domingo, 3 de setembro de 2023

Varal de Trovas n. 587

 

Aparecido Raimundo de Souza (Sempre o tempo...)

“Para todos aqueles que não acreditam num porvir melhor, o milagre às vezes acontece.”
Nélida Pinõn, em seu livro “Uma furtiva lágrima”. 

HOUVE UM TEMPO, houve um tempo, houve... em que eu passava na porta de um bar, ou de uma padaria, queria entrar, sentar, tomar um copo de café com leite e comer um pãozinho com manteiga, mas não tinha condições. O bolso estava furado. Literalmente! A carteira sem um centavo para fazer um cego cantar, ou um mendigo de rua sorrir à minha aproximação. 

Houve um tempo em que me perdi espiando, de boca aberta, os olhos arregalados para dentro de uma dessas lojas de eletrodomésticos, onde uma porção de televisores de tela plana ligados em canais diferentes prendiam a atenção de uma multidão, bem como aparelhos de som e sofisticados DVDs, mas, infelizmente, eu continuava não dispondo de meios de sobrevivência, ao menos para entrar e bater um papo com a moça esbelta e de sorriso bonito.

Houve um tempo em que precisava urgentemente trocar o par de meias e os sapatos furados. Lembro que fiquei namorando algumas vitrinas masculinas, mas esse namoro não prosperou. Também houve um tempo em que me detive por longo período na porta de uma lojinha em liquidação de queima de estoque e, como das vezes anteriores, não tinha fundos na carteira para levar para casa uma calça jeans, uma camisa de malhas, ou umas bermudinhas simples, de cores variadas, visando substituir as tranqueiras surradas que usava o ano inteiro. 

Houve um tempo em que sentava nos bancos da estação rodoviária e ali ficava horas e horas apreciando o movimento do ir e vir das pessoas que embarcavam cheias de malas e cuias, criaturas apressadas, cada uma delas com um sorriso largo estampado nos lábios, e a imensidão do caminho a ser seguido fazendo cócegas na aflição desenfreada para que o ônibus partisse sem mais delongas. 

Nesse corre-corre incessante, nesse afogo onde o agito e o nervosismo eram a tônica, topei com gente se despedindo, crianças chorando e idosos impacientes. Presenciei abraços sendo trocados com efusão, carinhos permutados com ímpetos de veemência, juras de amor saciadas com intensidade à flor da pele, enquanto o motorista conferia passagens e documentos de embarque. 

Vi choros, lágrimas e tristezas, como também esperanças, saudades, carinhos e probabilidades de volta. Vi ideias e pensamentos que se misturavam numa impetuosidade única e, no instante seguinte, se rejuvenesciam e se renovavam, como se uma palpitação mágica saída do nada trouxesse coisa alguma escondida, ou meros desejos eternos. 

Houve um tempo em que levantava a cabeça para o infinito e topava com um avião solitário cortando o espaço lá em cima. De repente essa aeronave sumia na poeira do céu sem deixar rastro da sua presença. Houve um tempo –, houve um tempo em que o tempo se desfazia em sequelas de escuridão e eu, eu me sentia só e desamparado, perdido, isolado das coisas mais corriqueiras, o peito vazio, despojado de sentimentos nobres, o meu “eu interior” completamente dilacerado. 

Não só dilacerado ou enxovalhado. Igualmente mortificado e ferido, rasgado, torturado, e pior, os pensamentos embaralhando tudo em minha volta e transformando a minha gota de esperança numa vasta extensão de desgostos e incertezas sem fim. Houve um tempo em que sorri de um modo triste e melancólico ao topar comigo mesmo em meio a uma dilatada e avultada multidão. 

Por um breve instante, me recordo, nesse dia, em meio desse tempo irmanado a robusta multidão, sonhei que a felicidade caminhava ao meu lado, de braços dados, e, a tiracolo, um novo porvir que prometia nascer sem máculas. Houve um tempo, meu Deus, houve um tempo de espera muito longo, um tempo em que as horas paravam como se estivessem emperradas. 

O sol, num piscar, sumiu. O vento deixou de soprar. As flores perderam o viço. O azul do firmamento se mesclou de nuvens carregadas e de pesados silêncios. Houve um tempo em que pensei dar fim à vida. Acabar com a minha história. Antecipar o meu destino. Cortar, por derradeiro, o ar que me mantinha vivo. 

Então veio um tempo diferente. Um tempo mágico em que a vida me sorriu de forma plena. O vento soprou meus cabelos, o sol se pôs alegre e saltitante e os pássaros voltaram a cantar. Veio um outro tempo melhor. Um tempo em que a solidão se fez amena, a tristeza fugiu, o mar agitado de desgostos se transformou em ondas de bonanças. 

No mesmo trilhar desse tempo –, houve um tempo ainda mais novo. Um período de alegrias e contentamentos. Dentro dele, a escuridão se viu invadida por um foco de luz muito forte e de intensa claridade. Então me olhei no espelho. Ao me refletir, percebi que meu rosto se abria em desenhos coloridos da mais pura empolgação e beatitude. 

Os olhos, sem o revérbero da paz, brilharam com uma intensidade descomedida. O coração, de repente, bateu acelerado. Fustigou, assim como se quisesse saltar peito à fora. Me lembro que saí correndo. Estava meio louco, meio pirado. Na verdade, apavorado, ou atordoado, sei lá. 

Creio, as duas coisas me espremendo e me empurrando contra os leões que sempre nos esperam do lado de fora, quando saímos de casa em busca de algo desconhecido. Eu recebera um telefonema da maternidade. Um telefonema. Minha mulher acabava de entrar na sala de parto. Meu Deus, ela estava dando à luz. Meu Pai Eterno. EU IA SER PAI... EU IA SER PAI PELA PRIMEIRA VEZ!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 14


DESENCANTO
(Primeiro sonho de amor)

Personagens esparsos... pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham... o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!

E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!

- Errei! Tinhas as mãos de amores cheias...
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,

pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
"sem nunca ter começo, teve fim". (*]

(* Chave de Ouro de Guilherme de Almeida)
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DISTÂNCIA

Dois corações vazios, sem compasso,
pulsando apenas para não morrer!
Em meio à névoa… o encontro e o brilho escasso,
num milagre de amor a resplender!

Esquecemos de tudo, quando o espaço
nos arrancou da terra, a surpreender!
E, arrebatados por um terno laço,
entre os astros nós fomos esconder!

A girar sob um eixo de amargura,
frente a frente, abraçamos a ventura,
num eclipse total! E o adeus, depois...

Da angústia agora és rei! Sou a rainha!
Eu sou a tua luz!... Tu és a minha...
mas a saudade é sombra entre nós dois!
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ENCONTREI O AMOR

Quando não esperava, ele nascia!
Pensei vê-lo morrer e mais crescia,
envolvendo-me toda em seu calor!
Eis porque, tão confusa e comovida,
eu clamo, aos quatro ventos, incontida;
- Graças, meu Deus! Enfim, achei o amor!

Quando surgiu, não sei... E ninguém sabe
quando deixou de ser mera amizade,
para eclodir sincero e tão consciente!
O certo, é que minha alma transportou,
de uma ternura imensa a inundou
e em mim há de viver eternamente!
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O MOMENTO SUPREMO

O amor, esse eterno tema,
nossos sonhos enlaçou
e fez de nós um poema
que a própria vida rimou!

Esquece os receios nos meus braços...
que a vida é curta e o amanhã é incerto!
Deixa que minha mão apague os traços
de angústia, dos teus olhos. Vês? - Bem perto,

Escondida entre nuvens, há uma aurora
à espera do momento benfazejo!
Que o céu se expanda... e o sol rebrilhe, agora,
no infinito esplendor do nosso beijo!
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PRESENÇA

Tão feminina e triste, minha amiga,
não queiras, com teu jeito amargo e doce,
instilar-nos no sangue o fel da intriga:
- basta o suplício que este adeus nos trouxe!

Nosso amor é tão grande... não periga!
Ao teste da distância, confirmou-se.
Deixa que a vida sua estrada siga...
Nossa estrada, por ora, bifurcou-se.

Terna, dizes que beijas seus cabelos...
Eu asseguro que não tenho zelos
por estares, fiel, sempre ao seu lado:

- Ora, saudade, não me fazes ciúmes!
- Ao lado dele, minha forma assumes
e, junto a mim, tens o seu rosto amado!
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VIAGEM DE ESPERANÇA

Peregrino do sonho, o Poeta é um ser errante
no encalço da Verdade. Em eterna procura,
a criar o que não tem, vai seguindo adiante,
sob o impulso do ideal, que abraça com ternura!

Asa aberta à Esperança! Em cada porto, o instante
de anseio e de beleza... onde nada o segura!
Quando tange-lhe a alma um apelo cantante,
ele parte outra vez... em festa, ou em amargura.

O farnel? - Ilusões! O passaporte? - A rima!
As vestes? - Fantasia... e muito Amor por cima!
Embora preso à terra, a um destino tristonho,

o Poeta é livre sempre! É livre de alma inteira!
- É dono do Universo e não teme fronteira,
quem tem o espaço aberto à Nave Azul do Sonho!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Enviado pela poetisa.

A. A. de Assis (A gente merece?)

Fico pensando que foi assim: o grande e generoso Artista primeiro criou em pensamento o homem e a mulher e os deixou quietinhos no seu coração, como que numa sala de espera. Em seguida criou o céu e a terra e tudo o que nesse imenso espaço existe: o sol, as águas, os campos, as matas, as aves, os peixes, os bichos, as flores, os frutos, a lua, as estrelas…

Quando viu que tudo estava pronto e que tudo era muito bom, chamou a mulher e o homem, soprou-lhes o dom da inteligência e a eles determinou: “Cresçam e se multipliquem, cuidem bem deste planeta, vivam nele em abundância, mas sobretudo amem, amem, amem”.

Na parte que só depende da natureza, funciona tudo direitinho. O sol continua iluminando e gerando energia. A lua continua adornando a noite e inspirando os poetas. Os mares e os rios continuam produzindo peixes e servindo de pista para a navegação. As árvores continuam fornecendo frutos e hospedando os pássaros, que por sua vez continuam gorjeando. Tudo como foi carinhosamente sonhado pelo boníssimo Artista maior.

Só o homem e a mulher – justamente os seres havidos por mais sábios – ainda não aprendemos a fazer bem feito o que fomos equipados para fazer.

Aprendemos a ler, escrever, fazer contas, cozinhar, tecer pano e costurar roupa bonita, curar doenças, produzir música, esculpir estátuas, pintar figuras, escrever poemas.

Aprendemos a fazer um monte de coisas: casas, estradas, túneis, pontes, trens, automóveis, navios, aviões, fábricas, hidrelétricas, engenhocas de todo tipo, computadores.

Porém, que pena, falta a gente aprender a ser um ser de fato humano. Falta aprender a ser irmão/irmã. Primeiro de tudo porque ainda não aprendemos a amar.

Aí fica tudo complicado. Ficamos todos o tempo todo competindo, brigando, guerreando, gastando um tempo enorme e uma fortuna imensa fabricando armas e construindo muros. 

Então de que adiantou o grande Artista criar um mundo tão generoso e belo? Será que a gente tem jus a tanto? Será que a gente merece?…

Não teria sido mais simples o grande Artista haver criado um ser já prontinho para ser efetivamente humano e dessa forma ser feliz? Por que deixar por nossa conta o acabamento?

Egoísmo, ganância, ódio, inveja, orgulho, arrogância, safadeza, perversidade, essas desvirtudes todas tão horríveis, por que já não nascemos vacinados contra tais enfermidades?

Tudo faz crer que o grande e sapientíssimo Artista tenha achado melhor que o dom maior fosse a nossa liberdade. Não nos sentiríamos suficientemente realizados se tivéssemos recebido de mão beijada a graça da perfeição. Para dar mais valor às nossas potencialidades, teríamos de nos sentir coautores de nós mesmos.

Paciência então. Um dia chegaremos ao ponto. Deus, o supremo Artista, o amoroso Criador de todas as coisas e de todos os seres, é antes de tudo Pai.
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo em 27.07.2023)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/07/27/a-gente-merece/