligeira repreensão no tom de voz. O rapaz olhava para o texto, sem ler, visivelmente pensando em outra coisa — e então estendeu a mão e pediu licença para conferir de novo as frases que havia escrito.

— Eu poderia usar o “cujo” aqui? Tipo, o rapaz cujo o casaco era verde fugiu?

Ela sorriu, animada:

— Sim, é claro; seria o justo. Mas não “cujo o”; apenas “cujo casaco”. As expressões cujo, cuja, cujos, cujas já incluem o artigo.

— Mas ninguém fala assim. Todo mundo diz a pessoa que o casaco.

Ela sentiu que ele queria marcar território.

— Certo! Mas escreve-se assim. É a chamada língua padrão, norma culta.

— Eu imaginei que a pessoa nessa frase estava falando e não escrevendo.

Ela conferiu nos olhos dele: havia um toque de humor. Apenas uma breve pegadinha, não uma provocação. Sorriu:

— Sim, você está certo. O registro da frase não estava adequado. Que ótimo que você percebeu! Vamos à leitura?

Ele lia razoavelmente bem, com uma voz quase feminina. Atrapalhou-se apenas com uma sequência de orações subordinadas, que ele teve de refazer para que acabassem em pergunta; e não sabia o que significa diáfano e rotundamente. Ela explicou — e sugeriu que ele comprasse um dicionário.

— O dicionário é fundamental para quem escreve.

— Eu tenho a versão eletrônica no computador.

O resumo não ficou bom — ele queimou as 50 palavras apenas com o assunto do primeiro parágrafo —, mas o texto estava até razoável: só um erro de concordância (acontece queimadas todos os meses) e outro de ortografia (encontrarão por encontraram). Enfim: estava diante de um caso típico. Já tinha praticamente um curso completo destinado a ele, só venderia a mão de obra — e quando dona Sara se aproximou, uma hora depois, conclamando-a para tomar um café, começou a pensar no preço que cobraria. Súbito, o rapaz desapareceu e ela se viu diante de outra mesa, em outra sala, tendo de decidir entre o chá e o café. Havia uns cinco tipos de bolachas — uma empregada uniformizada surgiu de lugar nenhum, depositou outra bandeja e se retirou em silêncio para o fundo de um corredor de onde vinha o som distante de uma televisão. Beatriz começou a se sentir desconfortável, a mão quente da mulher sobre o seu braço.

– E que tal o meu filho? Não é inteligente?

Sim, sim, ele é ótimo, ele é muito melhor que a senhora”, ela quase disse, - E sabe o que eu ia propor a você, eu achei que ele gostou tanto de você que — e Beatriz se serviu de café, apenas café, e escolheu um modelo de bolacha que parecia apetitosa, e era — que eu estava pensando se; mas se sirva, por favor. - Oitenta reais  não, é muito. Se o meu padrão é quarenta, posso pedir cinquenta, talvez sessenta a hora, ela calculou, quem sabe duas, três aulas por semana, isso representaria um desafogo bom enquanto ela — enquanto ela o quê? O café estava bom, forte, e ela pôs um pouco mais de açúcar, esperando o momento para encaixar seu preço, mas dona Sara falava sem parar: sim, sim, eu digo mesmo sair com ele, respirar um pouco outro ar, acho que a minha presença — ela baixou a voz para confessar — é um tanto, assim quero dizer, eu intimido, sabe? Ele está nessa fase terrível. - Mas do que essa mulher está falando? — e pegou outra bolacha, sentindo a clássica pontada no pescoço que sempre reaparecia em seus momentos de tensão. Bem, a aula pode ser em outro lugar, é claro, ela acabou dizendo, sem oferecer a própria casa, embora fosse o ideal, não precisaria pegar ônibus — Ir ao cinema, eu digo, temas de redações, tudo isso seria muito bom para ele, escrever sobre a vida, os dedos quentes de dona Sara como que pediam socorro e desculpa ao mesmo tempo, apertando-lhe suavemente o braço, enquanto a cabeça se aproximava, - isso seria muito bom e vocês ficariam à vontade, compreende? Até na mesa de um barzinho, se fosse o caso — e colocou a mão na boca, um escândalo envergonhado: — Eu acho até que ele é virgem! — e deu uma risadinha nervosa. Na verdade ela não quer saber como o filho escreve, surpreendeu-se Beatriz, a bolacha na boca, como uma ficha que entala — Ele passa o dia no computador e isso não é bom, é — bem, ele precisa ver gente, nem tem namorada, nada, e isso afeta o estudo, é claro. Mais café? - Enfim mastigou a bolacha, lentamente, pensando: oitenta reais e desaparecer por aquela porta para nunca mais voltar. Controlou o desejo de se erguer súbita e sair dali. Viu a mulher estender o pratinho — experimente esse, de amora, é uma delícia de recheio — e depois puxar para si o talão de cheques que não saiu da mesa em nenhum momento, como uma boia de segurança:

— Pensei em cem reais a hora cheia, Beatriz. Está bom para você?

Uma letra rápida e criptográfica preenchia o cheque, quase que antes mesmo de ouvir aquele “sim, mas” tímido que ela balbuciou tentando articular uma estratégia qualquer que colocasse as coisas nitidamente nos seus lugares para todo o sempre, o que afinal essa bruxa está querendo de mim?

— Aqui está o telefone dele, você pode marcar com o Dudu mesmo.

E virou-se para o vulto da empregada que reapareceu no corredor, Fulana, eles vão entregar o baú daqui a pouco, e a mulher disse, a voz séria e rouca, Sim, dona Sara, e Beatriz viu-se quase abandonada na sala, dona Sara desculpou-se, comprei um baú lindo, tinha o que fazer, obrigado, menina, você é ótima, um fantasma que troca súbito de script. Levou outro susto ao ver diante do elevador a figura alta de Eduardo, abrindo gentil a porta para ela, e ela temeu que ele descesse junto para acertarem os detalhes, mas não — ele só queria dizer, sussurrando: Desculpe, minha mãe é louca. Ligue diretamente para mim — e antes de a porta fechar ela viu o vulto da mãe reaparecendo lá adiante, discreta, contemplando a despedida, como quem confere se tudo correu de acordo.

Dois andares abaixo, o cãozinho latiu de novo de algum lugar distante no espaço. Ela lembrou que teria de passar na farmácia, e abriu a bolsa para conferir se o cheque estava mesmo certo.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Jessé Nascimento (Analecto de Trovas)

A formiga na labuta
nos dá profunda lição;
não se curva ao peso e à luta,
vive em perfeita união.
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Caminhos, jardins e praças,
flores, cores - que beleza!
Deus derrama suas graças
dando graça à natureza!
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Chora o coração sentindo
tristeza, nunca revolta;
os amigos vão partindo
numa viagem sem volta.
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Com meus sonhos mais singelos
embalados na esperança
venho erguendo meus castelos
desde os tempos de criança.
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Corres tanto, mocidade,
és pela vida levada.
Amanhã serás saudade,
serás velhice, mais nada...
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Dos outros não dependamos,
mas cada um erga a voz;
a paz que tanto almejamos
começa dentro de nós.
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Leu "Campanha do Agasalho",
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
em vez de deixar, pegou.
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Lindo olhar, belo sorriso,
rosto de tal perfeição,
sugere o traço preciso
do Senhor da criação.
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Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
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Na padaria, o cliente:
- O pão está bem "quentinho?"
Com sorriso, a atendente;
- Veja como está "fresquinho".
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Navegando nas poesias,
nas ondas da inspiração,
iço as velas de alegrias
deixo o rumo ao coração.
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No sonho e imaginação,
vou compondo cada verso;
partindo do coração,
viajo pelo universo.
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Num cenário colorido,
cheio de encanto e alegria,
a vida tem mais sentido:
a primavera extasia!
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O genro sempre é quem dança,
a minha sogra é um porre;
o nome dela é "Esperança"
que é a última que morre.
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Por mais que as regras morais
moldem o bom cidadão,
dia a dia os imorais
na vida melhor se dão.
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Pra acreditar foi um custo;
na primeira gravidez,
levou um tremendo susto:
foram cinco de uma vez!
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Quando a razão não alcança
por mais que pareça incrível,
ter fé é ter esperança,
ter fé é crer no impossível.
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Quantas vezes nós choramos
por tantas coisas banais...
Mas, jamais nos esqueçamos:
há outros que sofrem mais.
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Que a humanidade resista
ao mal que, sagaz, avança
eu sou poeta otimista:
ainda existe esperança!
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Se a tua cruz é pesada
e vives só de lamento,
hás de encontrar pela estrada
outros com mais sofrimento.
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Senhor Deus, misericórdia!
Neste conturbado mundo,
nos corações põe concórdia,
mais perdão e amor profundo.
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Semelhante a um quartel
tem sido assim minha casa;
minha mulher, coronel
e eu sempre patente rasa.
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Tenho ciúme e desgosto
quando, à noite, leve brisa
afaga o teu meigo rosto
e os teus cabelos alisa.
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Teu cego e amargo ciúme
que me desgosta e alucina
tem sido o cortante gume
que ao amor leva a ruína.
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Teu olhar, quanta ternura!
Tuas mãos, quanto carinho!
Teu amor, oh, que ventura
pôs a vida em meu caminho.

Fonte:
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.
Livro enviado por Jessé Nascimento.

Contos e Lendas do Paraná - 7 (São José dos Pinhais: As Cruzes da Ponte Velha)


Em 1930, na antiga estrada que ligava a cidade de São José dos Pinhais a Curitiba, uma mãe e sua filha, uma criança de cerca de um ano de idade, retornavam da capital quando logo após a ponte do rio Iguaçu, o cavalo, possivelmente assustado por uma cobra, disparou, causando acidente no qual morreram as duas ocupantes da charrete.

Pessoas bastante conhecidas na pequena comunidade de São José, as finadas receberam o pranto da cidade e a homenagem do marido e pai, que para assinalar o local da tragédia mandou ali erigir cruzes, como ainda hoje é costume. Entretanto, como forma de evidenciar a amplitude do desastre, do braço direito da cruz maior edificou-se uma menor, simbolizando portanto a mãe com a filha ao colo. A partir daí, o local tornou-se estéril ao ponto de não se ouvir sequer um passarinho, embora esses cantassem a poucos metros além. As árvores tornaram-se ressequidas e o lugar revestiu-se de um clima lúgubre, invocando luto e dor.

Não se sabe quem foi o passante que ouviu, primeiramente, os lamentos das mortas, mas a expressão de pavor com que chegou à cidade demonstrou desde logo que não se tratava de pilhéria. O lugar, triste durante o dia, tornava-se horripilante à noite, pois os cavalos assustavam-se e seus condutores ouviam nitidamente o choro da mulher e da criança, seus gemidos de dor e a angústia que suplantava a morte.

Os sãojoseenses passaram a evitar a estrada à noite, os menos corajosos utilizavam um contorno de muitas horas pela estrada da Cachoeira, quando não conseguiam retornar à luz do dia; mesmo os mais bravos passavam com os cavalos à toda brida, não obstante o risco de acidentes. Conta-se que até os raros automóveis existentes na época apresentavam problemas ao passar por ali. Muitas foram as pessoas, todas de integral credibilidade, que chegaram a ver a mulher com a filha nos braços, envoltas, ambas, em fantasmagóricas brumas e chorando copiosamente.

A cidade, já naturalmente pequena, fechou-se por completo. Quando, após o cair da noite ouvia-se o tropel de cavalos vindos de Curitiba, automaticamente concluía tratar-se de forasteiros, que, desconhecendo o fato, chegavam esbaforidos e apavorados.

Vários meses passaram em tal situação, até que um sãojoseense, ausente da região há muito tempo e portanto desconhecedor da crise, passou pelo local. Apenas havia cruzado a ponte, sentiu o cavalo tornar-se amedrontado e indócil, como que querendo retroceder; habituado ao animal, não compreendeu a atitude, até que viu, à esquerda da estrada e poucos metros à frente, o vulto fantasmagórico, que com a criança no colo vinha em sua direção. Certamente, foi o susto que o fez distrair-se da montaria, que num salto súbito jogou ao chão o cavaleiro e fugiu, a todo galope na direção de São José.

Ninguém soube ao certo, se foi por coragem que o homem dialogou com a morta, ou se foi o medo que, paralisando-lhe as pernas, impediu sua fuga. Mas o fato é que depois de meses de terror finalmente alguém aproximou-se dos fantasmas e indagou o motivo de suas penas, a razão de não se encontrarem no repouso eterno.

“Tirem a criança de meu braço, ela é muito pesada, já não suporto mais”. Foi a resposta do espírito. Nada mais disse, apenas continuou chorando e segurando a criança, que também chorava.

Dizem que aquela noite ninguém dormiu em São José dos Pinhais, a notícia trazida pelo passante espalhou-se como fogo na pólvora e os notáveis do lugar viram o dia amanhecer na casa do viúvo, onde haviam ocorrido para a busca da realização do desejo da morta, cuja solução libertaria não somente os espíritos, mas também a cidade de sua sina.

O preguiçoso nevoeiro de inverno ainda não começava a levantar quando, trêmulos pela falta de sono, ou pelo justo receio, mais de vinte sãojoseenses, acompanhando o viúvo desceram da cidadezinha em direção ao Iguaçu. As mulheres rezavam o terço liberadas pelo vigário, os homens iam silenciosos, talvez pensando se lhes valeriam de alguma coisa as pistolas ocultas sob os paletós. A pequena multidão, rezando, postou-se em frente às cruzes, até que alguém, olhando-as, lembrou-se das palavras da finada e sugeriu que fossem desmanchadas, já que efetivamente eram a mãe com a criança ao colo e talvez essa fosse a causa do sofrimento. Após alguma discussão, finalmente resolveu-se pela retirada das cruzes, já que nada custava tentar.

Foi a solução. Segundo as testemunhas, um momento após o desmanche das cruzes, o lugar pareceu ganhar vida, todos sentiram uma leve brisa e os passarinhos, até então ausentes, encheram de sons o anteriormente lúgubre local. As cruzes foram posteriormente substituídas por uma minúscula capela e as madeiras que as confeccionaram atiradas ao rio. Após algumas semanas de desconfiança, finalmente concluíram os habitantes que a assombração havia desaparecido e a cidade voltou ao normal, embora todos apressassem o passo quando transitavam pelo local.

Algumas décadas mais tarde, com a construção da avenida Marechal Floriano, o local passou a chamar-se Ponte Velha e foi caindo em desuso, até que a própria ponte ruiu. Reparada anos depois, tornou a envelhecer e desapareceu. Hoje, não existe mais a estrada e o mato tomou conta de tudo, da ponte velha restaram apenas alguns vestígios de estacas cravadas no Iguaçu.

Do episódio pouca gente se lembra, embora ninguém entenda porque aquela região tão antiga nunca foi convenientemente povoada. Há, atualmente, pouquíssimas testemunhas da crise, além do velho rio e algumas das árvores antigas. Contudo, mesmo sem conhecer a história, há quem jure que em certas noites de lua pode-se ouvir por ali o riso inocente e alegre de uma criança, mas isso não sabemos se é verdade.

Fonte:
Paulino Siqueira Cortes Neto. Tertúlia & Causos Lendas Sãojoseenses; coleção Autores da Terra, v. 4, 1996. Disponível em Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Versejando 90


 

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) O ontem, eterno hoje

No prefácio do livro “A história dos normandos”, do querido amigo professor Thomas Bonnici (Maringá: Edições Diálogos, UEM, 2021), o professor Leandro Rust, da Universidade de Brasília, escreve que “ler (sobre ‘o que um dia existiu') seria trazer o ontem para perto”. Fiquei com essa ideia na cabeça, pensando no extraordinário valor da memória.

O cérebro humano tem sido descrito como o que há de mais fantástico em matéria de “computador”. Graças a ele preservamos um capital preciosíssimo – todas as nossas lembranças, guardadinhas como se fosse num livro que podemos reler a qualquer momento.

No meu “livro” não há nada minimamente comparável à grandiosa história dos normandos, tão bem narrada pelo Doutor Thomas. Tem, todavia, completa, a história de minha vida.

Já nas primeiras páginas me reencontro menino na paisagem rural onde nasci, na região montanhosa do município de São Fidélis-RJ. Nossa casa ficava num vale chamado “Bela Joana”. Na frente havia o terreiro e logo acima a área cultivada – o pasto e as plantações: café, milho, feijão, mandioca etc. No fundo, a horta, o galinheiro, a ceva de porcos e o pomar cheio de fruteiras e passarinhos. Um pouco abaixo passava o rio. No outro lado do rio começava uma grande mata, que cobria toda aquela banda da serra. Até onça tinha.

Nas páginas seguintes estou eu adolescente já morando na cidade. Nitidamente me revejo jogando bola de meia na Vila Nova; nadando no rio Paraíba do Sul; levando pito de Dona Morgada no Grupo Escolar Barão de Macaúbas; recitando latim nas aulas do professor Expedito; assistindo missa do padre Augusto; torcendo pelo Esportivo contra o Tabajaras...

Mais adiante me reflagro chegando a Maringá, janeiro de 1955. Foi muito legal já no primeiro dia conhecer um dos grandes ícones da geração pioneira – Ângelo Planas. Depois, pouco a pouco, fui conhecendo todos os outros.

Vou folheando o “livro” e trazendo de volta outros ontens que tive a alegria de partilhar, especialmente como jornalista, na fascinante história deste maravilhoso lugar. Lá estou eu entrevistando o primeiro prefeito, Villanova Júnior; entrevistando o primeiro bispo, Dom Jaime, na primeira semana após sua chegada à diocese; convivendo com os primeiros caciques do jornalismo local – Aristeu Brandespim, Manoel Tavares, Ivens Lagoano Pacheco; reportando a inauguração do Grande Hotel, da Catedral, do Parque do Ingá, da Universidade. Depois, como professor, convivendo e aprendendo com dezenas de valorosos e queridíssimos colegas e participando da formação de centenas de alunos que aí estão brilhando em todos os campos.

Bendita seja a memória da gente – o riquíssimo “livro” em cujas páginas os nossos ontens sobrevivem como eternos hojes. Lá estão tantos rostos que um dia para nós sorriram, tantas mãos que de algum modo um dia nos ajudaram, tantos familiares e amigos com os quais repartimos a graça de existir. Lá estão, facilmente reprisáveis, os nossos melhores momentos. Um tesouro habitualmente chamado saudade.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 04–11–2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas) – 4 –

Acabou-se o nosso amor,
e restou-me as cicatrizes,
e aquele amargo sabor
das bocas dos infelizes!
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A nostalgia transforma
o seu semblante singelo,
em um fantasma sem forma,
para assombrar meu castelo!
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Aquele aceno no porto,
pausei em minha memória:
você foi... Deixou-me morto,
mas não matou nossa história.
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Despreza a mim com fervor;
faz-me de marionete.
Compete a ela o dissabor
e a dor que não me compete.
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Deusa de beleza infinda,
és grande sendo pequena,
e, em verdade, és mais linda
que qualquer flor de açucena!
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Dói, corrói e me consome;
fere-me... E quando anoitece,
recrudesce em mim seu nome,
e o faço de minha prece.
= = = = = = = = = = =

Dois meses de amor intenso,
e hoje esse lenço em meu rosto
enxugando o pranto imenso
que me causou o desgosto.
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Em passos lentos prossigo
nessa minha extrema estrada,
levando sempre comigo
saudades dela, e mais nada!
= = = = = = = = = = =

Engano a mim quando digo
que lhe esqueci de repente,
e não sei como consigo,
se vivo a pensar na gente!
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Esse seu sorriso lindo,
seus olhos celestiais,
deixam minha alma sorrindo
e eu, amor, lhe amando mais!
= = = = = = = = = = =

És meiga, amável, singela...
tens um sorriso incomum;
para mim és a mais bela
rosa de Cafarnaum!
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Estou de volta ao começo,
mas pareço estar no fim...
De saudade, assim, padeço,
e me esqueço mais de mim.
= = = = = = = = = = =

Eu cansei! Mas tudo passa,
e se tratando de amor:
hoje quero ser a caça;
cansei de ser caçador.
= = = = = = = = = = =

"Eu... você... as confidências..."
E aquele amor de nós dois,
tornou-se duas ausências:
você primeiro, eu depois!
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Irei lhe esquecer; eu juro!
E lhe asseguro ao dizer:
hoje não mais me aventuro
só por noites de prazer!
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Longe de ti eu padeço
em meu ranchinho de palha,
e a saudade, com apreço,
corta-me como navalha!
= = = = = = = = = = =

Longe de você padeço,
e alimentando o teor,
lembro-me mais do que esqueço
nossos momentos de amor.
= = = = = = = = = = =

Nada aplaca a dor deixada
e a tristeza renitente,
quando uma pessoa amada
vai para longe da gente!
= = = = = = = = = = =

Não sei, amor, até quando,
suportarei sua ausência,
e a solidão me abraçando
com a cruel competência!
= = = = = = = = = = =

Na solidão do meu quarto,
procurei você, em vão;
não lhe achei e fiquei farto
desta cruel solidão.
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Nosso amor de primavera,
perdeu de vez o seu trono.
Hoje ele é o que não era:
folhas caídas no outono.
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Nosso amor morre aos pouquinhos:
é roseira envenenada,
sem rosa e cheia de espinhos,
secando à beira da estrada!
= = = = = = = = = = =

Nosso amor virou romance,
depois filme no cinema;
hoje não passa de um lance
que não vale meu poema!
= = = = = = = = = = =

O meu frágil coração
não irá suportar mais
a grandiosa solidão,
que fica quando te vais.
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O meu peito é um casarão
com dimensão infinita.
Nele habita o coração
onde a solidão habita.
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Por você daria a vida
e aguentarei qualquer dor;
não deixe esvair, querida,
nossos momentos de amor!
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Quando lhe busco em meu sonho,
encontro você em meus braços,
e com amor - e risonho -
lhe encho de beijos e abraços.
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Quando meus olhos castanhos,
encontram os vossos verdes,
sinto fulgores tamanhos
que me agitam todo ao verdes!
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Saber que não esqueceu
nossa noite de ternura,
você me faz pensar que eu
sou o que você procura.
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Sempre eu a acordo beijando,
e ela me sorri feliz,
e no jardim vai tocando
a orquestra de colibris.
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Sempre que o dia amanhece,
com seu sol resplandecente,
pássaros cantam em prece
bendizendo o amor da gente.
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Sem você meu dia é triste,
tudo foge dos compassos,
mas uma esperança existe:
adormecer em seus braços.
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Seu corpo é um templo sagrado,
e da perfeição é exemplo.
Eu o contemplo ajoelhado
feito um fiel em seu templo.
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Todo dia eu me indisponho
com essa saudade sua,
que transformou o sonho
em uma noite sem lua!
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Venha, Amor, venha depressa,
vamos juntos ver a lua;
e caminharmos, sem pressa,
de mãos dadas pela rua.
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Você partiu de repente,
e eu sofri! Mas não importa.
Há muito esqueci da gente
e para mim está morta!
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Você pensa que este pranto
que eu estou chorando agora,
é de tristeza, portanto,
falo-lhe não ser, senhora.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor.

Milton Hatoum (Segredos da Marquesa)

Outro dia soube que morreu uma mulher querida. Tinha um nome meio pomposo, de marquesa, mas não era nobre nem frequentava os salões dos decadentes barões da borracha. Com ela morreu a memória de uma época.

A Marquesa era uma amazonense que sonhava com o Rio de Janeiro. Realizou o sonho e morou mais da metade de sua vida num pequeno apartamento de Copacabana. Quando você se dá conta -, o tempo já deu suas voltas e foi embora, veloz e matreiro como uma distração.

Era mãe de uma amiga minha, mas destoava de outras mães, tão convencionais e carolas, tão donas de casa e voltadas apenas para o marido, o lar, os filhos. A Marquesa convidava crianças humildes para brincar com sua filha: crianças que moravam em palafitas na beira dos igarapés próximos do nosso bairro. Esse gesto generoso irritava certas mães, que proibiam os "indiozinhos" de conviver com seus filhos, mas não podiam viver sem as mãos serviçais das mães desses mesmos curumins (1)* e cunhantãs (2)*.

Aos sábados, brincávamos e merendávamos no quintal da casa da Marquesa; às vezes nos levava para assistir a um filme no cine Guarany, o antigo teatro Alcazar. Éramos oito ou dez crianças na matinê de sábado, nossa noite de sonho e fantasia no meio da tarde. Depois da sessão, tomávamos tacacá (3)* na barraca de d. Vitória, ali na calçada do cine Odeon, uma das maravilhas de Manaus.

Ao meio-dia, quando eu chegava do Ginásio Pedro II, ia visitar minha amiga e encontrava a Marquesa na sala, lendo uma revista francesa, ouvindo Bach ou Villa-Lobos; às vezes ela entrava em casa para conversar sobre música com a professora de piano da minha irmã caçula. E entrava também na roda dos homens para falar de política. O marido dela, um homem rígido e poderoso, sumia quando ela falava. Não sei por que casaram, talvez por amor, mas os dois amantes pareciam inimigos, como no poema de Drummond.

Na primeira semana de abril de 1964, ela reuniu os amigos da filha e disse que o país estava nas "garras dos bárbaros". Eu tinha doze anos e não entendi; mas memorizei essas palavras: nas garras dos bárbaros. Aos poucos, ela percebeu que o marido bajulava os milicos, recebia políticos servis e interesseiros, raposas que passaram a frequentar a sala e o quintal de sua casa. Quando eles chegavam com garras afiadas e inchados de empáfia, ela saía ou se trancava no quarto para não ver essa gente.

Foi nessa época que começou a beber, e, quando bebia muito, era capaz de desafiar até o diabo, com ou sem farda. Por desamor ou indiferença - ou por algo mais -, ela se viu sozinha no casamento e decidiu viajar com a filha para o Rio. Calhou de conversarmos a sós em várias ocasiões; em algum dia de 1967 lhe disse que eu também queria partir.

E então, na despedida, me revelou que era amante de um homem que eu conhecia: queria viver com ele em Copacabana. Esse era o algo mais. Ou alguém a mais na vida da Marquesa: uma história de amor, movida por encontros esporádicos, que duraram mais de duas décadas.

Ela se confinou em Copacabana e eu dei voltas pelo Brasil, sempre pensando em visitá-la, curioso por saber o nome do amante que, segundo a Marquesa, eu conhecia. Até simulava uma conversa com ela antes desse encontro prometido e tantas vezes adiado.

Enfim, visitei-a em 1978, quando lancei no Rio um livrinho de poesia. Almocei em seu apartamento de Copacabana, depois andamos até o Forte, onde conversamos sobre sua filha, minha amiga de infância, que estava morando em Londres.

"Ela fugiu das garras dos bárbaros?"

A Marquesa deu uma risada:

"E das garras da mãe."

No fim da tarde, revelou que seu amante - o homem que eu conhecia – era um dos meus tios solteiros.

A revelação me deixou mudo por um momento. Mas não resisti e perguntei qual deles.

"O galã sonhador", disse, sem hesitar. "De vez em quando a gente namora aqui no Rio. Não piso mais em Manaus."

Revelou outras coisas de sua vida, e contou detalhes da história amorosa com o galã sonhador. Nunca os imaginei juntos, nem desconfiei do caso entre os dois. Foi uma história de amor clandestina, que resistiu ao mau olhado da província e, depois, à velhice. No fim do nosso encontro, disse que eu podia aproveitar tudo o que ela havia me contado.

"Aproveitar?"

"Se um dia tu escreveres um romance..."

Mais de vinte anos depois do nosso encontro no Forte de Copacabana, me lembrei das histórias da Marquesa e, de fato, fiz de alguns lances de sua vida uma ficção.

Quando leu o romance, me telefonou para dizer que eu havia exagerado e inventado tanta coisa que mal se reconheceu na personagem da mulher adúltera.

"Ainda bem", eu disse. "Se tivesse sido fiel à tua história, qual teria sido a reação da tua filha e do teu ex-marido?"

"Minha filha teria adorado, porque ela sabe de tudo. E meu ex-marido já virou pó. Não sabias? Morreu de infarto. Deve estar no inferno, limpando as botas dos amigos dele."

Ia lamentar a morte do pai de minha amiga, mas decidi não dizer nada. Depois de uns segundos de silêncio, a Marquesa completou: "Além disso, ele nunca gostou de literatura. Por que iria ler o teu livro?".
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* Vocabulário:
(1) CURUMINS = garotos, rapazinhos, meninos de pouca idade.
(2) CUNHANTÃS = moças, meninas.
(3) TACACÁ = sendo de origem indígena, é uma comida típica da região amazônica. O caldo amarelado à base de mandioca, chamado de tucupi, preparado com goma, camarão e jambu é servido bem quente em cuias.


Fonte:
Revista EntreLivros n. 31. Ed. Duetto, nov. 2007.

Minha Estante de Livros (“Um solitário à espreita”, de Milton Hatoum)

A literatura, os afetos e a realidade examinados com lirismo e inteligência por um dos maiores ficcionistas brasileiros da atualidade. O amazonense Milton Hatoum é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, traduzido no exterior, reconhecido por um vasto número de leitores e admirado pela melhor crítica.

Além de ficcionista, Hatoum também é cronista de mão cheia, espraiando seu texto leve e inteligente por diversas publicações. É o caso das crônicas selecionadas para este volume, noventa e seis amostras do texto sensível e arguto do autor de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e outros títulos.

Dividido em quatro seções que dão conta de temas como língua e literatura, a realidade, a memória e os afetos, além de pequenas fabulações, Um solitário à espreita traz para a forma da crônica, este gênero tradicionalmente praticado por alguns dos melhores autores brasileiros, a visão de mundo e as opiniões de Milton Hatoum. O futuro da literatura, a dureza dos anos vividos sob o regime militar, a realidade cambiante das nossas grandes cidades - tudo isso vem embalado numa prosa tão gentil quanto especulativa, tão sagaz quanto calorosa. Um passeio delicioso, em suma.

Na coletânea Um solitário à espreita o autor sempre relaciona  algumas  crônicas  com sua  infância  e  adolescência  em  meio  ao  cenário  manauara, Manaus  tem  uma  grande importância para o autor, pois ele faz questão de relata-la de maneira que se fixe bem para seu leitor  os valores  culturais  e  arquitetônicos, a modificação  do  espaço  geográfico,  com  o abandono  e destruição  do cenário histórico o  inquieta, talvez  por  isso percebe-se  nestas crônicas,a tamanha importância de retomar o passado, para deixar registrado que Manaus foi algo  deslumbrante  e  que  hoje,  assim  como  toda  grande  metrópole,  teve  e  vem  sendo modificada drasticamente perdendo um pouco sua identidade ou buscando uma.

Em Segredos da Marquesa, por exemplo, podemos perceber algumas palavras típicas da região e que provavelmente irá despertar a curiosidade do leitor e que retrata a Manaus antiga, rica, porém contrastava com a pobreza de seus moradores. o autor retoma a infância para falar de uma mulher, e busca palavras da região, assim como comidas típicas, a riqueza citando cinemas e teatros. O leitor, não sendo da região amazônica, nunca irá saber o que é curumins e cunhantãs, tacacá, a grandeza que era o cine Guarany e Odeon, a menos que se busque na história, na época da borracha, o qual significante ela foi para a região. Utilizou-se do tema de adultério do qual a marquesa era o centro da crônica, para narrar como era a vida urbana em Manaus, o seu despontar na época da borracha, o que se refletia nos cinemas e teatros.

Outro ponto principal, é que a crônica além de registrar fatos do cotidiano, ela fixa época, e para Hatoum a fixação na maioria das vezes vem acompanhada de ficção, na qual deixa para que o leitor essa escolha (realidade ou ficção) dos fatos que registram estes acontecimentos socioculturais da época, já que os eventos narrados estão situados no contexto histórico, em determinados lugares, espaço e tempo, hora psicológico, hora cronológico.

Para Hatoum ao falar de sua mãe, o ser mais afetuoso que maioria de nós a cultuamos, para ele não é diferente, mais a coloca de forma também de lembrança, como em um retrato, em um telefonema, indo ao dentista, a feira, coisas simples que a torna admirável e por quem se criou afeto.

No livro ele demonstra outros afetos, como por exemplo, pela cidade de Manaus, ao lembrar-se da sua infância e vindas depois de alguns anos fora, pelos familiares e amigos, por seu papagaio de estimação, a vizinhos, a professores, aos lugares que viveu, enfim, realmente Hatoum é um ser afetuoso e que não esconde isso, pelo contrário, o expõe de maneira simples e bem deliciosa de se ler, seria a forma de retribuir seu afeto ao público.

Um Solitário à Espreita é um livro desafiador, devido sua forma híbrida: meio crônica, meio conto, meio tábua de memória, com a reunião do que de melhor Hatoum escreveu em revistas, jornais e sítios literários pelo Brasil e mundo afora nos últimos anos. O título do livro por si só, Um Solitário à Espreita, desafia-nos a pensar no ato de um sujeito que sonda o cotidiano, trazendo para o lado do autor, seria ele como o criador, o solitário, com seus pensamentos que é terra de ninguém somente dele, transpondo para a escrita o que vê, as pessoas, a natureza, a vida. E ao mesmo tempo o leitor sem a solidão, pois diante de um livro ninguém é solitário, mesmo que para isso se esteja em silêncio, pois na verdade, é o silêncio que nos espreita, fazendo-nos transportar, pensar, concordar ou discordar, viver o que está ali registrado.

Algo bem interessante do livro é a metalinguagem que permeia a maioria dos textos. O livro Um Solitário à Espreita é um espelho, pode servir como uma espécie de modelo para quem almeja a escrita, como belo exemplo de roteiro podemos citar, as crônicas “Um Inseto Sentimental” e “Celebridades, Personagens e Bananas”. Sua humildade e maturidade faz com que Hatoum se importe em transparecer, na sua escrita, essa “cartilha” o passo-a-passo aos que se interessam em aprender a dominar a escrita. Somado a isso ele deixa no rastro de sua escrita um rol de autores, livros e personagens: J. L. Borges, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Max Martins, Charles Baudelaire, Nicolas Behr, João Cabral de Melo Neto, Juan Carlo Onetti, Gustave Flaubert, entre outros.

Não é a toa, que Hatoum é considerado um dos principais ficcionistas brasileiros da atualidade, nada pretensioso ele mescla, ficção e realidade, leituras e autores marcantes, bem como seus personagens inesquecíveis. Ao falar de política, trata com ironia e critica; ao falar da pobreza e miséria, aflora sua revolta e humanismo; ao relembrar suas viagens, é como se retomasse as aventuras e experiências que o fizeram melhorar; também fala do exílio e migração assuntos que percebemos a solidariedade e o lado sensível para com seus amigos e desconhecidos.

Porém o que mais chama atenção no livro é o fato de que pode ser lido como uma coletânea de textos de experiências que se fez fixadora na memória de Hatoum. Manaus tem uma grande oportunidade de fixação de seus valores culturais e arquitetônicos, a destruição do passado histórico percebe-se nas páginas, incomoda sobremaneira o cronista. Com narrativas curtas, também característica da crônica, é como se o que está escrito houvesse a finalidade fixar-se na mente e no imaginário de quem a ler, de maneira rápida, porém duradoura.

Embora Manaus (e os arredores do Rio Negro) funcione como uma espécie de eco simbólico da infância do autor, Belém também tem seus momentos de citação, em quatro crônicas do livro. Enfim, Um Solitário à Espreita é uma obra que nos toca e nos faz lembrar e ter um olhar diferente diante de coisas que outrora eram despercebidas, como a simplicidade do vendedor de frutas, um inseto, uma conversa, a ida ao médico, a chuva ou um dia de sol, tudo que se espreitar, que é o observar atentamente, pode ter a dimensão que se quer e se tornar inesquecível ao ser registrado através da escrita.

Fontes:
Companhia das Letras.
– Trechos do artigo de Manoela da Silva Rodrigues. Análise sobre as crônicas de Milton Hatoum: Um solitário à espreita. Revista Decifrar. vol. 04, n. 07. Manaus/AM: Universidade Federal do Amazonas – UFAM, Janl/Jun-2016.

domingo, 28 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 19

 


Aparecido Raimundo de Souza (Xeque-Mate)


O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE TERREMOTO reside possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampa cinza e, no meio, um buraquinho redondo, com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém à cata do morador (que nunca ninguém viu, nem mais gordo, nem mais magro, nem mesmo Terremoto), existe abaixo do olho mágico uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente a sua espera do lado de fora.

Sempre que surge uma pessoa no corredor, Terremoto logo fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo mas, simplesmente, porque o alarme sonoro do subir e descer do elevador disparava um“plim” e, corroborando com a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha porta da engenhoca começam a ranger desesperadamente.

Nessas ocasiões, Terremoto aproveita para espiar pelo olho mágico e ver quem é a visita que anda em busca do vizinho fantasma. Curiosidade de quem já trabalhou muito na vida, se aposentou com um bom salário por mês e não tem, realmente, o que fazer, além de dormir e não fazer nada. Contudo, um excelente exercício para matar o tempo ocioso, vez que se depara com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis.

Dias atrás, uma moça com os cabelos vermelhos elegantemente vestida, procurava pela campainha. Como todos os demais, ela não viu diante de si a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a futucar aqui e ali, na esperança de enfiar um dos dedos no orifício da tampa cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada. Talvez fossem as unhas compridas ou os anéis que atrapalhassem. Quem sabe nem uma coisa nem outra. Em seguida, ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de, a qualquer custo, fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Um faniquito repentino a fez sair furiosa, cuspindo marimbondos.

Não foi diferente com um cidadão baixinho, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. Possivelmente cobrador. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter o nariz no olho mágico, objetivando ver se enxergava alguma coisa no interior do apartamento. Também teve problemas com os fios. Quase certo que pelo ar desagradável que se fechou em seu rosto, tomou uma tremenda descarga. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando, deu meia volta e desapareceu.

Terremoto chegou à conclusão de que as pessoas, de um modo geral, são levadas e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém para por alguns instantes com a intenção de analisar o que está posto e visível diante do óbvio. Pensar numa solução simples que desencadeie algum resultado prático. Às vezes, uma insignificância de solução clara está logo ali, atropelando, mas a pressa e o nervosismo juntos, de mãos dadas com a velha burrice botam tudo a perder.

O cômico na história do vizinho extravagante se resumia num só objetivo. Quem quer que pintasse no pedaço, se via logo às voltas com os fios da campainha. Talvez, no fundo, fosse essa a verdadeira intenção do engraçadinho. Dar choque nos chatos que não desistiam de vir até sua residência perturbar o sossego. Com certeza, o canastrão deveria rir um bocado e se divertir às expensas dos apalermados. De qualquer forma, deixava claro que não queria, decididamente, ser incomodado por ninguém. Pairava no ar uma dúvida cruel. E essa dúvida deixava Terremoto com a pulga atrás da orelha. Por que o cidadão divulgava aquele endereço, se não queria ser encontrado nele? E se espalhava com qual objetivo? Fazer pouco caso? Tirar sarro? Zombar dos seus semelhantes? Mais cômodo seria indicar um local público, um shopping, ou marcar um barzinho.

Perto dali havia um café expresso espetacular, com garçonetes lindas de serem vistas. Tudo bem que as pessoas devam preservar a sua individualidade, resguardar a sua privacidade com unhas e dentes. Com fios desencapados, certamente, o cúmulo do absurdo. As duas pernas de fios soltas da suposta campainha, de certa forma, instigavam a atenção dos que acampavam diante da entrada, fossem quais fossem os motivos que os levassem a estar ali. Pelo sim, pelo não, os que se aventuravam, esqueciam de atentar para um detalhe insignificante, qual seja, fazer soar o botãozinho politicamente correto, e à vista de um cego, logo abaixo do tal olho mágico.

Terremoto percebeu, nessas olhadelas, que cada ser humano reagia de uma maneira diferente. Uns xingavam, outros faziam caretas, alguns chutavam as paredes. A maioria olhava para os lados, desconfiada. Teve um visitante que se deu ao trabalho de encarar o olho mágico de Terremoto. Não se sabe com qual finalidade. Levou um baita susto. Ficou evidente que se descobrira com a boca na botija. As mulheres eram as mais interessantes de serem reparadas: puxavam a calcinha, penteavam os cabelos, retocavam a maquiagem do rosto, refaziam o batom dos lábios.

Os homens, como sempre, menos exigentes com a aparência, limitavam-se a corrigir o nó da gravata, dar uma ajeitadinha nos óculos, e uma batidinha discreta no paletó, para afastar algum cisco por ventura deixado como vento. Pensavam em tudo, esses ilustres visitantes, mas esqueciam do mais trivial: Premir com o indicador o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico ou, por outra, de bater suavemente, com os nós dos dedos, produzindo um leve toc, toc, toc, no sisudo e silencioso portal do esquisito morador.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. SP: Ed. Sucesso, 2009.
Livro enviado pelo autor.

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 1

A BUSCA


Procuro respostas
Entre o ser e o existir.
Olho em volta
E só percebo revolta
Misturada com prazer,
Dentro desse vasto mundo vazio
Do haver e do sentir.
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ALMA DE MULHER

Sou feita de risos e sorrisos
Beijos, olhares, sensações e emoções.
Sou feita de aço que quebra
E se dilui de uma lágrima à queda,
Sou feita de sonhos e abraços,
Sou feita de amor...
Mas de que adianta sonhar?
Se as noites são vazias...
De que adianta amar?
Se o coração é frio...
De que adianta sorrir?
Se são lágrimas
Que insistem em cair...
De que adianta querer?...
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A PRIMEIRA VEZ

(Poema para meu filho Enzo)

Seus olhinhos curiosos
Atento a tudo e todos.
Procurando...
Você sempre foi assim...
De poucas palavras, porém
Observador, sagaz...
O primeiro sorriso que me deu
Jamais esquecerei.
Naquele momento senti nossa ligação
Senti que você sabia...
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CONTRASTES

Um quarto a céu aberto...
Na escuridão sinto
Estrelas a me contemplar.
Um campo florido...
Onde rostos espreitam
Por entre vãos.
Um coração triste, angustiado.,
Com nós desfeitos...
Saudade que não existe mais.
Um silêncio gritando no peito.,
Agitação tranquila, serena...
Um vazio bom de sentir.
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COTIDIANO

Sempre haverá um novo amanhecer,
Por mais difícil que possa parecer,
Sempre haverá um olhar e
Um sentimento
Impossíveis de controlar.
Sempre haverá um medo,
Uma incerteza,
Uma lágrima...
Algo novo a nos amedrontar.
Sempre haverá novos caminhos,
Amores não correspondidos.
Passos inseguros,
Incertas certezas...
Sempre haverá,
Um modo de amar.
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DECLARAÇÃO AO MEU AMOR
EDSON ROSSATTO


Mesmo que a lua deixe
De iluminar as noites,
Mesmo que as estrelas
Deixem de brilhar
E se o chão um dia me faltar...
Nunca deixarei de te amar.
Você é o arco-íris
Da minha nuvem,
O nó desfeito em meu peito
E quando querem minha paz tirar
É você, meu amor,
Quem está sempre ao meu lado
A me amparar.
Quando a velhice chegar
Nossa cumplicidade sempre existirá
E nossa luminosidade interior
Nunca se apagará.
Se o vento quiser passar
E nossas lembranças levar
Nunca esqueça...
É você...
Quem sempre irei amar.
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DEVANEIOS

Procuro respostas
Para perguntas
Que ainda nem fiz.
Me sinto só
No meio da multidão.
Sentimento estranho
Mãos suadas
Coração acelerado
Alma vazia de impurezas...
A saudade se mistura
Com as lembranças
De momentos...
Sorrio...
E a imaginação flui...
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DIVAGAÇÕES

Sou pura transparência
Como em um oceano
De emoções.
Sou calmaria agitada,
Sou serena, sou leve,
Meiga em meio a explosões.
Sou sentimento,
Sou palavras,
Sou nada...
Apenas mais alguém perdida em divagações...
Procurando soluções...
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SÃO PAULO - CARAS, CHEIROS E SABORES

O barulho que me acalma, é o mesmo que me agita.
Quando cai a noite, minha alma se aquieta,    
Enquanto a movimentada e iluminada cidade se excita    
Cheia de charme, com sua acelerada
E rica vida, que a tantos irrita.

Uma menina acolhedora, diversificada e cultural.
E mesmo quando fica cinzenta e nublada
Não perde sua peculiaridade natural.
Com tantos problemas...
Mas sempre mantendo o bom humor e alto astral.

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Contos e Lendas do Mundo (O marido invisível)

* Nota:
O conto de fadas literário surgiu na Europa da Idade Moderna como tradição oral levada ao público infantil. As histórias eram contadas de um adulto para uma criança, registrando lições, experiências, em que geralmente os heróis superavam situações desfavoráveis através de algum segredo mágico. Por se tratar de narrações fictícias, as ações dos contos de fadas desenrolam-se em países imaginários, povoados por objetos e personagens mágicos e estranhos, onde o narrador e o seu público não acreditam na realidade da história.

A grande aceitação do conto de fadas teve, pelo menos, duas consequências importantes sobre a evolução da literatura infantil. Em primeiro lugar, impôs o predomínio do lúdico sobre o instrutivo. Em segundo, contribuiu para a definição de um gênero especificamente voltado para as crianças.

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Era uma vez um rei e uma rainha, como tantos outros, que tiveram três filhas, todas lindas, mas a mais bela era a caçula, chamada Anima.

Um dia, as três irmãs brincavam no campo, e Anima avistou um arbusto com lindas flores. Como queria levá-lo para casa e plantá-lo no próprio jardim, ela colheu as flores puxando os galhos pela raiz, uma a uma. Finalmente, o arbusto cedeu e revelou uma escada debaixo dele que descia fundo na terra. Sendo corajosa e muito curiosa, sem avisar as irmãs, Anima desceu as escadas e percorreu um caminho muito longo, até que, por fim, chegou a céu aberto novamente, em uma terra que nunca vira antes, e dali avistou um palácio magnífico bem à frente, não muito distante de onde estava.

Anima correu até lá e, assim que chegou, bateu a aldrava, e a porta se abriu sozinha, sem que ninguém estivesse ali. Quando entrou, viu uma decoração luxuosa, com paredes de mármore e adornos valiosos, e, ao dar mais um passo, uma música adorável começou a tocar de repente e passou a acompanhá-la aonde quer que fosse. Por fim, Anima chegou a uma sala com sofás aconchegantes e, cansada de explorar, logo se jogou em um deles.

Mal havia se deitado, quando uma mesa, deslizando sobre rodas, surgiu em sua direção, sem que ninguém a empurrasse, e sobre ela havia deliciosas frutas, bolos e bebidas frescas de todos os tipos. Anima comeu e bebeu até se saciar, depois caiu no sono e só acordou ao anoitecer. Então, surgiram dois grandes castiçais, cada um com três velas acesas, que pairaram no ar para, em seguida, pousar sobre as mesas perto de Anima, iluminando o ambiente para ela.

– Nossa, preciso voltar para a casa dos meus pais. Como farei isso? Como voltarei? – perguntou Anima a si mesma, muito preocupada.

– Fique comigo, seja minha noiva e terá tudo o que seu coração desejar – falou uma voz suave perto dela.

– Mas quem é você? Quem é você? Aproxime-se para que eu possa vê-lo! – gritou Anima,
tremendo de medo.

– Não, não, é proibido. Nunca poderá ver meu rosto ou teremos de nos separar, pois minha mãe, a rainha, não quer que eu me case.

Tão doce era aquela voz e tão triste Anima ficou, que consentiu com o casamento, e eles viviam felizes juntos, embora o marido nunca aparecesse antes de escurecer para que ela não pudesse vê-lo.

Mas, depois de um tempo, Anima ficou aborrecida, mesmo vivendo com tanto esplendor e sentindo-se feliz, pois sentia saudade de sua família.

– Por favor, posso ir para casa para ver meu pai, minha mãe e minhas queridas irmãs? – perguntou Anima ao marido.

– Não, não, minha pequena – respondeu ele. – Se vir sua família outra vez, o mal cairá sobre nós e teremos de nos separar.

Mas ela continuou suplicando ao marido que a deixasse voltar até sua terra para visitar a família ou que, pelo menos, deixasse que viessem até lá para vê-la. Finalmente, ele consentiu e enviou uma mensagem convidando o pai, a mãe e as irmãs de Anima para passar alguns dias com ela, intervalo de tempo em que ele teria de se ausentar.

O rei, a rainha e as duas irmãs foram até lá e ficaram maravilhados com o esplendor da nova casa de Anima e, principalmente, muito surpresos ao ver que eram servidos por mãos invisíveis, que faziam tudo o que desejassem. Mas logo as irmãs ficaram curiosas e com ciúmes, não podiam imaginar sobre o misterioso marido de Anima, além de invejá-la por ter um lar tão maravilhoso.

– Mas, Anima, como concordou em se casar com um homem sem nunca tê-lo visto antes? Deve haver alguma razão para ele nunca se mostrar, talvez seja deformado ou, então, em um monstro foi transformado. – disse uma das irmãs.

– Ele não é um monstro. Disso tenho certeza. Precisam ver como é gentil comigo. Não me importa se não é tão bonito quanto imagino. – disse Anima depois de rir.

Mesmo assim, as irmãs insistiam que tinha algo errado, já que havia um segredo, e, finalmente, conseguiram fazer com que sua mãe, a rainha, conversasse com Anima antes de partirem.

– Anima, acho justo e importante saber quem é o seu esposo. Espere até que ele durma, acenda uma lamparina e veja com seus próprios olhos. – disse a mãe.

Depois, todos se despediram e partiram. Naquela mesma noite, o marido invisível retornou, mas Anima já havia providenciado uma lamparina a óleo e deixado uma brasa pronta para acendê-la.

Assim que percebeu que o marido dormia a seu lado, ela acendeu o pavio para espiá-lo. Anima ficou encantada ao ver que ele era muito bonito, além de ter um corpo robusto e atraente. Mas, enquanto o admirava, sua mão tremeu de emoção e três gotas de óleo escorreram da lamparina que segurava e pingaram no rosto dele. Ao acordar e vê-la, o marido logo soube que ela quebrara a promessa.

– Oh, Anima! Oh, Anima! Por que você fez isso? Aqui nos separamos até que convença minha mãe, a rainha, a permitir que me veja de novo.

Depois disso, um estrondo de trovão ressoou, a lamparina se apagou e Anima caiu no chão, desfalecida. Ao acordar, o palácio havia sumido, e ela estava em um pântano muito sombrio. Anima caminhou sem parar até chegar a uma casa na beira da estrada onde uma velhinha a recebeu e lhe ofereceu algo para comer e beber, depois perguntou como ela tinha ido parar lá. Então, Anima lhe contou tudo o que havia acontecido.

– Casou com meu sobrinho, filho de minha irmã, e temo que ela nunca a perdoe. Mas seja corajosa, vai até lá e reivindica o seu marido. A rainha terá de abrir mão dele se você conseguir fazer tudo o que ela exigir de você. Pega este galho. Se minha irmã lhe pedir o que acredito que vá pedir, bate no chão com ele três vezes e receberá ajuda. – orientou a senhora.

Depois, ela indicou à Anima o caminho a seguir até encontrar a mãe do marido e, como era muito distante, deu-lhe instruções de onde poderia encontrar uma outra irmã que a ajudaria também.

Então, no meio do caminho, Anima parou em outra casa onde havia outra velhinha, a quem ela contou toda a história, e aquela senhora, irmã da rainha, entregou-lhe uma pena de corvo e explicou como usá-la.

Finalmente, Anima chegou ao palácio da rainha, mãe do marido invisível, e exigiu vê-lo assim que se apresentou diante dela.

– Oh, relés mortal! – censurou a rainha. – Como ousaste casar com meu filho?

– Foi escolha dele. – respondeu Anima – E agora sou sua esposa. Decerto vai me deixar vê-lo de novo.

– Bem, – disse a rainha – se conseguir fazer o que vou exigir de você, então verá meu filho novamente. Primeiro, vá até aquele celeiro onde os idiotas dos meus criados juntaram todo o trigo, a aveia e o arroz em um único monte enorme. Se até o anoitecer conseguir separar todos os grãos em três montes, talvez eu possa atender seu pedido.

Anima foi levada até o grande celeiro da rainha e lá estava o enorme monte de grãos, todos misturados, então a deixaram ali sozinha e trancaram a porta. Ela se lembrou do galho que a irmã da rainha lhe dera e bateu com ele no chão por três vezes. Milhares de formigas surgiram do solo e começaram a trabalhar no monte de grãos, algumas delas carregavam o trigo para um canto, outras carregavam a aveia para outro, e o restante carregava os grãos de arroz para um terceiro canto.

Ao cair da noite, todos os grãos estavam separados e, quando a rainha foi até lá para liberar Anima, viu que a tarefa fora cumprida.

– Você teve ajuda! – esbravejou ela. – Veremos amanhã se conseguirá fazer algo sozinha.

No dia seguinte, a rainha a levou até um grande sótão no topo do palácio, abarrotado de penas de gansos, patos e cisnes, e do armário pegou doze colchões.

– Vês esses colchões? Até o final do dia deverás encher quatro deles com penas de cisne, quatro com penas de pato e o restante com penas de gansos. Faça isso e, então, veremos.

Deixou Anima lá e trancou a porta atrás. Anima se lembrou de que a outra irmã da rainha lhe dera uma pena de corvo, então a pegou e a agitou três vezes no ar. Sem demora, pássaros e mais pássaros entraram pelas janelas, cada um deles pegava um dos diferentes tipos de penas e as colocava nos colchões, assim, muito antes de anoitecer, os doze colchões estavam cheios como a rainha tinha ordenado.

Mais uma vez, ao cair da noite, a rainha foi até lá e viu que a segunda tarefa estava cumprida.

– De novo recebeu ajuda! Amanhã, terá uma tarefa que só você poderá realizar. – disse ela.

No dia seguinte, a rainha a convocou novamente e lhe entregou um pequeno frasco e uma
carta.

– Leva isso para minha irmã, a rainha do Submundo, e traz de volta em segurança o que ela lhe entregar. Então, talvez eu a deixe ver meu filho.

– Como posso encontrá-la? – perguntou Anima.

– Deve descobrir sozinha. – respondeu a rainha e se foi.

A pobre Anima não sabia para onde ir, mas, enquanto caminhava, a voz de alguém invisível sussurrou:

– Leve uma moeda de cobre e um pão contigo. Desça aquele enorme desfiladeiro até chegar a um rio profundo. Lá verá um homem velho transportando pessoas para o outro lado do rio. Põe a moeda entre os dentes, deixa que o velho a pegue e ele a levará para o outro lado, mas não lhe dirija a palavra. Então, do outro lado, encontrará uma caverna escura com um cão selvagem na entrada. Dê-lhe o pão, e ele a deixará passar, e logo você encontrará a rainha do Submundo. Pegue o que ela lhe entregar, mas tome cuidado para não comer nada nem se sentar enquanto estiver dentro da caverna.

Ela reconheceu a doce voz do marido e fez tudo o que ele lhe dissera até chegar à rainha do Submundo, que logo leu a carta que Anima lhe entregou. Então, a rainha lhe ofereceu bolo e vinho, mas ela recusou, balançando a cabeça, sem dizer nada. Depois, entregou-lhe um porta-joias curioso, de metal forjado.

– Peço-lhe que leve isso para minha irmã, mas cuidado para não o abrir durante o percurso ou um mal poderá lhe acontecer – disse a rainha do Submundo, depois a dispensou.

Anima começou a jornada de volta, passou pelo grande cão e cruzou o rio sombrio. Quando estava atravessando a floresta, não conseguiu resistir à tentação de abrir o porta-joias e, ao fazer isso, saltaram dele várias bonequinhas, que começaram a dançar ao redor de Anima e a divertiram muito com suas peraltices.

Como logo iria anoitecer, ela quis colocá-las de volta no porta-joias, mas as bonecas fugiram e se esconderam atrás das árvores, então logo percebeu que não conseguiria pegá-las de novo. Anima se sentou no chão e chorou e chorou e chorou, mas finalmente ouviu a voz do marido de novo.

– Viu só o que a curiosidade mais uma vez lhe custou? Não poderá levar o porta-joias para minha mãe do jeito que o recebeu de minha tia, a rainha do Submundo. Por isso, não nos veremos de novo.

Ao ouvir aquilo, Anima começou a chorar e se lamentar de forma tão comovente que ele teve pena dela.

– Vê o galho de ouro naquela árvore ali? Arranca-o e bate no chão com ele três vezes e vê o que vai acontecer. – disse a voz do marido.

Anima fez o que ele disse e logo as bonequinhas voltaram correndo atrás das árvores e pularam de livre vontade para dentro do porta-joias; Anima, sem demora, fechou-o e levou-o para a rainha.

A rainha abriu a caixa e, ao ver todas as bonequinhas dentro dela, riu bem alto.

– Sei quem te ajudou. Não há mais nada que eu possa fazer. Suponho que deve mesmo ficar com meu filho! – disse ela.

Assim que a rainha disse aquilo, o marido de Anima apareceu, levou-a de volta ao palácio, e eles viveram felizes para sempre.

J. Jacobs. Contos de fadas europeus. Principius, 2021.

sábado, 27 de novembro de 2021

Adega de Versos 59: Luiz Antonio Cardoso (Taubaté/SP)

 

Rita Marciano Mourão (Quarto mandamento)

Confesso que sou meio nostálgica. Vivo a escarafunchar o baú das minhas lembranças, sem contudo, me deixar prender ao passado. A vida deve ser vivida cada minuto, sem pressa. Procuro vivê-la assim, com a consciência apegada aos menores acontecimentos, para que mais tarde eu não venha sentir na pele os espinhos do remorso.

Hoje, bem no fundo dos meus guardados, encontrei uma mulher que marcou para sempre meu jeito de viver. Nunca mais deixo para depois o que posso fazer agora. O depois é uma palavra que apazigua, mas pode se transformar na metáfora de um nunca mais.

Era essa mulher uma pessoa iluminada! Mãe extremosa, forte, exemplar. Seu nome era Matilde, mas, naquele sertão mineiro em que vivia, todos a conheciam como Dona Tide.

Passara a vida ali, cuidando do sítio e dos quatro filhos que lhe deixara o marido.

“Dona Tide é uma mulherzinha forte” – diziam as pessoas que presenciavam a sua luta e conheciam a sua história. “Qualquer outra se queixaria, mas dona Tide, não. É conformada, resistente. Uma árvore boa que não se curva aos vendavais”. Tinha um olhar distante, procurando (quem sabe) entender o passado e conformar-se com o presente. Acreditava firme que, se não houvesse curvas no caminho, não existiriam surpresas boas.

Quando seu homem se foi embora com a loira do povoado, ela ignorou o fato e nunca falou a ninguém sobre seus desencantos, suas preocupações. E não se acomodou diante da dura lida. Cuidava sozinha dos afazeres do sítio, das poucas vacas leiteiras e, ainda, fazia doces, biscoitinhos de nata e muitas outras guloseimas que vendia na venda do seu Justino.

“Tenho que trabalhar dobrado e dar aos meus filhos um pouco mais de estudo. Eles serão melhores do que eu” – dizia para todos. Como se no mundo pudesse haver alguém melhor do que dona Tide. Mas ela se referia ao duro trabalho que lhe pesava o corpo, às duras frustrações que lhe arranhavam a alma, guardando só para si o cansaço e as dores que a ingratidão provocara.

Os anos foram se passando e tudo foi fugindo do seu controle, do seu alcance. E uma lembrança doce foi ocupando o velho espaço de um tempo de sonhos, semeaduras. As imagens dos filhos pequenos, porém, continuavam vivas, tagarelando dentro dela. Eles haviam crescido e foram para a “cidade grande” aperfeiçoar os estudos, melhorar a vida. O último a se despedir foi Cláudio, o filho caçula. Ah, como doeu em dona Tide essa despedida! Ela sabia que acabava de perder o último carinho que lhe restara, o último companheiro para o café da manhã e para as conversas, à noite, ao pé do fogão à lenha.

Mais uma vez, dona Tide engoliu seco aquela dor e guardou-a só para si. Resignada, continuou dizendo que eram separações necessárias. A vida exigia isso.

No começo, em datas especiais, os filhos apareciam. Então era aquela festa. Nessas ocasiões o trabalho era redobrado. Fazia doces e mais doces, punha flores na jarra e ajeitava até a própria aparência. Tinha que se mostrar elegante, para as noras, para os filhos e netos. O cansaço? A chegada dos seus “meninos”, a alegria da família reunida vencia tudo. Depois, as visitas foram ficando raras, as saudades mais intensas. Dentro de dona Tide chegava a doer de tanta saudade, mas só ela sabia da existência dessa dor. Os vizinhos diziam: “Ingratos, será que se esqueceram da mãe? Qualquer dia ela morre e eles nem vão ficar sabendo”. E dona Tide, de cabeça erguida, nos lábios um sorriso que só ela sabia o quanto lhe custava, sempre encontrava meios para justificar a ausência dos filhos. “Eles ainda me amam, eu sei disso. Filhos são como pombos-correios. Vão, às vezes demoram, mas sempre voltam trazendo um ramo verde para nos ofertar”.

Naquela tarde de dezembro, dona Tide não cabia em si de tanta felicidade. Depois de muito tempo sem dar notícias, os filhos mandaram-lhe dizer que viriam passar o Natal com ela. Logo que recebeu o telegrama, dona Tide trabalhou, trabalhou que até a semana lhe pareceu mais curta. Encheu os potes de doces, biscoitinhos de nata e de tudo o que pudesse agradar o apetite dos seus “meninos”. Caprichou nos arranjos da casa e até a talha em que mantinha a água sempre fresquinha recebera cuidados especiais. Era uma velha talha impregnada de passado, mas ficara bem mais bonita depois daquele banho com sapólio. Embora sentisse que o trabalho mexera com seus oitenta e cinco anos, dona Tide estava feliz, realizada. “Tudo preparado, no capricho, agora é só esperar” – disse-me quando fui visitá-la.

Tomou um banho reconfortante, vestiu uma roupa florida e foi sentar-se na frente da antiga casinha de pau-a-pique. Dona Tide estava pronta para abraçar os filhos que não tardariam. Tudo nela era só alegria. O sorriso solto, as vestes coloridas, o diadema dourado sobre os cabelos grisalhos. Da cozinha, o cheiro das carnes e dos quitutes se espalhava pelos arredores do enorme terreiro.

Sentada e reflexiva, ela contemplava o por-do-sol mais bonito que já vira. Era um por-do-sol diferente, com cores de esperança.

Com os olhos fixos no horizonte e a respiração meio ofegante, dona Tide esperava paciente, cansada, sonolenta. Lá longe, na curva da estrada, uma tira de poeira vermelha anunciou a surpresa há muito desejada. As buzinas dos carros repicavam e um burburinho confuso foi se apossando de todos os sentidos de dona Tide.

Seus olhos pesados, ainda vislumbraram os carros e os acenos dos filhos, das noras, dos netos. Aos poucos, as imagens foram se desintegrando das suas retinas e foram se transformando em um sonho profundo, sonho bom, animado pela tagarelice dos seus meninos.

Quando chamaram por ela, dona Tide não quis mais acordar. Teve medo de sair daquele sonho grande, daquela felicidade sublime e perder de novo os filhos queridos.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XX

A nossa felicidade
não está só no prazer,
tem prazer que é falsidade
e apenas dor vem trazer.
= = = = = = = = = = =

Ao chegar o entardecer
e o fim da estrada chegar,
pode à vida acontecer
não ter flores pra regar.
= = = = = = = = = = =

Ao contarmos os segundos
para sermos os primeiros,
sonhemos com novos mundos,
sem jamais ser prisioneiros.
= = = = = = = = = = =

A praia não serve apenas
pro veranista nadar,
tem banhistas às centenas
nas margens a descansar.
= = = = = = = = = = =

As águas do mar bravio
chegam a praia inundar,
batem no velho navio
quase fazendo-o afundar.
= = = = = = = = = = =

As gavetas de um arquivo
do memorável passado,
talvez tem mantido vivo
o sonho mais cobiçado.
= = = = = = = = = = =

A vida não deve ser
feita só pra batalhar,
trabalhamos pra viver,
mas não só pra trabalhar.
= = = = = = = = = = =

Cavalgo a manhã serena
para a tarde atravessar,
às portas da noite amena
vejo o percurso cessar.
= = = = = = = = = = =

Do nascer ao pôr do sol
faz a vida um festival,
lança à noite seu lençol
sobre seu leito estival.
= = = = = = = = = = =

Em que mundo nós vivemos
que nem temos liberdade?
Segurança, já não temos,
só o que vemos é maldade...
= = = = = = = = = = =

Está no favo de mel
a doçura singular,
se a vida parece um fel
mude em mel o próprio lar.
= = = = = = = = = = =

Eu não posso dar um passo
sem recordar do passado,
se eu lembrar só do fracasso…
serei mais um fracassado.
= = = = = = = = = = =

Madrugada lenta e calma
dá lugar pro alvorecer,
é alvorada dentro d'alma
quando a vida renascer.
= = = = = = = = = = =

Na retaguarda não temos
nossos velhos precursores,
pela frente apenas vemos
imbatíveis contendores.
= = = = = = = = = = =

No cantar do Uirapuru,
tão sublime melodia,
contrasta com o Inhambu
que traduz melancolia.
= = = = = = = = = = =

No céu, de cada estrelinha,
contemplamos seu fulgor,
tendo a lua por madrinha
e o luar por precursor.
= = = = = = = = = = =

Nunca pense estar perdida
a luta por mais intensa.
Quem participa da vida
sempre tem a recompensa.
= = = = = = = = = = =

Os solos agonizantes
sem os micronutrientes
requerem fertilizantes
pra germinar as sementes.
= = = = = = = = = = =

Pode ser que alguém não queira
ouvir a voz de quem grita,
mesmo assim há uma maneira
de alegrar uma alma aflita.
= = = = = = = = = = =

Pra se tornar um herói
basta um gesto praticar,
mudando tudo o que dói
em razões para lutar.
= = = = = = = = = = =

Quando o Sol for tua meta
na mira não falte a fé,
siga teus passos à seta
condutora do teu pé.
= = = = = = = = = = =

Se não for bicho, nem gente,
e fantasma também não,
poderá ser simplesmente
fruto da imaginação.
= = = = = = = = = = =

Se toda a saudade ocorre
no seio da humanidade,
cada lágrima que escorre
faz nascer nova saudade.
= = = = = = = = = = =

Sonhar é muito importante
tanto quanto conquistar,
se o sonho estiver distante,
tão pouco vale sonhar!
= = = = = = = = = = =

Tantos reinados mundanos
caíram, mesmo os normais,
mandai, Senhor, aos humanos
o que acabará jamais...
= = = = = = = = = = =

Tem frango se apresentando
com ar de galanteador,
de galo já vem cantando
no terreiro sem pudor.
= = = = = = = = = = =

Uma vida tem certas crises
que sempre são superadas,
muitas delas são reprises
das que foram enfrentadas.
= = = = = = = = = = =

Vida: tênue vela acesa
que perdura a vida inteira,
não cessa se for coesa
tendo a morte por fronteira.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
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