sábado, 13 de outubro de 2012

Wagner Marques Lopes/MG (Trovas-Tributo à Mata da Serra do Cipó)


                                  Foto Jornal Hoje em Dia, 11.10.12

Durante a semana, a mata do Parque Nacional da Serra do Cipó, nas proximidades de Pedro Leopoldo, riquíssima por sua biodiversidade, foi alvo de um incêndio, supostamente de origem criminosa. Avaliou-se uma perda de 1/6 da área, correspondente a 500 estádios de futebol. Um rapaz da região, que disse conhecer cada cantinho da mata, exclamou, desolado: "Queimaram parte de mim".



Incêndio feroz, ranzinza,
impiedoso, sem dó.
E faz muito verde em cinza,
lá na Serra do Cipó.

Ante o fogo violento,
em rodopios sem fim,
diz um moço, em seu lamento:
“ – Queimaram parte de mim!...”

Quem provocou a queimada?...
Algum tresloucado ser?...
A vida, em longa jornada,
buscará reverdecer!...

Antonio Carlos de Faria (O Mundo Sem Colombo)


 -Não consigo deixar de pensar nisso.

-Nisso o quê?

-Como teria sido o mundo sem Colombo. Nós nem estaríamos aqui nesse botequim bebendo chope e papeando...

-Então, salve Colombo! Deixe de pensar nele. Viva o presente e, principalmente, pague o que me deve. 

-Você não entendeu. Não estou pensando em Colombo. Estou pensando no que teria sido o mundo sem ele.

-Com ele ou sem, os europeus iriam acabar chegando ao Rio de Janeiro e hoje alguém iria estar tomando chope em um botequim como esse. Tudo seria mais ou menos igual. Até um caloteiro como você iria existir.

-Você está enganado. Sem Colombo, nós não estaríamos aqui. Sem ele, iria prevalecer o método de Portugal, que eram as cabotagens em torno da África e da Ásia. Um processo muito mais lento. Em qualquer lugar em que vissem mulher bonita, os portugueses paravam e se punham a fazer versos e a tocar suas guitarras.

-Eles estavam certos, quer coisa melhor do que mulher, poesia e música?

-Mas perceba as conseqüências. Seguindo as cabotagens, os portugueses chegariam ao Japão, como fizeram realmente, mas talvez demorassem muito mais para se arriscar em linha reta ao Oriente. Foi a loucura de Colombo que fez os portugueses virem direto para a América. Se dependesse deles, isso poderia ter demorado mais, quem sabe uns duzentos anos.

-E daí? Um pouco antes, um pouco depois, terminaria tudo como estamos vendo agora.

-De forma alguma. Sem as Américas, não haveria batatas no cardápio da Europa. Sem batatas, a população européia iria continuar passando fome, crescendo devagar. Não haveria o excedente que criou o exército de mão-de-obra de reserva, a mais valia. Não teria havido a Revolução Industrial.

-Você não acha que está exagerando um pouco?

-Claro que não. Sem Colombo, não teria havido luta de classes e as revoluções que balançaram o mundo no último século.

-Aonde você quer chegar com essa conversa?

-Ora, meu ponto de vista é claro. A ousadia de Colombo criou o mundo como o conhecemos. É preciso ser ousado, é preciso ir além do convencional.

-Ainda não entendi o que quer dizer esse papo todo.

-Bom, você mesmo podia ser mais ousado e fazer um gesto inesperado. Por exemplo, poderia perdoar essa dívida que veio me cobrar.

-Tenha paciência. Está me achando com cara de Jesus Cristo? Essa conversa toda é apenas mais uma forma de você adiar o pagamento. Você está me enrolando.

-Longe de mim essa idéia! Mas continuando nosso assunto, como teria sido a história do mundo sem Jesus Cristo? Você já pensou nas conseqüências?

Fonte:
Folha On Line. 27/09/2004

Amadeu Baptista (Poemas Avulsos)


“A NOITE CAI”

A noite cai e o poeta parte para a cidade.
 O alforge vai cheio de sedimentações, beringelas, 
 leiras de feijão, e um potente holofote,
 para iluminar o tempo.

Recém-chegado da província, cabe-lhe 
 manusear o livro, o alfa, o ómega, ainda que 
 abomine tanto tumulto, tantos carros que 
 passam, tanto grito,

e se creia um centauro nas avenidas novas. Os
 bairros, as áleas rectilíneas, ampliam a 
 indiferença, havendo em tudo um poder

infernal de crateras sobre os muros, destroços
 nas janelas, marchas forçadas, farpas.

(Do livro “Atlas das Circussntâncias” . Ed. “Lua de Marfim”)

SONETO EXPOSTO

(ou uma certa ideia de memória do país)

O desengonçado trânsito cavernícola.
 A eterna crise com os dentes afiados.
 Um país de paisagens marítimas e vinícolas,
 em que uns são filhos e outros enteados.

O recorte da serra na distância.
 Os pardais semoventes sobre as praças.
 Alguns homens sombrios com a ânsia
 de não serem roídos pelas traças.

O redil organizado como um caos.
 Uns quantos menos bons e outros muito maus.
 Uma planície, uma cidade, um chaparral.

E em volta disto o mar, sempre indiferente
 do que queira ou não queira a sua gente.
 E fica no soneto exposto Portugal.

“TEMPLO DE LUXOR”

Sei agora que o gato tem espírito,
 um dom poético, uma expressão
 reveladora, perante o fogo
 é um brilho, sobre a água
 uma forma de ser que subtilmente
 usa os sentidos alerta para falar
 o idioma principal, esse mistério
 de prevalecer na crença
 da invocação egípcia, uma presença
 divina entre o silêncio, a vertigem
 e a intensidade que emerge do espaço
 e avassala as colunas, a impressiva
 modulação dos arcos, os blocos
 inclinados para dentro
 para que a rapidez inclua nos testículos
 uma parte devoradora e outra felina,
 uma parte excessiva e outra ágil
 nas sete mortes
 que antecedem o admirável suicídio.

O PINTOR APLAUDIDO PELA INSPIRAÇÃO

sou a inspiração que o pintor procura 
 em lugares desabridos e raramente encontra. 
 ele procura-me onde ninguém suspeita,
 e eu existo e não existo, sem que possa
 revelar a minha presença imperscrutável. 
 às vezes nem uma sombra sou e o pintor 
 não pode mais fazer do que lançar o olhar 
 sobre os desígnios do mundo, 
 a decifrar a amplitude da luz 
 que reiteradamente lhe entrego
 quando o vento e a memória reproduzem 
 os decisivos sinais do desvendamento. 
 ele prepara a tela, estica-a na madeira, cria 
 as condições para que o abismo funcione 
 e, com o olhar, arrisca procurar-me no mistério 
 em que a limpidez esboça uma formulação de vozes 
 e presenças complexas. inspiro-o, inspiro-o, sempre,
 e o seu olhar é dramático e abrupto, a convergir
 num julgamento sumário, uma ameaça
 em que o sangue assume a dimensão de um incêndio,
 uma devastação. onde estou? onde está a linguagem
 que comigo vem? 
 onde estarei antes mesmo de, na sua nuca, 
 me tornar implícita no que quer que pense? 
 onde estarei na cabeça do pintor? 
 onde lhe inflijo o golpe para que tudo desvende
 para nada desvendar, levando-o 
 a uma folha de nogueira e uma marca na carne como adivinhação 
 e indício seguro de um prodigioso esplendor? 
 essa marca lacera-o,
 essa marca impele-o para um exercício 
 de hipóteses entre as escolhas inúmeras 
 e, num momento, o pintor decide-se por uma ideia simples, 
 cabendo-lhe aguardar que o rastilho magnífico se incendeie. 
 o meu rastilho, a inspiração, o confronto inevitável 
 com o clarão que lhe sitia as têmporas e ele sabe existir 
 quando opta entre este e aquele pincel de cerdas muitas espessas,
 ou liberta o óleo na superfície danada que o mata em cadeia
 e lhe coloca no coração insuperável
 a última questão que a pintura levanta. 
 o pintor é bravio, evoca a distância, transpõe a agitação,
 faz coincidir a incoincidência com o tumulto e o uso, 
 semicerrando as mãos, sentindo no pescoço
 as forças avassaladoras e vitais que o entregam
 à tarefa de dar corpo ao corpo da existência.
 sem que me veja, o pintor pressente-me, 
 convoca-me, aceita-me, 
 e as cores soltam-se-lhe das mãos, remontam à inocência.
 o pintor é um eremita a perscrutar
 a pedra, sondando-lhe o interior, a ver
 na escuridão uma seara povoada por infinitas
 legiões de camponeses que mergulham as mãos na luz 
 e, como anjos, 
 vislumbram no horizonte imperfeito um mar de trigo a arder,
 sempre a arder, na distância. 
 o pintor procura-me,
 procura-me em lugares desabridos, procura-me
 do início ao fim da vida, sempre a supor
 que só me encontrará pela possibilidade perpétua
 do desencontro, esta pedra, esta colheita, tudo quanto
 irradia pelo centro nervoso do pintor 
 sempre que a inquietação sobrevem e a cegonha 
 e a garça cortam o ar irrespirável,
 ou um fio de azeite flui na malga nacarada e azul,
 ou o leite fumegante se derramada,
 lentamente se derrama para que a visão prevaleça
 e o latido de um cão negro, mais do que ouvir-se ao longe, possa ver-se. 
 o pintor sabe, ou suspeita, insidiosamente,
 que a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
 e o meu assédio é total, brutal, eficaz. 
 entrego o poder de sonhar ao pintor e ele constrói
 destruindo, e destrói, construindo, 
 sobrepondo as camadas de tinta numa organização 
 envolvente e transgressora, prefigurando no caos 
 a maciez do espanto e o orvalho da força. 
 não havia no mundo esta irrisão, não estava esta mão
 a segurar o encarnado na tela omnisciente,
 não podia esta asa reflectir na treva a indefectível
 aventura, mas, de repente, a alguma coisa 
 qualquer coisa se acrescenta, 
 o lento corrupio emerge da criação, 
 a luz faz-se,
 apartam-se as águas, 
 há o homem, há a mulher.
 e eu a atormentá-lo sempre, a perseguir o artista,
 a zurzir-lhe nos ombros a vara da aflição e do fascínio, 
 a prender-lhe aos cabelos a escuridão das casas 
 e dos lugares em que concebe um traço e outro, 
 um espaço e outro espaço. 
 ali está a árvore dos seus mortos, 
 aqui está a mãe a espevitar o lume, 
 naquele berço os filhos que há-de ter
 e há-de ver crescer, 
 ali está, no exacto lugar em que a luz oscila,
 a figura subtílima que só em sonhos pode ver, 
 o quadro. 
 o quadro, ainda,
 com todas as suas ramificações obscuras 
 e os seus lados brilhantes. 
 inspiro-o, inspiro-o sempre. 
 e o pintor recomeça,
 a obra há-de fazer-se. a boca solta 
 vários sentidos nesse único sentido, a boca 
 regurgita o negro e a alegria.
 de novo o levo a preparar a tela, de novo prende e liga
 as coisas entre si, esta tesoura apara, 
 aquele grampo une, segura
 esta travessa os paus duma jangada que o pintor quer 
 encontrar para rumar ao sul. 
 é agora um jovem e vai-se enamorar.
 no ar incendiado a rapariga passa e o pintor 
 perscruta-a com o coração. 
 a uma janela, penteia-se, a mulher,
 e sente-se o seu perfume a invadir o ar.
 tens nome, rapariga? e o pincel responde com a densa 
 intrepidez de quem está no incêndio para morrer
 e pôr o corpo todo na pincelada breve. 
 eis os cabelos negros, essa camisa branca. 
 e um seio desenha-se. na farta cabeleira 
 alastra a luz perfeita, como se a luz soltasse,
 naquela zona escura, toda a paixão que assiste
 a quem desvenda a terra. 
 tens nome, rapariga? e o pintor procura-a, 
 procura-me o pintor,
 e não sabe se existo ou se não existo,
 e como assim o induzo à maldição de sempre,
 ou lhe segredo ao ouvido o que não quer ouvir. 
 encontram-se no real todos os vestígios 
 com que se armam as cenas, os sinais poderosos 
 que há nos gritos dos homens. 
 os símbolos que utiliza são do chão que lhe chegam,
 anota na vertigem a vertigem dos dias.
 os homens que conhece possuem um vigor
 que a si mesmo ultrapassa. 
 um deles é um amigo, morreu assassinado. 
 morreu por pouca coisa.
 quando matam alguém porque tem fome apenas 
 e é pão que reclama , morre-se sempre 
 por muito pouca coisa. de madrugada o mataram, 
 à queima-roupa o mataram, 
 com um tiro na nuca, porque pedia pão 
 e era pintor também. 
 o pintor interpreta esta morte como se lhe tivessem 
 disparado o revólver na boca, 
 o sangue cai em flocos como se estivesse a nevar
 e a neve em presença fosse uma pintura vermelha,
 extensa, obsessiva, aterradora.
 o pintor amplia a verosimilhança dos temas,
 procura e procura-me, procura
 e encontra-me,
 e eu inspiro-o a que aja.
 havia um animal numa certa casa antiga, 
 tantas vezes o viu que acabou por esquecê-lo. 
 até que, ali onde trabalha, entregue a pensamentos
 que não pode explicar, o viu surgir do nada, a voar
 sobre os quadros. então aconteceu
 que impôs à tela branca o animal acossado
 e o pintou assim, num duplo encantamento
 de o estar a ver ali e onde o vira quando, 
 não mais que um menino, representava a noite
 com pequenas estrelas traçadas a carvão.
 esse animal, sou eu, obviamente,
 que em várias noites venho por montanhas
 e vales a inspirar, 
 a conspirar,
 para despertar no pintor o que em si dorme há séculos
 e em pura fúria persiste sob o eterno interdito
 ou essa lâmpada, 
 a balbuciante lâmpada da tristeza. 
 a linguagem, qualquer linguagem, é um clarão.
 e eu instigo o pintor a que me procure
 para que sobre as coisas outra coisa perdure.
 algumas destas figuras são o pintor a sonhar.
 algumas destas figuras são o pintor a sofrer.
 aqui, ali, onde quer que me encontre e te encontre
 o pintor não pode esmorecer. talvez
 seja possível entre a penumbra ver. a inspiração,
 a pintura, são uma revelação incerta,
 sem limites,
 onde os vendavais circulam.
 e não há refúgio para sobreviver.
 nesse clarão, às vezes, os sinais luminosos
 que estão em toda a parte,
 mas permanecem invisíveis porque não sabemos,
 ou porque não podemos, ainda, procurar,
 aparecem, 
 tal como acontece ao espírito do artista,
 visível a olho nu,
 nas obras que executa.

Fontes:

Amadeu Baptista (1953)


Amadeu Baptista nasceu no Porto/Portugal a 6 de Maio de 1953. 

Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 

É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do Pen Clube Português. 

Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai. 

Poemas seus foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno. 

É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. 

Fundou e co-dirigiu (com Álvaro Holstein Ferreira e Vergílio Alberto Vieira) a publicação Babel – fascículos de poesia, e co-organizou (com Egito Gonçalves) a revista Orfeu 4. 

Organização de antologias: Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001; Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001; Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. com José Emílio-Nelson, Porto, 2003. 

Integrou 

o Júri do Grande Prémio de Poesia APE/CTT relativo ao ano editorial de 1993, 1997 e 2003; 

o Júri do Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/C.M. do Porto relativo ao ano editorial de 1997 e  

o Júri do Grande Prémio do Conto APE/Câmara de Vila Nova de Famalicão, relativo ao ano editorial de 1999. 

Obras publicadas
As Passagens Secretas, Coimbra, 1982; 

Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, 1985; 

Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], Porto, 1986; 

Kefiah, Viana do Castelo, 1988; 

O Sossego da Luz, Porto, 1989; 

Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Galiza, Espanha, 1997; 

Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, 1999; 

As Tentações, Santarém, 1999; A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), s/l, 2000; 

A Noite Ismaelita, Guimarães, 2000; 

A Construção de Nínive, Porto, 2001; 

Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, 2003; 

Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco com 25 fotografias de Rosa Reis) Almada, 2003; 

O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, 2003; 

O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000 / poesia], Almada, 2004; 

Salmo (com a reprodução de um desenho de Rogério Ribeiro), Porto, 2004; 

Negrume (com desenhos de Ana Biscaia), Lisboa, 2006; 

Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007), Vila Nova de Famalicão, 2007; 

O Bosque Cintilante [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007], Vila Nova de Azeitão, 2007 (ed. fora do mercado); 

Balada da Neve e Outros Poemas, Maputo, Moçambique; 

Outros Domínios (Clamor por Florbela Espanca) – [Prémio Literário Florbela Espanca, 2007], Vila Viçosa, 2008; 

O Bosque Cintilante [id.], Porto, 2008. 

Fonte:
Jornal de Poesia

José de Alencar (Ao correr da pena) 17 de setembro: A Primavera


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Estamos na primavera, dizem os folhetins dos jornais, e a folhinha de Laemmert, que é autoridade nesta matéria. Não se pode por conseguinte admitir a menor dúvida a respeito. A poeira, o calor, as trovoadas, os casamentos e as moléstias, tudo anuncia que entramos na quadra feiticeira dos brincos e dos amores.

Que importa que o sol esteja de icterícia, que a Charton enrouqueça, que as noites sejam frias e úmidas, que todo o mundo ande de pigarro? Isto não quer dizer nada. Estamos na primavera. Os deputados, aves de arribação do tempo do inverno, bateram a linda plumagem; a Sibéria fechou-se por este ano, os buquês de baile vão tomando proporções gigantescas, as grinaldas das moças do tom são perfeitas jardineiras, a Casaloni recebe uma dúzia de ramalhetes por noite, e finalmente os anúncios de salsaparrilha de Sands e de Bristol começam a reproduzir-se com um crescendo animador.

Come, gentil spring! Vem, gentil quadra dos prazeres! Vem encher-nos os olhos de pó! Vem amarrotar-nos os colarinhos da camisa, e reduzir-nos à agradável condição de um vaso de filtrar água. Tu és a estação das flores, o mimo da natureza! Vem perfumar-nos com as exalações tépidas e fragrantes da Rua do Rosário, da Praia de Santa Luzia, e de todas as praias em geral!

Doce alívio dos velhos reumáticos, esperança consoladora dos médicos e dos boticários, sonho dourado dos proprietários das casinhas dos arrabaldes! Os sorveteiros, os vendedores de limonadas e ventarolas, os donos dos hotéis de Petrópolis, os banhos, os ônibus, as gôndolas e as barracas, te esperam com a ansiedade, e de suspirar por ti quase estão ficando tísicos (da bolsa).

Esta semana já começamos a sentir os salutares efeitos de tua benéfica influência! Vimos uma estrela do belo céu da Itália eclipsada por uma moeda de dois vinténs, e tivemos a agradável surpresa de ouvir o 1º ato do Trovatore e um epeech da polícia, tudo de graça.

Alguns mal intencionados pretendem que a noite não foi tão gratuita como se diz; mas deixai-os falar; eu, que lá estive, posso afiançar-vos que o espetáculo foi todo de graça, como ides ver,

A autoridade policial depois de participar que ficava suspensa a representação e que os bilhetes estavam garantidos, sendo por conseguinte aquela noite de graça, como esta notícia excitasse algum rumor, declarou formalmente, e com toda a razão, que se acomodassem, porque a polícia, quando tratava de cumprir o seu dever, não era para graças.

Os namorados que tiveram duas noites de namoro pelo custo de uma, os donos de cocheira que ganharam o aluguel por metade do serviço, o boleeiro que empolgou a sua gorjeta sem contar as estrelas até a madrugada, aqueles que lá não foram, não só riram-se de graça, como acharam nisto uma graça extraordinária.

Muito olhar suplicante vi eu nos últimos momentos, humilhando-se diante de um rostozinho orgulhoso e ofendido, clamar com toda a eloqüência do silêncio: grazia! grazia! É preciso advertir que o olhar estava no Teatro Provisório, e por isso não se deve admirar que falasse italiano; além de que, o olhar é poliglota e sabe todas as línguas melhor do que qualquer diplomata.

Finalmente, para completar a graça deste divertimento, as graças com os seus alvos vestidinhos brancos se reclinavam sobre a balaustrada dos camarotes, cheias de curiosidade, para verem o desfecho da comédia. E a este respeito lembra-me uma reflexão que fiz a tempos, e da qual não vos quero privar, porque é curiosa.

Os gregos, como gente prudente e cautelosa, inventaram unicamente três graças, e consta que viveram sempre muito bem  com elas. Nós, de mal avisados que somos, queremos ter em todos os divertimentos, nos bailes, nos teatros e nos passeios uma porção delas, sem refletir que, logo que se ajuntarem muitas, podem formar necessariamente um grupo de dez graças.

Maldito calembur! Não vão já pensar que pretendo que as graças tenham sido a causa de tudo isto, nem também que todo aquele desapontamento fosse produzido por alguma graça da Charton. A prima-dona estava realmente doente, e, aqui para nós, suspeito muito os meus colegas folhetinistas de serem a causa daquela súbita indisposição com o formidável terceto de elogios que entoaram domingo passado. Lembrem-se que os elogios e os aplausos comovem extraordinariamente um artista. Ainda ontem vi como ficaram fora de si as tímidas coristas, unicamente porque lhe deram duas ou três palmas!

Em toda esta noite, porém, o que houve de mais interessante foi o fato que vou contar-vos. Um velho dilettante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister dixit, e para quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz lembrança de justamente nesta noite encomendar um magnífico buquê para oferecer à Charton no fim da representação. Apenas se declarou o relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior, com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, que lá deixou ficar com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.

No outro dia, o homem, que tinha seus hábitos antigos de comércio, viu-se em sérias dificuldades. Não podia deixar de acreditar, à vista da declaração da polícia, que o espetáculo da noite antecedente fora de graça; mas, ao mesmo tempo, tinha de dar saída no livro de despesas ao dinheiro que gastara com o aluguel do carro, com a gorjeta do boleeiro, com o par de luvas, com o buquê da Charton, o custo da bengala e o estrago do chapéu. Coçou a cabeça, tomou a sua pitada, e afinal escreveu o seguinte assento: Importe de um espetáculo gratuito no Teatro Provisório – 26$000!

O meu dilettanti ainda não sabia que a palavra grátis é um anacronismo no século XIX, e, quando se fala em qualquer coisa de graça, é apenas uma graça, que muitas vezes torna-se bem pesada, como lhe sucedeu. Provavelmente, depois deste dia, o velho lhe aditou ao seu testamento um codicilo proibindo terminantemente ao seu herdeiro os espetáculos gratuitos.

Assim a crônica futura desta heróica cidade consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de 1854, tivemos um divertimento de graça. Os nossos bisnetos, não falo dos militares de boca aberta , hão de pasmar quando lerem um acontecimento tão extraordinário, e, se nesse tempo ainda estiver em uso o latim, clamarão com toda a força dos pulmões: Miserabile dictu!

Depois de uma semelhante noite, era natural que os dias da semana corressem, como correram, monótonos e insípidos, e que o baile do Cassino estivesse tão frio e pouco animado. Entretanto aproveitei muito em ir, pois consegui perder as minhas antipatias pela valsa, a dança da moda. É verdade que não era uma mulher que valsava, mas um anjo. Um pezinho de Cendrillon, um corpinho de fada, uma boquinha de rosa, é sempre coisa de ver-se, ainda mesmo em corrupios.

Fiz a amende honorable de minhas opiniões antigas, e, vendo nos rápidos volteios da dança voluptuosa passar-me por momentos diante dos olhos aquele rostinho iluminado por um sorriso tão ingênuo, não pude deixar de fazer uma comparação meio sentimental e meio cosmogônica, que talvez classifiqueis de original, mas que em todo o caso é verdadeira.

Quando o mar, que Shakespeare disse  ser a imagem da inconstância, revolveu o globo num cataclisma e cobriu a terra com as águas do dilúvio, foi uma pomba o emblema da inocência, que anunciou aos homens a bonança, trazendo no bico um raminho de oliveira. Se algum dia uma paixão de loureira vos revolver a alma, e deixar-vos o desgosto e a desilusão, há de ser um anjinho inocente como aquele quem vos anunciará a paz do coração, trazendo nos lábios o sorriso do amor o mais casto e mais puro.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Olivaldo Junior (Maria, as Moedas e um Menino em Dúvida)


Escrevo, para o Dia de Nossa Senhora Aparecida e das Crianças, breve história que me ocorreu à noite.

A música Romaria foi a primeira que aprendi a cantar, quando eu tinha um ano de idade, mais ou menos.

Não tenho sentido vontade de aprender novas músicas, pois que as velhas ainda resistem ao tempo. Meu tempo é o de fechar as cortinas e arrumar os papéis (coisa que não faço faz tempo), arrumando, também, minha alma. Não sei. Os papéis, amarelos, deixaram rastros na alma, bagunçada demais, desde criança, Maria. 

MARIA, AS MOEDAS E UM MENINO EM DÚVIDA

Era igreja pequena, mas cheia de afrescos, sinais do talento de gente do povo, tão cheia de fé que nem sabe que a tem. A igreja, embora singela, trazia nela um bom nome, o de Nossa Senhora, Aparecida, em louvor. Louvor a quem? A Nosso Senhor. 

A cidade onde ficava essa igreja também era mini, mas super feliz com a ideia de que Nossa Rainha guardava os fiéis. Um deles era um pobre menino que não tinha quase nada a perder. Os pobres hão de ter mais de uma chance de aprender sobre o Céu e suas coisas divinas, porque têm muito pouco a perder. Perdido, perambulava e só.

Um dia, onze de outubro de um ano qualquer, quando a fome apertava cada fibra do estômago daquela criança, teve a súbita imagem da caixinha dourada que abrigava as moedas de Nossa Senhora, bem aos pés de Maria. Não pensou duas vezes. Roubar!

A igreja estava quase vazia. Os olhos de cada imagem, sucintos, caíam sobre as costas do pobre enquanto ele catava as mais de vinte moedas do claustro de ofertas. 

Na rua, com as moedas cantando nos bolsos, calava no peito uma dúvida atroz: onde iria comer? Gastaria, ou guardaria o dinheiro para quando tivesse mais fome que a fome sentida nos últimos dias? Não sabia. Os passos, mais rápidos que sempre os soubera, corriam nas beiras do asfalto, querendo chegar. Não tinha parada. Chorou.

Assim, ao cruzar outra esquina, deu de cara com a triste mulher, de longo vestido, com criança nos braços, parecendo chorar, pois não dava para ver os seus olhos pedintes com a cabeça materna junto ao pobre bebê. A mulher não pediu. Ele não pararia! Mas, nos bolsos, cantando sem letra, as moedas pediam como se rogassem a ele que as deixasse com ela, vã mendiga no olho da rua. Cego de fome, deu de ombros, mas não “fugiu”. Parou, dando as moedas à pobre, que, num gesto sem força, fez menção de sorrir. A vida é sem jeito!, pensou ele, faminto, chorando. Chorava, mas era bondoso.

Caindo o sol, à tardinha, numa praça sem nome, o menino deitou-se. Não sabia rezar, mas olhou para o céu. Cada estrela era um sopro de luz sobre um triste e apagado menino. A fome doía. O corpo penava. O menino morreu. A mesa, no Céu, à espera dos justos e de quem amou, não seria, àquela noite de festa, mais um sonho sem nexo. A mendiga (meu Deus!) tinha dado ao menino franca entrada pra o Céu, aparecendo ali.

Fonte:
O Autor

Antônio Baracat Habib Neto (Poemas)


O poeta é de Itabuna/ BA

BEDUÍNA

Vem comigo Beduína..., arde o meu peito
No braseiro sem fim da nostalgia !...
Vem comigo que a lua já irradia
Seus raios argentinos no meu peito;

Vem comigo que dorme insatisfeito,
Quando a noite tão triste beija o dia,
O coração que outrora se perdia
No delírio do amor quase perfeito,

Vem comigo, formosa peregrina,
Pela estrada silente da ternura,
Para o templo bendito que fascina...

Vem comigo que a estrela da ventura,
Teus passos pelas noites ilumina,
Ó filha do deserto, casta e pura !...

(Extraída do Livro Versos de um Khalifa pág 37).

DESEJOS

Tu sabes que sei o que sentes
Tanto quanto sabes o que sinto
Por que retarda tanto nosso abraço?
Vens, e verás que não minto

Dás dois passos para mim...
Recuas três e te afastas...
Por que não cedes e me sacia
Livrando-me de saudades nefastas.

Tu avanças,retrocedes...
Recúas,me atormenta
Por que não te entregas duma vez?
Te demoras e o meu desejo aumenta

Que se rompa o muro levantado
Por preconceito vão,ultrapassado
Vens depressa,eu te espero...
Dupla força tens o grito sufocado

QUALQUER COISA
Acróstico

Qualquer coisa escreverei
Um poema formarei
Antes que inspiração se vá
Lá eu deixarei
Qualquer coisa escrita
Uma vaga lembraça
E o inicio de uma criança
Relembrando sua infancia

Com papel e caneta
O menino pensou
Isso é só começo
Sabia o que falava
Agora é um grande poeta que por aqui passa

CANTA TEUS AMORES
Acróstico 

C laras águas do mar
A qui vim megulhar
N as tuas ondas,minhas mágoas hei de afogar
T rás de volta o meu sorriso
A inda adormecido

T oca este coração
E sgotado de bater em solidão
U ne novamente esta paixão
S audosa e sincera

A onde que que eu vá
M eu pensamento em ti estará
O meu amor não pode esperar
R azão do meu viver
E elouquece-me de prazer
S erei teu até morrer.…

Fontes:
– O Autor
– http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=46554

Ialmar Pio Schneider (Sonetos)



VENTO DO MAR 

 Vento que sopras furibundo 
 e vens meus sonhos despertar, 
 as tristezas de todo o mundo 
 parece que trazes do mar... 

 Ouvindo o lamento profundo 
 sempre constante a marulhar, 
 quedo-me triste, me confundo 
 co’a voz misteriosa do mar... 

 Altas horas, cada segundo 
 teimas o meu corpo abraçar, 
 quando em reflexões me aprofundo 
 para obter segredos do mar…

SONETO 

Comemora-se no Brasil, o Dia Nacional da Leitura (a partir de 2009 - Lei nº 11.899). 

A distração do espírito é a leitura 
e os grandes mestres nos ensinam tal; 
nas obras-primas, vasto cabedal 
a mente encanta e o pensamento apura... 

A existência tem fases de amargura, 
pois há um confronto assaz fenomenal: 
de um lado luta o bem e de outro o mal 
e o que vence por fim é o que perdura. 

Escrevam, romancistas, seus romances ! 
Cantem, poetas, salutar poesia ! 
Porquanto houver na vida tantos transes, 

não vão morrer as páginas aflitas 
e nem há de ficar a imagem fria 
das criações pra todo sempre escritas.

DIA DA CRIANÇA

Julgavas que este amor não encontrasse 
pedras e espinhos pela estrada afora, 
mas são os sofrimentos e a demora 
o que fazem eterno o que é fugace. 

Repara-me nos olhos e na face 
para ver quanta mágoa me devora, 
por não ter alma cândida e sonora 
a fim de ser o que teu sonho amasse. 

Deixemos de torturas e cansaços, 
reclina-te serena nos meus braços, 
confia em mim na maior esperança... 

Faz de conta que nada mais existe, 
então verás alguém que foi tão triste 
convertido na mais alegre criança…

SONETO   ÍNTIMO

 Enfrenta teu destino sem alarde; 
 que ninguém saiba o que te vai na mente... 
 Não te lastimes, murmurando: “É tarde !” 
 Esquece o teu passado, indiferente... 

 Também não fujas, como vil covarde, 
 à luta que te espera, e simplesmente 
 pede ao Senhor que te proteja e guarde 
 em Sua bondade infinda, onipotente. 

 Encontrarás, enfim, sabedoria 
 para atingir a meta projetada, 
 sem falso orgulho, mágoa ou rebeldia; 

 porque tua fé com força redobrada 
 renascerá com flores de alegria, 
 enfeitando pra sempre tua estrada.

CATULLO DA PAIXÃO CEARENSE 
Soneto em homenagem póstuma – In Memoriam 

Faz-me lembrar o tempo de menino, 
no lar paterno, lá na velha aldeia, 
com minha mãe, irmãos e irmãs, na ceia, 
de noitezinha, ao bimbalhar do sino... 

Depois, eu contemplava a lua cheia 
e perguntava aos céus: qual meu destino, 
neste mundo que roda e cambaleia, 
com momentos de luz e desatino?!... 

E ouvia a minha voz na voz do vento, 
dizendo que eu tivesse paciência, 
estudasse, aprendesse e na paixão 

de adquirir maior conhecimento, 
ingressasse no reino da sapiência... 
Que lindo era o Luar do meu Sertão !…

Fonte:
O Autor