sábado, 26 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 23

 

Contos e Lendas do Mundo (Grã Bretanha: Binnorie)

Era uma vez um rei que tinha duas filhas. Elas viviam em um pavilhão perto da linda represa de Binnorie.

Sir William veio cortejar a mais velha e conquistou seu amor, comprometendo-se com uma luva e um anel. Após um tempo, voltou-se para a irmã mais nova, de faces rosadas e cabelos dourados, e seu amor por ela cresceu tanto que ele esqueceu a mais velha. Então a mais velha passou a odiar a irmã por ter lhe roubado o amor de sir William e, como a cada dia seu ódio aumentava, ela logo começou a fazer planos para se livrar da irmã.

Certa manhã bonita e brilhante, disse para a irmã:

– Vamos ver os barcos de nosso pai chegando à linda represa de Binnorie.

Foram elas de mãos dadas. Quando chegaram na margem do rio, a mais nova subiu em uma pedra para observar a chegada dos barcos, e a irmã, aproximando-se por trás, segurou-a pela cintura e a atirou na represa turbulenta de Binnorie.

– Oh, irmã, irmã, estenda a mão! – gritou a mais nova enquanto era carregada para longe pelas águas – Você terá a metade de tudo que possuo ou virei a possuir.

– Não, irmã, não vou lhe estender a mão, porque sou a herdeira de todas as suas terras. Seria uma vergonha se tocasse em quem se interpôs entre mim e meu grande amor.

– Oh, irmã, oh, irmã, então me estenda sua luva! – gritou a mais nova, enquanto flutuava para mais longe ainda. – Você terá sir William de volta.

– Afogue-se! – gritou a princesa cruel. – Não tocará na minha mão nem na minha luva. O doce William será todo meu quando você tiver se afogado.

Dando-lhe as costas, voltou para o castelo do rei.

A princesa mais nova flutuou represa abaixo, ora nadando, ora afundando, até que chegou perto de um moinho, na hora que a filha do moleiro estava cozinhando e precisava de água para a comida que preparava. Quando foi buscá-la no riacho, viu algo flutuando em direção à barragem do moinho e gritou:

– Pai! Pai! Venha tirar algo aqui da represa. Há uma donzela ou um cisne branco como leite descendo o riacho.

Então o moleiro correu para a represa e deteve as pesadas e cruéis pás do moinho. Retiraram a princesa e a puseram na margem. Estava linda quando a puseram ali. Em seus cabelos haviam pérolas e pedras preciosas, um cinto dourado circundava sua cintura, e a barra dourada de seu vestido branco cobria seus mimosos pés. Mas ela se afogara.

Enquanto estava ali, deitada e bela, um famoso harpista passou pela represa de Binnorie e viu a doce e pálida jovem. Embora continuasse seu caminho para longe, não conseguia esquecer aquele belo rosto, por isso, muito tempo mais tarde, voltou para a represa de Binnorie. Mas, tudo que encontrou depois que a enterraram, foram seus ossos e os cabelos dourados. Então ele fez uma harpa com o osso do tórax e os cabelos da moça e subiu o morro da represa de Binnorie, até chegar ao castelo do rei, pai da princesa.

Naquela noite estavam todos reunidos no grande salão do castelo para ouvir o famoso harpista. O rei e a rainha, sua filha mais velha, seu filho, sir William e toda a corte pareciam se divertir.

Primeiramente o harpista cantou ao som de sua antiga harpa, fazendo o público vibrar de alegria ou se emocionar e chorar, segundo sua vontade. Mas, enquanto cantava, ele colocou a harpa que fizera naquele dia sobre uma pedra no salão, e ela começou a tocar e cantar por conta própria, em tom baixo e claro. O harpista parou para ouvir em silêncio, assim como todos os demais.

O que a harpa cantou foi:

Oh, além se senta meu pai, o rei,
Binnorie, oh, Binnorie;
E além se senta minha mãe, a rainha,
Perto da linda represa de Binnorie.
E além está meu irmão, Hugh, de pé,
Binnorie, oh, Binnorie;
E junto a ele meu William, falso e sincero,
Perto da linda represa de Binnorie.


Então todos ficaram curiosos, e o harpista contou como vira a princesa afogada na margem perto da represa de Binnorie, e como depois fizera essa harpa com seus cabelos e o osso do tórax. Nesse instante a harpa começou a cantar de novo, e isso foi o que ela cantou, em tom alto e claro:

E ali está sentada minha irmã, que me afogou
Na linda represa de Binnorie.


Então a harpa se partiu e nunca mais cantou.

Fonte:
Katharinne M. Briggs. Contos Populares da Grã-Bretanha.

Katharine Mary Briggs (1898 -1980) foi uma folclorista e escritora britânica, que escreveu A Dictionary of British Folk-Tales, e vários outros livros sobre fadas e folclore. De 1969 a 1972, ela foi presidente da Folklore Society, que estabeleceu um prêmio em seu nome para comemorar sua vida e obra.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVII

"DEUS NÃO TEM UNIDADE
" 

Deus não tem unidade,
Como a terei eu ?
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"DEVE CHAMAR-SE TRISTEZA
"
 
Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza  -  mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
 De entre as mãos ricas de pó.
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"DO FUNDO DO FIM DO MUNDO
" 

Do fundo do fim do mundo
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.

E eu disse, "É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser.

É assim com um gesto nobre
Respondi a a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
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POEMA DOS DOIS EXÍLIOS   
"DÓI VIVER, NADA SOU QUE VALHA SER
"
 
Dói viver, nada sou que valha ser.
Tardo-me porque penso e tudo rui.
Tento saber, porque tentar é ser.
Longe de isto ser tudo, tudo flui.

Mágoa que, indiferente, faz viver.
Névoa que, diferente, em tudo influi.
O exílio nado do que fui sequer
Ilude, fixa, dá, faz ou possui.

Assim, noturno, a árias indecisas,
O prelúdio perdido traz à mente
O que das ilhas mortas foi só brisas,

E o que a memória análoga dedica
Ao sonho, e onde, lua na corrente,
Não passa o sonho e a água inútil fica.
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"DÓI-ME NO CORAÇÃO
"

Dói-me no coração
Uma dor que me envergonha
Quê ! Esta alma que sonha
O âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena coisa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
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"DÓI-ME QUEM SOU. E EM MEIO DA EMOÇÃO"

Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.

Sim tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.

Aparecido Raimundo de Souza (EBook Navegante das Palavras)


Colaborador do blog desde 2010, Aparecido possuí mais de 100 textos nele. Este ebook é uma compilação dos 52 melhores textos (segundo a concepção do editor do blog) deste escritor, aqui postados.

Aparecido é escritor e jornalista da revista Isto É Gente. Possui dezenas de livros lançados e entrevistas com escritores famosos. Escreveu a mini-série exibida na Rede Globo: "Ligações Perigosas"  

Faça o download do livro (em pdf) clicando
no link abaixo

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 17

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 46 -

A saga dos seres humanos mostra que somos gregários, gostamos de estar juntos,  viver em sociedade. É nossa gesta. Mas ampliamos o social junto a outros seres que nos são caros. Eu cá comigo tenho dois companheiros cachorrinhos - Frederico e Bela - que buscam atenção e companhia como se humanos fossem. Cada um no seu estilo.

O Fredy ou Dom Frederico é o ativo com olhos de lince e as passadas ligeiras sempre. Alvissareiro das manhãs, acorda sorrindo a espantar qualquer mau humor. Um lorde sempre a caminho. Indo ou vindo.

Dona Bela, a Belinha, é a criatura com olhar inefável, cativante, mas decidida, na dela. Tem a analogia das pessoas que não desistem dos seus intentos. Busca, insiste, não arreda.

Corpos incorporados ao corpo da casa, ensinam tanta coisa - obediência, paciência, generosidade. Têm a singeleza dos irracionais. Mágicos ou magias ? Cachorrias . . . Só quem vive com eles consegue entender a alma dos cachorrinhos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 2

A ganância que te ilude
que te arrasta à solidão,
é a mesma falsa virtude
que esconde a luz da razão!
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A infância, é uma doce brisa;
passa logo, e de repente...
Vem o outono e se eterniza
no chão da vida da gente!
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Ao vencer tempo e distância,
a velhice, abraço e aceito;
mas os bons tempos da infância
são crianças no meu peito!
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Aquele retrato antigo
que o tempo tem castigado,
conversa sempre comigo
segredos do meu passado!
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Cada verso que desliza
entre esses meus cegos dedos,
numa trova sintetiza
seus infinitos segredos!
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Deus mostra ao mundo insensato,
injusto, cego e sem luz...
Que o infinito amor, de fato,
coube entre os braços da cruz!
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Deus pôs no amor tanta essência,
que, o seu grande Benfeitor,
não permite que a ciência
ponha limites no amor!
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Há uma paz no olhar da mata
quando a brisa em leve açoite,
soprando a velha cascata
embala o pranto da noite!
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Lembrando os tempos antigos,
mesmo apesar da distância...
Escuto os passos amigos
dos meus amigos de infância!
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Mãe, é poema de amor
que, a qualquer filho se apega;
alívio que afasta a dor
da cruz que o filho carrega!
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Mãe - nessas tuas letrinhas
ouço os mais lindos fonemas
que formam todas as linhas
dos versos dos meus poemas!
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Não vi mais meus pirilampos,
poetas de luz do meu chão,
que iluminavam meus campos
nas noites de solidão!!!
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Na treva é que se carrega,
a dimensão do empecilho
da dor, que sente a mãe cega,
por não poder ver o filho!
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Nos teus bilhetes queimando
vi com certo desconforto…
Frases de amor me acenando
das cinzas de um sonho morto!
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Num mundo de desiguais,
onde há tantos desenganos...
Perdem-se, cada vez mais,
os sentimentos humanos!
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Os teus cansaços não vão
impedir que o teu suor,
seja o fermento do pão
que te alimenta melhor!
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Ousado e um tanto atrevido,
mas confesso, e se não fosse...
Jamais teria sentido
o mel de um beijo tão doce!
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Prefiro os caminhos tortos
aos enlevos mais risonhos,
a ver os meus sonhos mortos
entre as cinzas de outros sonhos!
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Quanta lágrima sentida
no olhar da mãe peregrina,
regando as rugas da vida
nas rugas da própria sina!
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Quanta lágrima sofrida,
e na alma, essa inquietude…
Por não ter feito na vida
tudo aquilo quanto pude!
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Se a flor da infância se afasta,
crê noutras flores bondosas;
que uma flor que o vento arrasta
não rouba a vida das rosas!
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Sei que a saudade não mata,
mas provoca pranto e dor;
qualquer saudade resgata
saudosos sonhos de amor!
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Sinto na mãe que se enlaça
nos braços de uma criança...
Que um sonho de amor se abraça
aos bracinhos da esperança!
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Soprei cinzas!.. E, ao soprá-las,
entre as cinzas da lembrança...
Escutei todas as falas
do meu tempo de criança!
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Sou como as folhas sem dono
que se arrastam pelo chão,
nas tardes tristes de outono
depois que os ventos se vão!
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Tua carta de alforria
eu queimei sem embaraços,
porque quero todo dia
ser escravo de teus braços!
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Vivo cercado de afetos!
Na paz do mesmo endereço...
Vejo em meus filhos e netos
a vida em seu recomeço!
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Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Nilto Maciel (Para Escrever a Caminho do Nada)

A pequena obra de Tácito Bonifante, intitulada “A caminho do nada”, pode ser considerada conto, embora alguns críticos tenham falado em novela, conto-novela, novo-conto e quase-conto. O drama principal envolve dois personagens: Agnelo e Beatriz. No entanto, Agnelo se confunde com Beatriz, como se fossem um só personagem: “Agnelo saiu de casa ao meio-dia. Vestia paletó preto. Subia os primeiros degraus do patamar da igreja, parou subitamente, ajoelhou-se e gritou: Sou pecadora!” Segundo um professor de literatura, ocorreu aí um erro editorial ou um cochilo do escritor. Para outro estudioso, Agnelo é, na verdade, a própria Beatriz. Lembra este trecho do conto: “Nas noites de sábado ele se transforma. Não bebe álcool, não fuma maconha, mas em seus olhos se vê o brilho das estrelas novas.” Isto é, Agnelo, o cordeirinho, se veste de Beatriz, a que faz feliz alguém.

A história, se é que se pode falar em história, se constitui de intenso conflito interior ora de Agnelo, ora de Beatriz. Contudo, não é possível saber qual a relação de parentesco, de afinidade, de amizade entre o homem e a mulher. Seriam casados, namorados, irmãos, pai e filha, mãe e filho, vizinhos, amigos? “Enxugava o rosto Beatriz quando Agnelo passou pela calçada”. Onde se achava a mulher? Terá ela visto o homem? Terá este visto a mulher a enxugar o rosto? Estaria ela chorando? Por que estaria chorando? As manhãs domingueiras de Agnelo são de puro desespero: “Nunca mais me exilarei no reino do Muito Longe. Aqui, neste mundinho, viverei até a morte. No entanto, outros sábados virão e eu não terei forças para me agarrar às estacas de minha casa.”

O conflito interior não chega a ser narrado, mencionado com clareza. “Agnelo fechou os olhos. Nunca mais poderia ver aquela mulher.” A que mulher se refere o narrador? Três parágrafos adiante o leitor tem uma vaga ideia de por que o personagem nunca mais veria a mulher: “A viagem se iniciava. Mais dois passos e alcançaria o mar.” Um crítico se refere a suicídio. O homem iria se jogar ao mar. De onde terá arrancado tal conclusão? Desse trecho: “A canção de Dorival me deixa triste.” Refere-se à frase: “É doce morrer no mar.”

Durante toda a narrativa há uma só referência ao mar, o que não credencia o leitor a julgar que o personagem viva no litoral. Em um momento o narrador se refere a seres e objetos, ao ambiente de uma fazenda: “Os bois mugiam e Beatriz se enroscava no lençol. O cheiro de leite inundava o quarto; a mulher gemia. Um galo cantou. Uma voz de mulher cantarolou uns versos antigos. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, a alma da mulher desprendeu-se-lhe.” Estaria Beatriz sonhando? Ou imaginando a tranquilidade de uma fazenda? Veja-se Machado de Assis, do conto “As academias de Sião”: “Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também.”

Na verdade, os personagens pervagam, pelo menos psicologicamente, diversos lugares: “Na praça um mendigo dormia debaixo de um banco. Agnelo amassou o jornal e saiu às pressas.” Mais adiante “subiu a escada rolante, a olhar para os lados. Uma jovem descia pela escada ao lado. Mascava chiclete. Sorria, como se lembrasse de um beijo. Ao chegar ao fim da escada, Agnelo parou e sondou o andar de baixo. A moça havia sumido.” Como se monologasse sempre, o personagem deixa a escada e logo está em casa: “Retirou o paletó e se jogou na cama. Virou-se para o teto. A luz da lâmpada lembrava um grande sol.”

Também é impossível medir o tempo da trama, se é que há trama. O homem está sempre de paletó preto ou nu. Terá diversas dessas vestes? Beatriz, porém, aparece de vestido vermelho, de calça azul e blusa branca, de saia amarela, sem roupa, no banho, etc. Ora, poderá ter usado num só dia todas essas roupas. Há referências vagas a pelo menos cinco jantares, que podem ser o mesmo: “Passou mais de cinco minutos a ler o cardápio. O garçom ia e vinha, impaciente.” Em outra cena monologa: “Bife de coelho?” E o narrador reapresenta Beatriz: “Adorava coelhos. Não como iguaria, certamente. Preferia-os vivos, brancos, saltitantes. Olhou para o gato deitado no sofá. Vem cá, meu amor.” Cenas de carnaval há pelo menos três: “O homem arrependeu-se de ter saído de casa. Os foliões olhavam para ele como se vissem um ser estranho. Aquela camisa amarela não combinava com a grande festa.” Sendo assim, seriam pelo menos três anos de história. Ou seria o mesmo carnaval? Talvez não, pois mais adiante “Agnelo vestiu uma camisa listrada.” Poderia ter sido no mesmo dia ou no seguinte?

De volta à questão principal: Beatriz e Agnelo se conheciam? Não há um só diálogo deles. Ela dialoga com um homem sem nome explícito e com outra mulher. Ele parece sempre só. Ela não se refere, nas narrações, a ele, a não ser neste breve trecho: “Um homem chamado Agnelo não poderá jamais gostar de borboletas.” Não explica o porquê dessa afirmativa (ou negativa?). Veja-se o início da narração: “Na floresta vivia um sapo que gostava de borboletas. Ele saltava, pulava, e nada de capturar borboletas. Chamava-se Agnelo. Se fosse homem, talvez colecionasse borboletas.” No entanto, o sapo Agnelo não é o personagem do conto. Também ele, Agnelo, narra pelo menos três episódios, e em nenhum deles se refere a Beatriz. A não ser quando dá a uma mendiga o nome de Beatriz: “A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão e saiu. Deixou no chão um cobertor sujo e rasgado. A mendiga se aproximou do banco, olhou para as costas do mendigo, que ia longe, e se apoderou da roupa. Por acaso és dona destes trapos, Beatriz? Como sabes o meu nome? Está escrito em teus olhos. Conduzes a felicidade.” Veja-se a vampirização deste trecho do conto “O Suave milagre”, de Eça de Queiroz: “A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha.” Mas somente isto, porque no mais os dois contos nada têm em comum.

Não há propriamente um desenlace: Agnelo se avizinha da ponte e olha para baixo: “Ninguém é dono de nada.” A frase pode ser dele ou do narrador. Do outro lado da ponte surge Beatriz. Alguns críticos veem nesse momento o encontro dos dois. Há um sapo na água e dois mendigos à beira da lagoa ou do rio, a banharem-se. Frases sem aparente sentido se embaralham: “Eu sou o que não sou” (Agnelo?), “meus passos me seguem e seguirão” (Beatriz?), “a água se turva e o céu agradece” (narrador?), “desta água beberei” (mendigo?), “banho, véspera da morte” (mendiga?), “o caminho, feito de passos, abria-se para todos os lados, em círculo, como um sem-fim” (narrador?), “aqui estou” (Agnelo? Também a última fala de Jesus, no conto de Eça).

“A caminho do nada” é, talvez, o conto mais enigmático de Tácito Bonifante, uma narrativa que aceita as leituras mais diversas e abriga o doce prazer de ler e querer escrever a história lida.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 32: Waldir Neves

 

Dorothy Jansson Moretti (Seu Victorino e a Rua São Pedro)

– A rua está linda! Gosto de vê-la de dia, ao sol e sob o céu azul, com as árvores verdinhas como são nesta época do ano. Gosto de vê-la à noite, com os paralelepípedos brilhando à luz das lâmpadas dos postes, enquanto as folhas das árvores se movem e farfalham ao ventinho constante de nossas noites bonitas.

Rua São Pedro. Soa tão bem!

Será que algum outro nome ficaria melhor para ela?

Quase ninguém sabe disso, mas já houve ocasião em que quiseram mudá-lo. Foi durante a ocupação das forças vitoriosas na Revolução de 30. O administrador da cidade, nomeado pelo comandante da praça, era o saudoso jornalista Walfrido Rolim de Moura.

Certa manhã, acompanhado por seu filho Plínio, ele entrou na farmácia de Seu Victorino, que ficava em frente ao Foto Jansson. Ambos discutiam um assunto, e a certa altura dirigiram-se a ele, pedindo-lhe a opinião.

"Seu Victorino, estamos querendo homenagear o grande vulto da revolução, o saudoso governador da Paraíba, e pensamos em mudar o nome desta rua para João Pessoa. O que o senhor acha?"

Seu Victorino foi franco:

"Desculpem , mas não concordo. Acho que não se deve mudar um nome que é querido pela população, e tradicional, sendo até ligado ao nome original da cidade: São Pedro do Itararé".

Walfrido achou que era "carolice":

– "Só porque é nome de santo?"

"Não, Seu Walfrido. Eu nem sou católico. Mas olhe, aí vem Seu Claro Jansson. Vamos perguntar a ele".

Meu pai, apesar de também não ser católico, foi totalmente contra a ideia. E logo em seguida, o médico protestante Dr. Onofre Di Giacomo, que acabava de entrar na farmácia, consultado, também manifestou-se contrário.

O jornalista, em minoria, pareceu um tanto agastado;

"Bem, eu vou pesquisar a opinião pública. Se me for favorável, mudo o nome da rua, quer o senhor queira, quer não!"

Seu Victorino também foi teimoso:

"Pois, Seu Walfrído, se o povo concordar em que se mude o nome da rua, eu me ofereço para doar-lhe as placas para sinalizá-la".

Não ficou sabendo se houve a pesquisa. Poucos dias depois, o administrador voltou à farmácia;

"Olhe, Seu Victorino, em atenção à vontade de amigos, decidi conservar o nome da rua. Mas o Largo de São Pedro vai-se chamar Praça João Pessoa". (Hoje, Francisco Alves Negrão)

"Está bem, Seu Walfrido. De pleno acordo. A nossa teima era só a rua..."

Foi assim. E é por isso, graças a Seu Victorino, que a nossa mais bela e importante artéria continua ostentando em cada placa de esquina o nome querido e tradicional do grande apóstolo guardador das chaves do céu.

Rua São Pedro. Soa tão bem!

Será que alguém ainda pensaria em mudá-lo?

Nunca!

(Tribuna de Itararé-28/11/84)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Hinos do Brasil (Estados de São Paulo e Minas Gerais)

Estado de São Paulo
O Hino dos Bandeirantes, como também é chamado o hino oficial de São Paulo, foi instituído em 1974. A canção é proveniente de um poema homônimo do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969). Sua letra tem como inspiração a Independência do Brasil e a conquista da liberdade em relação aos portugueses.

Hino dos Bandeirantes
Letra por Guilherme de Almeida
Melodia por Spartaco Rossi


Paulista, para um só instante
dos teus quatro séculos ante
a tua terra sem fronteiras,
o teu São Paulo das «bandeiras»!

Deixa atrás o presente:
Olha o passado à frente!

Vem com Martim Afonso a São Vicente!
Galga a Serra do Mar! Além, lá no alto,
Bartira sonha sossegadamente
na sua rede virgem do Planalto,
Espreita-a entre a folhagem de esmeralda;
beija-lhe a Cruz de Estrelas da grinalda!
Agora, escuta! Aí vem, moendo o cascalho,
botas-de-nove-léguas, João Ramalho,
vem subindo a roupeta...
de Nóbrega e de Anchieta.

Contempla os Campos de Piratininga!
Este é o Colégio. Adiante está o sertão.
Vai! Segue a “entrada”! Enfrenta! Avança! Investe!

Norte-Sul-Este-Oeste,
em “bandeira” ou “monção”,
doma os índios bravios;
rompe a selva, abre minas, vara rios;
no leito da jazida
acorda a pedraria adormecida;
retorce os braços rijos
e tira o ouro dos seus esconderijos!

Bateia, escorre a ganga,
lavra, planta, povoa
Depois volta à garoa!
e adivinha através dessa cortina
na tardinha enfeitada de miçanga,

a Sagrada Colina
ao Grito do Ipiranga!
Entreabre agora os véus!
Do Cafezal, Senhor dos Horizontes,
verás fluir por plainos, vales, montes,
usinas, gares, silos, cais, arranha-céus!
= = = = = = = = = = = = =

Minas Gerais
‘Oh, Minas Gerais’, é uma adaptação de uma tradicional valsa italiana, chamada Viene sul mare, introduzida no Estado por companhias líricas e teatrais daquele país que vinham ao Brasil no século XIX e início do século XX. A letra foi feita pelo compositor mineiro José Duduca de Morais, o De Morais, gravada em 1942.


Oh, Minas Gerais
Letra por José Duduca de Morais
Melodia: adaptação da valsa italiana Viene sul Mare.


Tuas terras que são altaneiras.
O teu céu é do mais puro anil.
És bonita, oh terra mineira,
Esperança do nosso Brasil!

Tua lua é a mais prateado
Que ilumina o nosso torrão!
És formosa, oh terra encantada!
És orgulho da nossa nação!

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Teus regatos te enfeitam de ouro.
Os teus rios carreiam diamantes
Que faíscam estrelas de aurora
Entre matas e penhas gigantes.

Tuas montanhas são preitos de ferro
Que se erguem da pátria alcantil!
Nos teus ares suspiram serestas.
És altar deste imenso Brasil!

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Lindos campos batidos de sol
Ondulando num verde sem fim
E as montanhas que, à luz do arrebol,
Têm perfume de rosa e jasmim.

Vida calma nas vilas pequenas,
Rodeadas de campos em flor,
Doce terra de lindas morenas,
Paraíso de sonho e de amor.

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Lavradores de pele tostada,
Boiadeiros vestidos de couro,
Operários da indústria pesada,
Garimpeiros de pedra e de ouro.

Mil poetas de doce memória
E valentes heróis imortais,
Todos eles figuram na história
Do Brasil e de Minas Gerais.

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Fontes:

Rubem Penz (A carta na garrafa)

Socorro, salve-me! Estou num lugar inóspito cercado de circunstâncias por todos os lados. Até agora, tenho me alimentado de convicções que tinha ainda em semente. Porém, depois de implantadas, em vez de crescerem, algumas minguaram, minguaram, minguaram e, por fim, morreram. As que me restam estão custando muito a florescer para, quem sabe, um novo semear. E, em se tratando de convicções, quebrar o galho não adianta, pois elas não pegam de muda.

Eu sei que poderia enfrentar as circunstâncias e me libertar desse inferno sem o auxílio de mais ninguém. Quem observa o horizonte de modo bastante atento, acaba descobrindo correntes de circunstâncias favoráveis até mesmo no infindável mar de lama. Acontece que desanimo cada vez que vejo as pessoas embarcando em tábuas de salvação meio furadas, que afundam em promessas ou devolvem os cidadãos à praia com novas ondas de pessimismo.

Ainda em se tratando de viagens, talvez me falte coragem para encarar a travessia por desconfiar de que, deixando essa minha ilha, seja para onde for, novas circunstâncias estarão a me oprimir. São tantos anos convivendo com as más, que boas circunstâncias soam como ficção científica.  

Se bem que, noite passada, sonhei com infraestrutura de saúde e educação pública, modais de transporte variados, boas matrizes energéticas e investimentos seguros... Acordei de súbito com a taxa de juros disparando em meu peito. Como não sei se estarei vivo quando esta carta chegar a ser lida, peço a ti, que sacou a rolha, rumar para a minha ilha de qualquer maneira. Por favor, não se furte em me prestar socorro. Se alguma garrafa atirada por um dos meus ancestrais tivesse alcançado a sensatez, a maturidade ou a decência, quem sabe eu agora não estivesse nesta situação lastimável. Isso, claro, na hipótese (positiva) de estares em algum desses estágios de civilidade. Se terríveis circunstâncias levaram minha garrafa para um destino pior, que ela sirva, ao menos, de consolo a ti, caro leitor: sim, existem no mundo outros homens vivendo de precárias convicções.

PS.: Esqueci de mandar o endereço ou mapa, não é? Mas é fácil chegar aqui: siga o caminho do capital especulativo ou do turismo sexual. De outra forma, faça o caminho inverso da evasão de recursos naturais (essa trilha tem mais de 500 anos). Só não caia na tentação de usar a rota da esperança eterna em um futuro melhor - esse caminho parece não levar a lugar algum.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) 4 dicas para desbloqueio criativo

1 - Planeje antes de escrever


Sempre digo que a escrita se dá em 3 etapas: a primeira é o planejamento, pensar na história, no personagens, de repente até esquematizar isso no papel; a segunda é a escrita propriamente dita; a terceira é a releitura, que deve ser feita com distanciamento da fase de escrita. Então muita gente se sente travada porque abre o Word (ou similar), vê um cursor na página em branco mas não tem nem ideia por onde começar. Ocorre que a pessoa não deveria abrir o Word para escrever o texto antes de ter um planejamento, um esqueleto, um esquema. Imagine um engenheiro começar a construir um prédio sem um projeto e uma planta em mãos?

2 - Escreva sobre o que te faz sangrar

A autora Lucy McCormick Calkins diz: "Escreva sobre um tópico que lhe queime por dentro. Escolha um tópico que seja tão importante, para você, que possa senti-lo em seu corpo.” Então deixe-se invadir pelos temas que o importunam, sejam pessoais ou sociais. Isso não significa, claro, ficar preso à realidade, a sua própria vida, mas a realidade e sua própria vida, seus medos, seus desejos, podem se tornar ponto de partida, matéria prima para a criação. E depois que você começa a escrever, a mágica acontece e realidade e ficção se misturam de tal forma que o leitor não saberá de onde partiu sua criação (e nem precisa mesmo!).

3 - Leia

Há uma contradição hoje que mais pessoas afirmam gostar de escrever do que gostar de ler. Eu não sou contra o fato de que todos queiram escrever, pelo contrário, escrever é direito e não dever. Mas ler é fundamental. Como diria meu amigo e poeta Dilan Camargo, "quem não lê, não escreve; quem lê pouco, escreve pouco; quem lê mal, escreve mal". Então transformar esse gosto pela leitura em escrita é fundamental, mas requer coragem, desprendimento e atenção aos aspectos técnicos nas suas leituras. Nesse sentido, oficinas, cursos ou livros sobre escrita ajudam muito, pois eles nos fazem olhar para a ficção, para as narrativas, para além da história, olhar também aquele esqueleto, aquela construção por trás das palavras e da história.

4 - Use as mãos (ou os pés)

Há um livro chamado Roube Como Um Artista - 10 Dicas Sobre Criatividade, de Austin Kleon, que dá a seguinte dica: USE AS MÃOS. A tese dele é que ao usarmos as mãos para pintar, desenhar, bordar, cozinhar, plantar, etc, ativamos uma área diferente do cérebro daquela usada diante do computador. Não entendo nada sobre áreas do cérebro, mas isso fez sentido para mim, e percebi que ao brincar de Lego com meus filhos costumo ter muitas ideias (ou destravar muitas coisas na minha história). Além disso, ao fazer exercício físico, especialmente caminhadas, também costumo ter muitas ideias (por isso brinquei com o use os pés). A questão aqui é se afastar do computador e fazer algo lúdico mas diferente, para ativar outras áreas do cérebro. Aliás, foi isso que me inspirou a criar Escrita Criativa - O Jogo*. Fiz questão de ter tabuleiro, cartas, dado, bonecos, pois isso tudo estimula a pessoa a criar e planejar sua história ANTES de se sentar para escrever de fato.
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* Escrita Criativa – o jogo é um jogo diferente, nele o mais importante não é ganhar, nem sequer existe certo ou errado; o mais importante neste jogo é estimular sua criatividade, tirar você do lugar-comum, convidar você a explorar novas técnicas e novas possibilidades para a escrita de ficção.

O uso de elementos físicos como cartas, bonecos, dado e tabuleiro busca trazer o lado lúdico do que é escrever, resgatar/despertar/fomentar a fantasia, fundamental para qualquer ficcionista. Importante é que você deixe a brincadeira fluir, inspire-se, desbloqueie-se, escreva.

Em Escrita Criativa – o jogo, ao trazer diferentes cenários, personagens, conflitos, etc., vamos estimulando o jogador a imaginar como encaixar essas partes, focando sua preocupação na lógica para a narrativa. Mais do que isso, agregamos conceitos e técnicas como tipos de narrador e desafios de linguagem, além deste livro com orientações, o que torna o jogo uma fonte incrível de aprendizado para a escrita, uma verdadeira oficina interativa e dinâmica.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 549

 

Cecy Barbosa Campos (Mundos diferentes)

Mafalda, sentada no banquinho da cozinha, contemplava o nada. Seu olhar ia longe, atravessando a parede e recuando no tempo, até que se encontrou menina, tímida e amedrontada, escutando os ralhos da mãe. Fica quieta, sossega... Vai buscar a vassoura e arrumar o seu quarto direito, que mulher tem que ser boa dona de casa...

Aquelas imagens se misturavam com outras, e via a filha afobada, jogando roupas no chão, enquanto se aprontava.

Mafalda tentava tornar a filha mais organizada mas, naquele momento, de nada adiantava falar. A mocinha apressada não escutava e, passando rapidamente pela mãe, estalava-lhe um beijo na face precocemente sulcada.

Lembrando das atitudes da filha, Mafalda sorria. Bagunceira, sim, mas carinhosa e alegre enchia de vida aquela casa pequena que, sem ela, parecia morta.

Entretanto, Marisa cada vez mais corria e não imita tempo nem paciência para escutar o que a mãe lhe dizia: Isinha, escute, quero lhe falar... Pelo amor de Deus, mãe, Isinha não, meu nome é Marisa... E assim a conversa terminava sem chegar, ao menos, a começar.

Ficava preocupada. Reconhecia na filha muitas qualidades. Tinha bom coração e grande generosidade, mas o seu comportamento era completamente diferente do que Mafalda esperava dela.

Lembrou o susto que levou no dia em que Isinha chegou com os cabelos pintados de exuberante rosa shocking e depois os piercings. Via estas coisas estranhas nas ruas, mas, na sua filha?! Não poderia suportar. Reagiu bravamente. Porém, de nada adiantou. A filha ria e, de maneira brincalhona, chamava-a de ultrapassada...

Passou esta fase, o cabelo ficou louro, e dos piercings só restaram dois, no umbigo e na orelha.

Mafalda até confessou para si mesma que já achava os dois bonitinhos.

Agora, a fase complicada era a dos "relacionamentos". Hoje em dia, explicou Isinha, casamento não existe mais. O casal fica junto enquanto quer, não tem que esperar que a morte os separe. Horrorizada, Mafalda pensou, a princípio, que a filha estava "amigada" e depois concluiu que nem isso, pois os relacionamentos eram muito rápidos...

Neste momento, ouviu a chave girar na fechadura. De um salto, levantou-se do banquinho e pegou uma panela com água para ferver e fazer um bom café, do tipo que Isinha gostava, forte, mas não tanto como o expresso.

Sorrindo, pensou que, afinal, não deveria ficar sofrendo por ver tantas diferenças. O tempo havia passado e, talvez, tanto ela como a filha agissem de maneira extremada para um lado ou para o outro. Entretanto, se amavam e deveriam aceitar-se mutuamente. O aroma do café inundou a cozinha, ao mesmo tempo em que Isinha estalava-lhe um beijo na face radiosa.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) X, motes e glosas


“Eu vim ao mundo chorando,
Mas meu destino é cantar.”


Mamãe me disse que quando
A parteira entrou no quarto,
Sem prejudicar seu parto
Eu vim ao mundo chorando;
A vida foi-me ensinando
Sorrir mais do que chorar,
Pela sorte ou pelo azar,
Que não vale viver triste;
Por isso, a tristeza existe,
Mas meu destino é cantar.
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“Papai Noel não visita
Criança de pé no chão”


No morro, a criança grita,
Pela injustiça que sente;
Quem mais deseja um presente
Papai Noel não visita!
Nessa festa tão bonita
Para o universo cristão,
É triste ver um irmão
Ficar olhando de fora,
Pois Papai Noel ignora
Criança de pé no chão!
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"Lamparina sem pavio
É besteira botar gás."


Em qualquer noite de frio,
Fica escura minha tenda...
Não conheço quem acenda
Lamparina sem pavio.
E como o velho sombrio
Que deixou de ser rapaz;
Tem vontade e nada faz;
E carta que não dá jogo...
Sem algodão para o fogo,
E besteira botar gás.
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“Quarenta e nove de idade,
Trinta e nove de trabalho.”


José Lucas, na verdade,
Corajosamente fez,
Em março de oitenta e três,
Quarenta e nove de idade;
Das manhãs da mocidade
Já não bebe o doce orvalho;
Como um boi no cabeçalho,
Moureja o pobre poeta
Que, ao mesmo tempo, completa
Trinta e nove de trabalho!
(Natal, 12-03-83 - glosa autobiográfica)
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"Quero que a morte retarde,
Mas, chegando, seja brevel"


Não sei bem se sou covarde,
Ou tenho alguma coragem,
Mas minha fatal viagem
Quero que a morte retarde;
Ela vindo sem alarde,
Juro não lhe fazer greve...
Que a terra me seja leve
E que a hora derradeira
Não me venha de carreira,
Mas, chegando, seja breve!

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carolina da Silva Prado (A chama que se apagou)

Eram quatro horas da manhã. Ele havia acordado de novo, devido ao mesmo pesadelo havia tendo há um ano e meio. Sonhava que sua falecida noiva, Adytia, estava sentada na cama, com aquelas feições angelicais, os cabelos negros trançados, e uma delicada covinha pairando sobre sua bochecha cor de pêssego. Seus olhos âmbar o fitavam, com curiosidade. Confuso, o homem perguntava o que estava acontecendo, e a mulher apenas ria, sem responder nenhuma de suas desesperadas perguntas.

Ele sabia que era um sonho. Sabia, que a qualquer minuto podia acabar, e que, aquele pequeno pedaço de céu, podia partir-se em outros mil pedacinhos, antes que ele pudesse desfrutar daqueles momentos de felicidade, na inocente ilusão da presença de sua noiva. E assim que acabasse, o homem entraria em uma cruel e profunda solidão, na qual predominavam o medo e a negridão, que conforme o tempo, iriam consumi-lo, transformando-o em um homem amargo e sem compaixão.

Fitando Adytia, ele notava que a mulher agora possuía asas, tão brilhantes e macias, talvez até capazes de apagar a solidão que queimava seu coração. Agora a mulher iluminava todo o quarto, fazendo jus a seu nome, que, na cultura hindu, significava sol. Ela passava seus pequenos dedos delicadamente no rosto do viúvo, notava que ele estava exausto, com a barba grisalha por fazer. O homem sabia que sua mente estava sendo cruel, criando uma ilusão de uma das mais belas criaturas, apenas depois, para ver seu coração estremecer, e sentir a dor da perda.

Era agora a pior parte do pesadelo. A parte em que aquela linda e temporária ilusão de Adytia se transformava em uma terrível criatura. Suas celestiais asas começavam a tornarem-se negras, e sua pele a ganhar uma penugem grosseira. A mulher ficava cada vez menor, até se transformar em um corvo. Essa era a hora que a solidão dominava o homem. Um filete de lágrima escorria sobre sua bochecha, e ele apenas se lamentava. Aquele ser não era mais Adytia.

E o que mais o assustava era o olhar daquele animal. Tão negro, tão cru, tão só como um poço sem fim. Ele não tinha expressão. Seu olhar era a verdade. A verdade de que o homem estava sozinho no mundo, sem seu querido sol para iluminar seu caminho.

A verdade de que, mesmo após um ano e meio, ele ainda chorava pela perda de Adytia. A verdade da escuridão de mundo tão cruel e sem vida. Aquele corvo não era mais sua esposa. Agora era apenas um animal, tão silencioso, mas ao mesmo tempo, tão persuasivo. A chama que representava a essência da mulher havia terminado.

O corvo começou a alçar voo, deixando o quarto e mergulhando na madrugada escura e sombria. Agora o homem estava sozinho, e era nesse momento que ele normalmente acordava. Estava em sua cama, suado, com seus cabelos grudados em suas têmporas, e lençóis enrolados em suas pernas. Agora era o choque de realidade, indicando que Adytia nunca esteve ali, e que ele estava sozinho. Que antes, ela era uma fogueira ardente e acesa, e que agora, não passava de chama que se apagou.

Fonte:
O conto brasileiro hoje: vol. XXX. SP: RG Ed., 2013.
Livro enviado por Cynthia Theodoro Porto

Estante de Livros (“Contos completos”, de Flannery O´Connor)


Em Valise de Cronópio, Julio Cortázar compara o romance com o cinema e o conto com a fotografia, observando que um filme é uma ‘ordem aberta’, enquanto uma fotografia tem uma limitação prévia. A câmara abrange um campo reduzido, recorta um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas deixando entrever uma realidade muito mais ampla. Numa fotografia ou num conto de grande qualidade, prossegue Cortázar, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento significativo, que atue no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura que projete a inteligência ou a sensibilidade para muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.

É este o caso dos contos da norte-americana Flannery O’Connor (1925-1964), que nos chegam em primorosa edição pela Cosac Naify. E eles vêm em muito boa companhia, na tradução do poeta Leonardo Fróes, com posfácio de Cristovão Tezza, o escritor brasileiro mais premiado em 2008. A edição traz ainda sugestões de leitura, listando as obras de ficção, ensaios e correspondência de O’Connor, como também uma relação de obras adaptadas para o cinema e as traduções encontradas no Brasil. Além disso, apresenta, uma atualizada bibliografia sobre a autora, incluindo listagem de resenhas publicadas no Brasil.

Flannery O’Connor nasceu no Estado da Geórgia, EUA, em 1925. Seus escritos trazem a alegoria gótica desse ambiente rural sulista. A família da mãe era católica e, sem dúvida, o catolicismo foi central em sua vida e obra. Frequentou a Georgia State College for Women, onde começou sua atividade de escritora e cartunista. Fez mestrado no Writers’ Workshop na Universidade de Iowa. Em 1952, publicou o romance Wise Blood (Sangue Sábio) e, em 1955, uma coletânea de contos, A good man is hard to find and other stories (um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias). Teve problemas de saúde ligados ao lúpus, doença que matara seu pai em 1951. No entanto, continuou a escrever e a viajar fazendo palestras sobre assuntos variados, que iam desde a criação de pavões (que ela adorava) até escrita regional, religião e ensino de literatura.

Ela e a mãe moravam numa fazenda perto de Milledgeville, onde O’Connor criava pavões e galinhas. Essa propriedade abriga hoje a Flannery O’Connor – Andalusia Foundation, que promove o conhecimento da vida e obra da autora, bem como incentiva o estudo de sua obra literária e o intercâmbio de pesquisas (ver www.andalusiafarm.org).

O’Connor publicou o segundo romance, The violent bear it away (O mundo é dos violentos), em 1960. Faleceu aos 39 anos, em 1964. Postumamente, foi publicado um volume de contos: Everything that rises must converge [tudo o que sobe deve convergir] (1965), Mystery and Manners: Occasional Prose [mistérios e maneiras: prosas ocasionais] (1969) e Flannery O’Connor: the Complete Stories [Contos completos] (1971).

A obra de O’Connor gira em torno de dois aspectos principais: o fundamentalismo predominantemente protestante do Sul dos Estados Unidos e o mundo moderno caracterizado pela esterilidade espiritual. A preocupação com a questão do bem e do mal é central em sua obra, muitas vezes trazendo uma visão espiritual baseada no Antigo Testamento.

O nome de Flannery O’Connor vem associado, na literatura norte-americana, ao gótico sulista de William Faulkner, Carson McCullers e Tennessee Williams. Em suas páginas, encontramos personagens grotescas, frequentemente envolvidas em situações de violência, de ausência de piedade e diálogo. O grotesco parece ser usado pela escritora com um propósito de revelação.

O mais interessante é que O’Connor faz isso com uma abordagem não sentimental, num estilo direto e simples, enquanto trabalha a caracterização das personagens de maneira aprofundada, em imagens que acentuam essa incongruência. Com frequência, suas personagens apresentam mutilações, seja no aspecto físico, mental, moral ou espiritual.

Nas páginas de seus contos, fica clara a observação de Cortázar: num conto bem realizado, mais importante do que o tema é o tratamento literário desse tema, a técnica empregada para desenvolvê-lo. Estamos falando de intensidade e de tensão: e isso O’Connor consegue com maestria, pela aplicação de sua inteligência realista, sua abordagem irônica no tratamento das personagens e situações. Ela tem muita habilidade como escritora cômica e o uso da ironia e do humor no retrato da classe média e das mulheres de meia idade é algo muito relevante. E o grotesco mescla-se aí perfeitamente.

Os críticos insistem em associar sua prosa ao regional e ao religioso. No entanto, vemos que seus textos nos dão aberturas para universos mais vastos. Temos aí personagens que se associam em relações pai e filha, mãe e filha, mãe e filho, trazendo à tona a difícil condição humana.

Em “O gerânio”, o velho Dudley vai para Nova York morar com a filha, mas tudo na grande cidade lhe é estranho. Fora de seu lugar, traz lembranças do Sul, especialmente do companheiro Rabie, o negro com quem costumava caçar e pescar. Na nova vida, vem à tona o preconceito racial. No final da narrativa, a grotesca figura do velho fragilizado parece associar-se ao gerânio despedaçado:

[...] pôde ver o vaso espatifado com seus cacos dispersos entre um punhado de terra esparramada e uma coisinha cor-de-rosa que sobressaía de um laço de papel verde (p. 22).”

Já o conto “A colheita” trata da angústia de uma escritora em busca de um tema para escrever um conto. A tarefa de Miss Willerton é limpar as migalhas da mesa após o café da manhã:

“Limpar a mesa era um alívio. Catar migalhas dava tempo de pensar, e se Miss Willerton fosse escrever um conto era preciso que de início ela pensasse a respeito (p. 49-50).”

Essa vontade, esse desejo já estão no próprio nome da personagem, Willie (“Will”). Essa busca, agora não uma “colheita”, mas uma “caça”, repete-se em “O peru”, conto que trabalha o motivo da iniciação e desilusão. Temos aqui um menino, Ruller, que luta para capturar um peru selvagem e, assim, impressionar as pessoas, sobretudo seus pais. No entanto, ao final, acaba sendo surpreendido por uns “moleques roceiros” (p. 74), que frustram sua tentativa de fazer jus ao nome, que é, então, irônico. “Ruler” significa governante, rei, soberano.

Em “A vida que você salva pode ser a sua”, Mr. Shiftlet consegue trabalho na propriedade onde vivem uma velha e a filha. Ambas têm o mesmo nome: Lucynell Crater. O olhar de Mr. Shiftlet, “muito claro e esperto” (p. 190) observa tudo o que havia no quintal e é atraído pela “traseira, retangular e enferrujada, de um automóvel” (p. 191). Há um diálogo interessante entre Mr. Shiftlet e a velha: ele de olho no carro e ela tentando empurrar-lhe a filha. Curioso é que Mr. Shiftlet ensina a moça Lucynell, “que era totalmente surda e nunca dissera uma palavra na vida, a dizer ‘passarinho’” (p. 194), que ela pronuncia ‘basarin’. Mr. Shiftlet e a velha fazem uma barganha: a velha lhe dá o dinheiro para consertar o carro e também para uma viagem de núpcias e, assim, ele aceita se casar com Lucynell no gabinete do juiz, para satisfazer a lei, segundo a vontade da velha. Quando ele abandona Lucynell numa lanchonete de beira de estrada, perguntamos se não teria sido menos aviltante se tivesse simplesmente furtado o carro. No entanto, a ideia de deslocamento, mudança e trapaça já estava em “shift”, no seu próprio nome.

Em “Gente boa da roça”, também temos uma relação mãe-filha e um relacionamento homem-mulher, assim como a questão da trapaça. No entanto, a filha, Allegra, é muito diferente de Lucynell, principalmente no aspecto intelectual. Allegra (Joy, no original), 32 anos, loura e corpulenta, é filha de Mrs. Hopewell. Tinha uma perna só devido a um acidente de caça quando tinha dez anos, motivo pelo qual usava uma perna de pau. Ao completar 21 anos, Allegra saiu de casa e mudou legalmente seu nome para Hulga. Nesse conto, o tradutor trabalhou a significação dos nomes próprios; optou por traduzir Joy por Allegra e, em relação à Hulga, faz um interessante jogo de palavras na tradução do seguinte trecho:

When Mrs. Hopewell thought of the name, Hulga, she thought of the broad blank hull of a battleship”. Em português, temos: “Quando Mrs. Hopewell pensava nesse nome, Hulga, o que lhe vinha à cabeça era o casco largo e cor de pulga de um navio de guerra” (p. 349). Na verdade, a “cor de pulga” parece mais apropriada ao som escuro do /u/ de Hulga. Hulga doutorou-se em filosofia, o que deixava a mãe embaraçada:

Qualquer um bem que podia dizer ‘Minha filha é enfermeira’, ou ‘Minha filha é professora do ensino básico’, ou até mesmo ‘Minha filha é engenheira química’. Mas quem diria ‘Minha filha é filósofa’, se isso era coisa morta e acabada desde os romanos e os gregos? Allegra passava os dias lendo, afundada numa poltrona. De vez em quando ela saía para dar uma volta, mas não gostava de cachorros, gatos, passarinhos, flores, nem da natureza nem de rapazes bonitos. Nos rapazes bonitos, se os olhasse, farejava tão-só a ignorância que tinham (p. 351-52). Por isso, quando ela decide “seduzir” o vendedor de bíblias, cuja fala denota sua pouca instrução (“Eu não quis te machucar, ele disse”), o desenlace do conto fará o triunfo do determinismo realista, deixando-a reduzida ao nível do corpo.

Os dois últimos contos que escolhemos para comentar, “Os confortos do lar” e “Tudo que sobe deve convergir”, trazem o relacionamento mãe-filho e, pelo uso da onisciência seletiva, o narrador em terceira pessoa passa ao leitor a visão do filho. Em “Os confortos do lar”, a mãe de Thomas resolve ajudar uma moça a quem ele se refere como “safadinha”: “É uma tarada, isso é tudo que você precisa saber. Nasceu sem a faculdade moral – como alguém nasce sem uma perna ou um rim” (p. 483). A moça é chamada Star: “Dizia se chamar Star Drake. Mas o advogado descobriu que o verdadeiro nome dela era Sarah Ham” (p. 487). Star havia sido presa por passar um cheque sem fundos e a mãe de Thomas, vendo o retrato no jornal, resolve ajudá-la. Thomas não consegue ocupar o lugar do pai e esse é, basicamente, o grande conflito do texto: “Era nessas ocasiões que Thomas realmente lamentava a morte de seu pai, embora em vida nunca o tivesse suportado. O velho não admitiria tais maluquices (p. 486)”.

Thomas acaba agindo seguindo a voz do Pai e cai na armadilha que havia preparado. A situação foge ao seu controle e, tragicamente, acaba matando a própria mãe.

Em “Tudo que sobe deve convergir”, Julian leva a mãe a uma aula de emagrecimento na Associação Cristã de Moços. A mãe se orgulha da passada prosperidade da família. Agora vivem com dificuldades, mas a mãe ostenta a soberba e é racista. A cena no ônibus que evidencia esse racismo chega ao clímax quando a mãe e uma mulher negra ficam frente a frente usando um chapéu idêntico. Julian tenta mudar os valores da mãe: “Aquela mulher era o seu duplo negro”, “o velho mundo mudou” (p. 525), mas tudo é inútil. A mãe se recusa a mudar suas convicções e pode ser vista, alegoricamente, como o declínio do mundo escravocrata sulista.

Os textos de Contos Completos são, assim, aberturas importantes que vão muito além da questão regional; trazem reflexões profundas sobre a esterilidade espiritual que ultrapassa espaços geograficamente demarcados.

Fonte:
Cleide Antonia Rapucci. Aberturas para vastos universos: contos completos de Flannery O´Connor.  Disponível no Periódico “Acta Scientiarum Language and Culture”. v. 31, n. 1. Maringá: UEM, 2009. p. 105-107.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Versejando 102



 

Aparecido Raimundo de Souza (A prazo, sem garantia) – 1

NA ESCOLA


A mestra Hermelinda explicando:

— A baleia é um mamífero que só se alimenta de sardinhas.

Lá atrás, no meio da sala, um aluno chato levanta o dedo e pergunta:

— “Fessora” Hermelinda, e como é que ela consegue abrir a lata?
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NA PONTA DA LÍNGUA

Perguntaram a um motorista profissional qual a roda que sofria menos numa curva fechada para a direita, feita em alta velocidade. Com anos de experiência em cima do volante, o cidadão não deixou por menos. Mandou a resposta num só fôlego e sem pestanejar:

— Com toda certeza, o estepe.
$ $ $ $ $

NEM TERIA CABIMENTO

O único sujeito neste mundo que não reclama das pessoas que metem o nariz em seus negócios é o fabricante de lenços.
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CENA COMUM NUMA BARBEARIA POPULAR

— Bom dia, quanto custa o corte de cabelo?

— Quinze reais.

— E para fazer a barba?

— Três reais.

— Então, por favor, barbeie a minha cabeça.
$ $ $ $ $

DURMA COM UM BARULHO DESSES

O menino estava tão cansado que caiu de maduro: tropeçou em seu próprio sono.
$ $ $ $ $

NO CONSULTÓRIO

— Com todo respeito, volto a repetir que a madame está completamente enganada. Eu sou veterinário, especialista em animais, notadamente os bichos considerados furiosos. Queira, pois, por gentileza, procurar um especialista. Todavia, antes de sair, diga, quem foi o infeliz que lhe indicou minha clínica? Juro que se me der essa informação, não lhe cobrarei a consulta!

— O cachorro do seu genro e a cadela da sua filha.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Solange Rosenmann (Poemas Avulsos)

HOJE 1 DE AGOSTO

Hoje
Especialmente hoje
Agradeço
Agradeço
Agradeço
O amor e o prazer
De dois corpos
Que se uniram
Deixando que células novas
Se multiplicassem
Formando um novo corpo
De energia vital
E com ele renasço
Para a vida
A cada amanhecer
De um novo dia
Felicidades
Que a vida renasça
Pulse
Pulse
Pulso pulsa
Felicidades.
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HUM CORPO/ALMA

O que
Você procura
Que eu não encontro

O que
Você deseja
Que eu não sinto

O que
Você esconde
Que eu não percebo

O que
Você é
Que eu não sou

O que
Você busca em mim
Que só encontro em você
= = = = = = = = = = = = =

O MOÇO

Que lindo é o Moço
Que espera a Moça
Num sôfrego grito a apelar

Que lindo é o Moço
Que sonha com a Moça
Que está por chegar

Que lindo é o Moço
Que é moço
E assim há de ser

Que lindo é o Moço
Que encontra a Moça
Para ali amanhecer.
= = = = = = = = = = = = =

QUE PROCURA É ESTA?

Que tu procuras, que buscas incessantemente?
Te aquietes, ouças o teu coração.
Percebes, moro nele
E não pretendo fugir, nem sair por aí.
Quero-te em mim.
Vens, habita-me em calmaria,
Mesmo trazendo tua ventania,
Deixes a maré brilhante,
Em por de sol, mirar-se n'água,
Narciso de ti, vem habitar-me.
Quero-te em mim, estando em ti.
= = = = = = = = = = = = =

SOU CAMINHO


Caminhe sozinho
Caminhe
Junto a areia do mar


Converse com ela
Converse com sua alma
Veja se isto lhe acalma


Converse com seu coração
Veja se ele responde



Caminhe sozinho
Caminhe junto da areia do mar
Passo a passo, de mansinho, caminhe


Quem sabe a brisa
Te leva à entrega ao voo do ar


Acalma o coração
De mãos dadas vão, Coração e Alma,
Abraçar o horizonte do olhar
Respostas encontrar.
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Solange Chemin Rosenmann é escritora, artista visual, designer e educadora. Entre 2003 e 2010 foi responsável pela implantação da ação educativa do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, colaborando com a edição de todo material educativo daquele período; e, em 2010 assim atuou, na 10ª Bienal Brasileira de Design. Autora do livro infantojuvenil O Galo José, editado pela Casa do Verbo, 2021. Integra a Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia (AVIPAF). Participou Poesia e Prosa na SEEC: antologia de escritores da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (2000); Artes, diversidades e afins – Melhores textos, organizada por Ana Maria Dietrich e Rodrigo Machado – Santo André, SP. (UFABC - 2017); Poesia Livre 2019: antologia poética Vivara Editora Nacional organizada por Isaac Almeida Ramos; Ebook - Mulheres Poetizam, edição 2020 e 2021 organizado por Isabel Furini. Colunista da Contemporartes (2014); colabora na Revista Digital Carlos Zemek de arte e cultura; e, no Bonde.

Fonte:
Colaboração de Isabel Furini

Sílvio Romero (Contos Populares do Sergipe) Dona Labismina

Uma vez havia uma rainha, casada já há muito tempo, que nunca tinha tido filhos, e tinha muita vontade de ter, tanto que uma vez disse: “Permitia Deus que seja uma cobra!...”

Passados uns tempos, apareceu grávida, e quando deu à luz foi uma menina com uma cobrinha enrolada no pescoço. Toda a família ficou muito desgostosa; mas não se podia tirar a cobrinha do pescoço da criança. Foram crescendo ambas juntamente, e a menina tomou muita amizade pela cobrinha. Quando já mocinha, costumava ir passear à beira do mar, e lá a cobra a deixava e fugia para as ondas, mas a princesinha punha-se a chorar até que a cobra voltava, se enrolava outra vez no seu pescoço e iam ambas para palácio, onde ninguém sabia disso.

Assim foram indo até que um dia a cobra entrou no mar e não voltou mais, porém disse à irmã que, quando se visse em perigo, chamasse por ela. A cobra tinha o nome de Labismina e a princesa o de Maria.

Passados anos, caiu doente a rainha, e morreu; mas na hora de morrer tirou do dedo uma joia e deu ao rei, dizendo: “Quando tiveres de casar outra vez, deve ser com uma princesa em que esta joia der sem ficar nem frouxa, nem apertada”.

Depois de algum tempo, o rei quis se casar e mandou experimentar a joia nos dedos das princesas de todos os reinos, e não encontrou nenhuma em que o anel coubesse pela forma que lhe tinha recomendado a rainha. Só faltava a princesa Maria, sua filha; o rei chamou-a e botou a joia no seu dedo, e ficou muito boa. Então ele disse à filha que queria se casar com ela; e, como palavra de rei não volta atrás, a moça ficou muito desgostosa e vivia chorando.

Foi ter com Labismina na praia do mar, gritou por ela, e a cobra veio. Maria contou-lhe o caso, e a cobra respondeu: “Não tenha medo; diga ao rei que só casa com ele se ele lhe der um vestido da cor do campo com todas as suas flores.”

Assim fez a princesa, e o rei ficou muito aborrecido, mas disse que iria procurar. Levou nisto muito tempo, até que afinal conseguiu.

Aí a princesa tornou a ficar muito triste, e foi ter com a irmã, que lhe disse: “Diga que só casa com ele se lhe der um vestido da cor do mar com todos os seus peixes.”

A princesa assim fez, e o rei ainda mais aborrecido ficou. Levou muito tempo a procurar até que arranjou.

A moça foi ter outra vez com a Dona Labismina, que lhe disse: “Diga que só casa se ele lhe der um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas.”

Ela assim disse ao pai, que ficou desesperado; mas prometeu arranjar. Levou nisto ainda
mais tempo do que das duas outras vezes, até que conseguiu.

A princesa, quando o pai lhe deu o último vestido, viu-se perdida e correu para o mar, onde embarcou num navio que Dona Labismina tinha preparado, durante o tempo que o rei andou arranjando os vestidos. Labismina recomendou à irmã que seguisse naquele navio, e saltasse no reino onde ele parasse, que nessa terra ela encontraria casamento com um príncipe, e que, na hora de casar, chamasse por ela três vezes, que ela se desencantaria numa princesa também.

Maria seguiu. No reino em que o navio parou ela saltou em terra. Não tendo de que viver, foi pedir um emprego à rainha, que a encarregou de guardar e criar as galinhas do rei. Passados tempos, houve três dias de festa na cidade. Todos de palácio iam à festa, e a criadeira de galinhas ficava. Mas logo no primeiro dia, depois que todos saíram, ela se penteou, vestiu o seu vestido de cor do campo com todas as suas flores e pediu a Labismina uma bela carruagem e foi também à festa.

Todos ficaram muito espantados de ver moça tão bonita e rica, e ninguém sabia quem era. O príncipe, filho do rei, ficou logo muito apaixonado por ela. Antes de acabar-se a festa, a moça partiu e meteu-se na sua roupinha velha, e foi cuidar das galinhas.

O príncipe, quando chegou a palácio, disse à rainha: “Viu, minha mãe, que moça bonita apareceu hoje na festa? Quem me dera casar com ela! Só parecia a criadeira de galinhas.”

— “Não digas isto, meu filho! Aquela pobre tinha roupa tão fina e rica? Vai ver como ela está lá embaixo porca e esmolambada.”

O príncipe foi onde estava a criada e lhe disse: “Ó criadeira de galinhas, eu hoje vi na festa uma moça que só se parecia contigo. . . ”

— “Oxente, príncipe, meu senhor, quer mangar comigo. . . Quem sou eu?”

No outro dia, nova festa, e a criadeira de galinhas foi às escondidas com o seu vestido de cor de mar com todos os seus peixes, e numa carruagem ainda mais rica. Ainda mais apaixonado ficou o príncipe sem saber de quem. No terceiro dia a mesma coisa, e a criadeira de galinhas levou o vestido cor de céu com todas as suas estrelas.

O príncipe ficou tão entusiasmado que foi se pôr ao pé dela e lhe atirou no colo uma joia que ela guardou. Chegando a palácio, o príncipe caiu doente de paixão e foi para cama. Não queria tomar nem um caldo; a rainha rogava a todas as pessoas para lhe levarem algum caldo, para ver se ele aceitava, e era mesmo que nada. Afinal só faltava a criadeira de galinhas, e a rainha mandou-a chamar para levar o caldo ao príncipe.

Ela respondeu:

“Ora dá-se! Rainha, minha senhora, quer caçoar comigo? Quem sou eu para o príncipe, meu senhor, aceitar um caldo da minha mão? O que eu posso fazer é preparar um caldo para mandar a ele.”

A rainha concordou, e a criada preparou o caldo, e botou dentro da xícara a joia que o príncipe lhe tinha dado na igreja. Quando ele meteu a colher e viu a joia, pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e queria se casar com aquela moça que servia de criadeira de galinhas.

Mandaram-na chamar, e, quando ela veio, já foi pronta, como quando ia à festa. Houve muita alegria e muito banquete, e a princesa Maria se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e, por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece às vezes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

Estante de Livros (“Noites do Sertão”, de Guimarães Rosa)


Compõe-se de duas novelas ou “poemas”, como as chama Guimarães Rosa. O primeiro poema é “Dão-Lalalão (o devente)”, quase um conto, que surpreende pela intensidade do suspense. Terminado o primeiro poema, estamos com o espírito azeitado para a leitura de “Buriti”, certamente uma obra-prima da literatura mundial.

As duas novelas que formam estas Noites do sertão têm como traço comum a sensualidade como força arrebatadora que se sobrepõe a convenções e preconceitos, e pode levar homens e mulheres tanto à plenitude do prazer quanto ao encontro de si mesmos. A primeira, “Dão-Lalalão”, é a estória de Soropita, vaqueiro valentão, responsável por várias mortes, que se apaixona totalmente pela faceirice sensual de Doralda, mulher que é “o estado de um perfume. Respirar que forma uma alegria”. Surupita a tira de um bordel de Montes Claros para fazer dela sua esposa, mas, apesar da felicidade que experimenta ao seu lado, se ressente ainda de que algum de seus companheiros a reconheçam.


“Amigo é: poucos e com fé e escolha, um parente que se encontrava. Um bom amigo vale mais que uma boa carabina.”

“Um homem não é um homem se escapa de não pensar primeiro na mulher.”


A segunda, “Buriti”, narra o envolvimento de quatro pessoas que vivem numa fazenda, num clima de extrema sensualidade que os vai envolvendo pouco a pouco e provoca as mais inesperadas aproximações”.

No cenário da fazenda do Buriti Bom, onde acontece a maior parte da história:


“Triste é a água e alegre é. Como o rio continua, Mas o Buriti Bom era um belo poço parado. Ali nada podia acontecer, a não ser a lenda.”

Três personagens femininas muito marcantes vivem nessa fazenda, começando por Lalinha:

“Dona Lalinha, tem mulheres de lindeza assim, a gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez.”

A figura central é Lalinha, mulher abandonada por Irvino e trazida pelo sogro, Liodoro, para a fazenda da família, chamada Buriti Bom. Na espera por alguém que não vai voltar, nesse meio estranho em que ela fica como forma de reparação do dano causado pelo marido, vivendo uma estranheza espacial e afetiva.

O contraponto de Lalinha é a feia e doentia Maria Behu. Behu personifica a noite em oposição à irmã solar, Glória:


“Ajoelhada no meio do quarto, Maria Behu rezava. O terço serpenteava preto entre suas mãos, e, à sétima ave-maria de cada mistério, ela beijava o chão, por orgulho de humildade.”

Ponto de conexão entre os dois polos é Glorinha:

“Maria da Glória é inocente, de uma inocência forte, herdada, que a vida ainda irá desmanchar e depois refazer.”

Glorinha encanta e se encanta por Miguel, que é descrito de forma igualmente vívida:

“Trabalhava atento, com afinco. Somente assim podia enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se estivesse comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria, por vir, e que ele carecia de não saber qual iria ser.”

Outros personagens marcantes como Iô Liodório, Nhô Gualberto, Dona-Dona. Outro personagem significativo para pensar a relevância da natureza é Chefe Zequiel. Insone, sofrendo dores de cabeça, é um personagem que se caracteriza pela vigília, sempre atento aos rumores do sertão. Zequiel conhece cada espécie que habita o sertão, com seus rumores típicos:

“O pior, é que todo dia tem sua noite, todo dia. (...) A noite é cheia de imundícies.”

A figura da palmeira, em especial o buriti-grande, árvore de beleza excepcional próxima à fazenda Buriti Bom, é um exemplo do valor que a paisagem acrescenta à obra.

A grandeza da Literatura de Guimarães Rosa é expressar em linguagem poderosa e bela algo que reverbera como cristalina verdade no âmago de nosso ser. Comparo sua prosa à poesia de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, que sabiam falar com muita beleza das verdades da alma. Como por exemplo:


Deus podia ter botado os cegos no mundo, para vigiarem os que enxergavam. Esses cegos, como os brabos arruaceiros: os valentões, que eram mandados permitido como castigo de todos, para destruir o sensível do bom sossego.”

Há ainda duas citações luminosas, em referência à tão comentada invenção de neologismos praticada por Guimarães Rosa. Note-se que as palavras inventadas (“tãomente” e “vãidade”) não estão ali por capricho, mas por altíssima exigência estética:

“O amor exigia mulheres e homens ávidos tãomente da essência do presente, donos de um perfeição espessa, o espírito que compreendesse o corpo.”

“Numa criatura humana, quase sempre há tão pouca coisa. Tanto se desperdiçam, incompletos, bulhentos, na vãidade de viver.”


Em “Buriti”, a paisagem é dinâmica, o ambiente nunca é apenas um cenário, pelo contrário, a antropomorfização nas descrições da natureza acaba abrindo novas camadas de significação na obra e contribui para o entendimento de características mais complexas dos personagens e do próprio imaginário que se desenvolve com a paisagem. Ao mesmo tempo em que permite discorrer sobre a região e a problemática sociocultural, o texto de Guimarães Rosa oferece um panorama que transcende a região como limite. O espaço do sertão na obra do escritor mineiro segue o inverso de uma delimitação regional, uma vez que é na vastidão que se constrói sua metáfora do sertão: “lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos”.

Guimarães Rosa, foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi também médico e diplomata. Os contos e romance escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falarem  de maneira popular e regional. É um clássico da literatura nacional, que deve ser lido e agraciado.

‘Noites do Sertão’ foi adaptado para o cinema em 1983, baseado na história ‘Buriti’ e teve em seu elenco Tony Ramos e Débora Bloch.


Fontes:
Alessandra Paula Rech. O sertão como representação dos personagens em “Buriti”, de Guimarães Rosa. Cad. Letras UFF, Niterói, v. 29, n. 58, p. 95-106, n. 1, 2019
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