domingo, 18 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 11


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Kuat e Iaê - A Conquista do dia

No princípio só havia a noite.

Os irmãos Kuát e Iaê - o Sol e a Lua - já haviam nascido, mas não sabiam como conquistar o dia. Este pertencia a Urubutsim (Urubu - rei), o chefe dos pássaros.

Certo dia os irmãos elaboraram um plano para capturá-lo. Construíram um boneco de palha em forma de uma anta, onde depositaram detritos para a criação de algumas larvas. Conforme seu pedido, as moscas voaram até as aves, anunciando o grande banquete que havia por lá, levando também a elas um pouco daquelas larvas, seu alimento preferido, para convencê-las. E tudo ocorreu conforme Kuát e Iaê haviam previsto.

Ao notarem a chegada de Urubutsim, os irmãos agarraram-no pelos pés e o prenderam, exigindo que este lhes entregasse o dia em troca de sua liberdade.

O prisioneiro resistiu por muito tempo, mas acabou cedendo.

Solicitou então ao amigo Jacu que este se enfeitasse com penas de araras vermelhas, canitar e brincos, voasse à aldeia dos pássaros e trouxesse o que os irmãos queriam.

Pouco tempo depois, descia o Jacu com o dia, deixando atrás de si um magnífico rastro de luz, que aos poucos tudo iluminou.

O chefe dos pássaros foi libertado e desde então, pela manhã, surge radiante o dia e à tarde vai se esvaindo, até o anoitecer.

Fonte:
http://www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (O escritor e as cenas: mostrar e não dizer)

   
Abordaremos hoje o grande segredo da criação literária: narrar. O leitor quer ler boas narrativas, boas histórias. Cuide, porém, a diferença entre narrar e contar. É a diferença entre a narrativa e o resumo.

    Fazer literatura não é amontoar fatos, resumos de acontecimentos. É preciso narrar cada fato, individualizando-os e envolvendo o leitor. É importante, também, que o escritor mostre ao leitor o que está acontecendo em vez de dizer, contar.

    David Lodge, em A arte da ficção, tem uma distinção primorosa entre cena e sumário:

    “O Discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura de sem mostrar são as falas dos personagens, em que a linguagem espelha com precisão o acontecimento (uma vez que o acontecimento é linguístico)." Isso seria a cena.

    “A forma mais pura de se dizer é o resumo autoral [chamado aqui de sumário], em que a concisão e a abstração da linguagem do narrador apagam o caráter particular e individual dos personagens e suas ações. Um romance escrito do início ao fim na forma de sumário seria, portanto, quase ilegível. Mas o recurso tem seus usos: é capaz, por exemplo, de acelerar o ritmo de uma narrativa, fazendo-nos passar mais depressa por acontecimentos desinteressantes.”
 

    Imagina que você queira contar a história de um homem extremamente metódico que, por isso, perdeu sua mulher e seu filho. Você primeiro cria toda a história na sua cabeça ou num papel de rascunho, anota episódios e elementos de sua personalidade, de sua infância, faz uma lista das personagens com quem ele convive ou conviveu, pensa em seus atributos físicos, suas manias, etc. Você sem dúvidas tem elementos para um romance, mas irá escrever um conto de no máximo cinco páginas.

    A solução de um escritor iniciante seria simplesmente ir listando os fatos principais, um em cada parágrafo, e rapidamente pulando no tempo e nos informando que ele teve uma infância difícil, pois perdera a mãe muito cedo e foi criado em escola de padres, depois custou a casar, em dúvida entre o casamento ou a vida religiosa, adiante teve uma filha, embora quisesse muito ter tido um filho, depois a filha acabou morrendo, o que o causou muito sofrimento, mas logo a mulher engravidou de um menino que, apesar de ser muito diferente dele, cativou-o desde o primeiro choro. Bem, por aí vai. A essa sucessão de acontecimentos chamamos de sumários.

    Um escritor mais experiente, que sabe da importância de conquistar o leitor através de cenas, escolherá dois ou três episódios da vida desse homem para descrever com mais detalhes estes episódios, individualizando-os.

    Por exemplo, o escritor pode escolher o dia em que o menino chega na escola de padres e retira uma foto da falecida mãe; o dia do nascimento da filha e de como ele olha para o crucifixo na parede, lembrando do quão difícil foi escolher entre isso ou a vida religiosa e de quantas dúvidas tem se fez ou não a escolha certa; um diálogo entre o homem e um conhecido numa pracinha em que os filhos de ambos brincam, diálogo em que o outro brinca com o fato de o menino ser tão diferente do homem, trazendo à tona todas as dúvidas de nosso protagonista e todo o medo que ele tem de perder a criança, a quem tem tanto amor.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4053/o-escritor-e-as-cenas-mostrar-e-nao-dizer

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 3

Inocência

Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.
Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.
Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabe que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.
Corre a vida pressurosa,
como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.
Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.

Pedido

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.
De mim bem longe
Teu pensamento!!
Teu pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.

O Desengano

JÁ VIGÍLIAS passei namorado,
Doces horas d’insônia passei,
Já meus olhos, d’amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.
Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.
Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.
E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou - não mais que um dia
Fingimento e mentira!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?
Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.
Quão insensato fui! - busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, - não achei!
E da esp’rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!
E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu’és feliz.
Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; - mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!

Minha Vida e meus Amores

QUANDO, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
- Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce.
Quanto é bela esta vida assim vivida! -
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
A beira-mar colhida!
Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: - amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; - julguei-o ao menos.
Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
- Eu morrera feliz, dizia eu d’alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.
A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui como ela,
Inconstante vagando em mar de amores.
O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; - somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi’nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! - Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Um dia, em qu’eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
- Eu te amo? - Ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos. . . - mas não posso crê-la.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: - Sonhei contigo! -
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei - talvez! - e já não pude crê-la.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela. ..
Amar-me! - Eu que sou?
Meus olhos enxergam, em quanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
Mau grado meu, crer não posso, .
Mau grado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?
Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.
Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.

Recordação

Nessun maggior dolore...
- Dante

 
Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada, .
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor piedade; - e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d’angústias que meu peito oprime:
Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, - nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
Porque de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. - Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

Machado de Assis (Ernesto de Tal)

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta para cavar um abismo entre duas pessoas.

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo.

Era filha de um coronel.

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

E é agora, em 1862, estando ele tranqüilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

Poupo às pessoas que me lêem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

— Nunca mais a viste? — Nunca.

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande? — Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

— À toa? repetiu Duarte rindo.

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

— Por quê? — A turvação de ontem...

— Que turvação? — Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado.

Presentemente...

Daí a dias, estando com a prima — a intermediária antiga das notícias —, contou-lhe o caso do Ginásio.

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

— Em todo caso, não é a mesma.

— Por quê? Está muito diferente? — Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

— Em Jaguarão? — Não; depois da morte do marido...

— Enviuvou? — Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas.

Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem.

Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a incriminemos por um pecado tão comum.

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

— Querem ver que você está querendo recordar-se... Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento.

Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças? — As mesmas.

— Não mudou nada? — Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

— Usa suíças? — Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominouse e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles: — O Rio Grande é bonito? — Muito: gosto muito de Porto Alegre.

— Parece que há muito frio? — Muito.

E depois, ela: — Tem tido bons cantores por cá? — Temos tido.

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-seia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los.

Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela.

Duas pessoas que se vêem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro.

Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.

“ pensou ele.

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco.

Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas.

Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

— Vejo que fiz mal em falar a você, redarguiu ele rindo.

— Por quê? — Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a frequentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

“Nem parece a mesma,” disse ele consigo.

Outra coisa que ele lhe notou — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar.

Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal.

Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar? — Nada.

— Então...

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

— Pois só mudada; mas está mudada.

— Mudada...

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha os mesmos característicos da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 4, final


OS ESTUDOS FEMINISTAS

Pode-se afirmar que os estudos da mulher na literatura brasileira surgem, no Brasil, como consequência das questões até aqui anunciadas. Se há textos esquecidos, há necessidade de recuperá-los, ressuscitando-os das páginas manuscritas, ou de primeiras edições escondidas nas estantes, ou de reedições esgotadas. Trata-se, neste primeiro caso, de trabalho de resgate.

Com tal intenção, foram fundadas editoras especializadas em textos escritos por mulheres, na maioria com propósitos de divulgação de trabalhos em várias áreas de conhecimento afins[84], ligadas ou não diretamente a agências de fomento e a grupos de pesquisa específicos sobre mulheres.[85]

Pesquisas de âmbito regional são incentivadas, visando o levantamento de dados referentes a escritoras de várias cidades ou Estados do Brasil, em estudos que se fazem necessários, tendo em vista a enorme extensão territorial do país e a diversidade de culturas aí existentes. Pressupõem a pesquisa a periódicos de época, a livros, a catálogos e a demais fontes que possam permitir um mapeamento da produção literária e jornalística de cada região, bem como das trocas culturais, mediante estudos de recepção. O levantamento, relativamente recente, tem contribuído para que se determine um corpus básico, para que, então, se possa proceder às etapas subsequentes de análise crítica e interpretativa das obras, acompanhadas de um sistemático balanço das premissas metodológicas mais adequadas ao objeto em questão.

Como produto desse trabalho, têm surgido reedições importantes, como as de escritoras do século XIX, tanto as que se dedicaram ao romance[86], como à poesia[87], à crônica, ao teatro, ao jornalismo. Acrescente-se ainda a reedição de revistas do século XIX e do século XX, algumas, em edição fac-similar[88], bem como o estudo específico de algumas dessas revistas[89]. E o levantamento, por vezes acompanhado de análise, de textos de gêneros discursivos específicos, até então considerados ‘menores’, como os livros de memórias de mulheres.[90] Também informações úteis aparecem sob a forma de verbetes referentes a, por exemplo, mulheres ensaístas.[91]

Num segundo bloco, situam-se os estudos que tentam reler os textos escritos por mulheres – e por homens, com o objetivo de praticar um novo modo de ler, de cunho na maioria das vezes feminista. Ainda que, dentro dessa linha, possam ser assumidas diferentes posturas teóricas, metodológicas e críticas, tais estudos têm mostrado, de modo geral, uma dupla perspectiva: ora a adoção de uma linhagem anglo-saxônica, com as ramificações norte-americanas, na leitura de tradição marxista, de caráter mais social e político do gender, nas suas relações com a antropologia cultural; ora a adoção de uma perspectiva francesa, mais alerta a questões de ordem psicanalítica, privilegiando a questão da diferença, valendo-se, em algumas vertentes, das relações com a linguística e a semiótica.[92]

Num terceiro bloco, e já como consequência dos dois anteriores, há um linha de conhecimento referente ainda aos estudos literários da mulher na literatura que se move com base no produto concreto dos resultados de leituras específicas desenvolvidas em torno de obras de escritoras brasileiras. E que procura, a partir de tais resultados, com base nas constantes e variantes de construção de tais obras literárias e recusando sistemas fechados, tecer considerações a respeito das respectivas condições contextuais de produção cultural.

O conjunto de tal produção científica evidencia que uma metodologia de história, teoria e crítica de nossa literatura feminina brasileira vem, paulatinamente, sendo montada por nossos estudiosos e estudiosas de literatura, ou de modo individual, ou, mais frequentemente, de modo coletivo, sob a forma de grupos de pesquisa.

Têm exercido papel importante no sentido de desenvolver tais estudos, os vários cursos de Pós-Graduação sobre o assunto e Núcleos de Estudos da Mulher implementados em várias Universidades brasileiras, a partir sobretudo dos anos 80, que geraram uma produção científica de qualidade, divulgada ora em volumes de autoria individual, ora de autoria coletiva.

É o caso do Grupo de Trabalho A mulher na literatura, filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), que, desde sua fundação, em 1987, conta com a adesão de quase duzentas pesquisadoras, e que vem publicando sistematicamente os resultados dos trabalhos, sob a forma de boletins periódicos e coletâneas de artigos e ensaios.[93] O mesmo grupo vem promovendo também, desde 1988, Seminários Nacionais, bienais, realizados em anos alternados aos do GT A mulher na literatura.

Num balanço crítico datado de início dos anos 90, Heloisa Buarque de Hollanda reconhecia três linhas mestras de estudos no grupo de trabalho A mulher na literatura, que denominou de: literatura e feminismo, literatura e feminino, literatura e mulher.[94] A primeira vertente, reconhece como sendo a de caráter participante, “absorvendo desde a pesquisa no sentido da recuperação da história silenciada da produção feminina até a análise dos paradigmas patriarcais e logocêntricos da literatura canônica”. A segunda, literatura e feminino, mais preocupada com a “identificação de uma escritura feminina”, de modelo francês, com uma inflexão marcadamente semiológica e/ou psicanalítica”. E a terceira, literatura e mulher, mais diretamente ligada ao trabalho de análise do papel da mulher na literatura (como autora, narradora, personagem), sem problematizar a questão das relações de gênero.

Tal produção científica tem sido publicada regularmente pelas equipes responsáveis por cada um desses eventos, em estudos que, apesar de estarem implicados entre si, distribuem-se, fundamentalmente, neste final dos anos 90, em três grandes blocos de reflexão, com alterações sutis, mas significativas, em relação aos grupos anteriores: a teoria e crítica feminista; a questão mais específica do cânone; as múltiplas implicações da categoria do gender.[95]

Nota-se, pois, nos estudos mais recentes, pela simples nomeação de cada linha de reflexão, uma preocupação mais acentuada em construir repertórios teóricos que possam examinar a prática da leitura mediante opções por um feminismo que continua sendo, por princípio, não canônico, e que se abre às múltiplas sugestões suscitadas pela categoria do gênero. Mais uma vez, a necessária desconstrução do nome…também de tais estudos: evitando a tradição da generalização de, simplesmente, estudos literários, o enfoque torna-se mais dirigido quando se detém na questão específica da literatura ligada aos estudos da mulher, e, posteriormente, transforma-se em estudos de gênero ao reforçar a interferência cultural na construção dos papéis sociais que se desenvolvem no âmbito das relações humanas entre homens e mulheres. Sob tal enfoque, o trabalho científico tem mostrado resultados substanciais, conforme comprovam os textos publicados na revista especializada na questão do gênero, intitulada Estudos Feministas[96], bem como a publicação de bibliografias mais gerais sobre o assunto.[97]

Também com objetivo de pesquisa, e, algumas vezes, com finalidades práticas de atendimento a um público amplo e diversificado, foram fundados vários núcleos de estudos da mulher ligados a várias instituições universitárias, com publicações próprias. E há também organizações independentes que promovem debates e encontros específicos sobre a questão da mulher na realidade brasileira, com enfoques e metodologias de várias áreas de conhecimento e, quase sempre, de caráter interdisciplinar.

O estágio atual dos estudos até o momento desenvolvidos, sobretudo no que se refere ao questionamento de fundamentos básicos de metodologia de trabalho e à divulgação de textos literários esquecidos e de fontes primárias de pesquisa, mostra que a literatura feminina no Brasil se viabiliza como um campo fértil de investigação, que vem contribuindo para, mediante o diálogo interdisciplinar, estender os resultados de tal investigação ao âmbito mais geral das ciências humanas, aperfeiçoando a discussão de questões que envolvem o ser no campo mais geral da cultura brasileira. O ser e os nomes do ser.

* Esta exposição destinou-se a um público estrangeiro, o que motivou o seu caráter fundamentalmente informativo, patente na seleção de itens e de questões críticas aqui propostas.

NOTAS

[84] É o caso da editora Mulheres, dirigida por professoras de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Algumas dessas editoras mantêm vínculo institucional e são ligadas a Universidades de âmbito federal ou estadual; outras, são empresas particulares.

[85] Também com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas em torno da ‘mulher’, tem fundamental importância o trabalho desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas, com projetos implementados desde o final da década de 70: o primeiro “Projeto Mulher” da Fundação Carlos Chagas, subvencionado pela Fundação Ford, é de 1976; desde 1978 a Fundação vem mantendo concursos para dotação de pesquisa sobre a mulher brasileira e publicando os resultados. Neste sentido, é pioneira a publicação de Mulher Brasileira: Bibliografia Anotada, em dois volumes, em São Paulo, pela Fundação Carlos Chagas e editora Brasiliense: o primeiro volume, com dados bibliográficos referentes à produção da mulher nas áreas de História, Família, grupos Étnicos e Feminismo, em 1989; o segundo, com dados referentes às de Trabalho, Direito, Educação, Artes e Meios de Comunicação, em 1981. Os demais resultados de pesquisas dos concursos vêm sendo sistematicamente publicados pela Fundação.

[86] É o caso, por exemplo, da reedição do romance D. Narcisa de Villar: Legenda do tempo colonial, de 1859, escrito por Ana Luísa de Azevedo Castro, organizado por Zahidé L. Muzart (Florianópolis, Editora Mulheres, 1990).

[87] É o caso, por exemplo, do volume organizado por Luzilá Gonçalves Ferreira, Em busca de Thargélia: Poesias escritas por mulheres em Pernambuco no segundo oitocentismo (1870-1920), tomo I (Recife, FUNDARPE, 1991). Algumas dessas pesquisas têm site na internet, como a que enfoca as “escritoras cariocas”: nielm@openlink.com.br

[88] É o caso de, por exemplo, A Mensageira: Revista literária dedicada à mulher brasileira, publicada em São Paulo de 1897 a 1900 (ob. cit.).

[89] Eis alguns exemplos de revistas que vêm sendo examinadas: A Violeta (Yasmin Jamil Nadaf, Sob o signo de uma flor: Estudo da revista A Violeta, publicação do Grêmio Literário Júlia Lopes, 1916-1950. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1993); Única (por Sylvia Perlingeiro Paixão, “Mulheres em revista: a participação feminina no projeto modernista do Rio de Janeiro nos anos 20”, em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 421-440); Walkyrias (Ana Arruda Callado, “Uma Walkyria entra em cena em 1934”. Estudos Feministas: CIEC-ECO-UFRJ, v. 2,  n. 2, 1994, p. 345-355).

[90] É o caso, por exemplo, de: Maria José Motta Viana, Do sótão à vitrine: Memórias de mulheres. Belo Horizonte, editora UFMG, 1995.

[91] Heloísa Buarque de Hollanda e Lúcia N. Araújo, Ensaístas Brasileiras. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

[92] Entre publicações de caráter acadêmico sobre o assunto, discutindo as diferentes vertentes teóricas e com análise de textos de diferentes escritoras, cito, dentre várias, como exemplo, a revista Gragoatá: Revista do Instituto de Letras, em número especial sobre “Figurações do gênero e da identidade”: UFF, Niterói (RJ), n. 3, 2. semestre de 1997.

[93] Desde 1987, ano em que foi fundado o GT A mulher na literatura, filiado a ANPOLL, já foram publicados sete Boletins que trazem informações a respeito de tais pesquisas, com resumos de textos e textos na íntegra apresentados nos Encontros do GT. Também os grupos responsáveis pelos Seminários têm publicado os trabalhos apresentados nos vários eventos. A título de exemplo, cito uma das primeiras publicações: o volume organizado, entre outras, por Rita Terezinha Schmidt: Organon, n. 16, UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)-Instituto de Letras, 1989.

[94] Heloisa Buarque de Hollanda, “A historiografia feminista: algumas questões de fundo”. Em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 453-463. (Republicado, com algumas modificações, com o título “Mulher e literatura no Brasil: uma primeira abordagem”, em: Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 54-92.) Problematizando a questão mais geral da crítica feminista, da mesma autora é o texto “Introdução: Feminismo em tempos modernos”, em: Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 7-19. E também: Maria Odila Leite da Silva Dias, “Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças”. Estudos Feministas, CIEC-ECO-UFRJ, v. 2., n. 2, 1994, p. 373-382.

[95] Tais temas figuram no programa para o VIII Seminário Nacional Mulher e Literatura, a ser realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em setembro de 1999.

[96] A implementação e a consolidação de tais estudos no Brasil, em âmbito interdisciplinar, incluindo não só as várias sub-áreas dos estudos literários, mas as das ciências humanas em geral, ligadas a estudos de gênero, podem ser examinadas a partir dos 13 volumes já publicados da revista Estudos Feministas  (Rio de Janeiro, CIEC-ECO-UFRJ, no momento: Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ). A revista traz, desde 1992, artigos e ensaios, encartes em inglês, resenhas de livros nacionais e estrangeiros e informações sobre cursos, núcleos de estudos, eventos e publicações, no Brasil e no exterior.

[97] Ver: Yasmin Jamil Nadaf (org.), Catálogo de títulos sobre a mulher. Cuiabá (MT), UFMT, 1997, 2 v.; Cristina Bruschini, Danielle Ardaillon e Sandra G. Unbehaum, Tesauro para estudos de gênero e sobre mulheres. São Paulo, Fundação Carlos Chagas e Editora 34, 1998.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012